Movimentos feministas no Paquistão: Desafios e lutas

09/02/2024 |

Por Asma Aamir

Asma Aamir escreve sobre a trajetória e as práticas atuais dos movimentos feministas do Paquistão, seus desafios e caminhos para avançar

Eu gostaria de falar sobre o Paquistão, um país que não tem um Estado laico, como a Turquia e outros. Seu nome oficial é República Islâmica do Paquistão, e o país é comandado pelos governos federal e provinciais, de acordo com a Constituição de 1973. O sistema judiciário é dividido em tribunais cíveis, tribunais criminais e o tribunal da sharia, que examina as leis do país de acordo com a lei e o direito islâmico.

O Tribunal Federal da Sharia é a única autoridade com poder constitucional de proibir e impedir a promulgação de leis pelo parlamento paquistanês quando forem consideradas contrárias aos preceitos islâmicos. A corte se concentra sobretudo na análise de leis novas ou já existentes no país. Se uma lei viola o Corão, a suna ou os hádices, o Tribunal da Sharia proibirá sua promulgação.

A Constituição de 1973 garante, em seu artigo 16, a liberdade de reunião; no artigo 17, a liberdade de associação; e, no artigo 19, a liberdade de expressão. Tudo isso deveria fortalecer o exercício de direitos fundamentais por cada cidadão e cidadã, sem discriminação. A ausência desses direitos é o maior impeditivo para o crescimento de uma sociedade. O aumento das violações aos direitos humanos é uma ameaça aberta à democracia e ao trabalho de pessoas que defendem os direitos humanos. A Constituição garante esses direitos, mas eles não estão sendo exercidos na vida prática. A violação acontece sobretudo contra os direitos das mulheres. Há, especificamente, um espaço limitado para a liberdade de expressão e de reunião de mulheres e meninas. É necessário garantir a implementação de seus direitos no país.

Durante e após a pandemia, a inflação aumentou a pobreza e os múltiplos desafios sociais, políticos e econômicos do diverso tecido social do Paquistão. A população, que cresce rápido, e os impactos adversos sobre as minorias étnicas e religiosas resulta no aumento das divisões entre os espaços urbanos e rurais e entre cidades grandes e pequenas. Todos esses fatores contribuem para a transformação contínua do comportamento social das massas. O contexto da pandemia reduziu a força de trabalho em todos os setores econômicos e provocou a perda de muitos postos de trabalho. As mulheres trabalhadoras, sobretudo da classe operária, que trabalham em fábricas e no contexto doméstico, sofreram mais. As professoras foram demitidas de seus trabalhos imediatamente. E a violência contra mulheres e meninas aumentou durante a pandemia.

A intolerância étnica e religiosa é rotineira, e os casos são denunciados ocasionalmente.

Asma Aamir

Feminismo na história paquistanesa

Diante de todos esses desafios, a insegurança entre as minorias do Paquistão aumentou com o passar do tempo. Na década de 1980, durante o regime ditatorial e contrário às mulheres de Zia-ul-Haq, houve um estreitamento dos espaços civis para as mulheres. Nesse período, o Estado efetivamente utilizou as forças políticas religiosas para conquistar poder. Silenciou partidos políticos, reprimiu a imprensa e a academia com censura e baniu estudantes e movimentos sindicais.

Foi nesse momento político nos anos 1980 que o primeiro movimento feminista, o Fórum de Ação das Mulheres, ganhou força. As mulheres se uniram e derrubaram as leis Hudud, promulgadas em 1979, que discriminavam mulheres não muçulmanas com relação a provas de testemunhas em caso de estupro e estupro coletivo. Esse movimento organizou o ato em protesto à Lei das Provas (que obrigava a mulher estuprada a apresentar quatro testemunhas para provar o crime), a leis de Hudud e outras leis discriminatórias contra as mulheres. A manifestação aconteceu na avenida The Mall, em Lahore, minha cidade natal. Apesar de ser um ato pacífico, o uso de gás lacrimogênio para dispersar a multidão e deter pessoas não foi incomum. O Fórum de Ação das Mulheres foi — e continua sendo — uma voz contra todo tipo de injustiça, sobretudo contra mulheres e minorias. Mais tarde, em 2006, as leis foram atualizadas e não se exige mais a apresentação de quatro testemunhas.

O segundo movimento feminista popular do Paquistão surgiu em 2000, com o nome de Aliança Contra o Assédio Sexual [Alliance Against Sexual Harassment — AASHA] e o lema de acabar com o assédio sexual no trabalho. A militante e especialista em questões de gênero Fouzia Saeed, ao lado de outras companheiras, como a integrante da Marcha Mundial das Mulheres Bushra Khaliq, engajaram figuras importantes, como mulheres de movimentos populares, a mídia, membros do parlamento e partidos políticos. Com esses esforços, em 2010 elas tiveram a sorte de conseguir a aprovação da lei de proteção contra o assédio de mulheres no ambiente de trabalho.

O atual movimento popular, chamado Marcha Aurat [Marcha das Mulheres, em português], ganhou força cinco anos atrás, em 2018, com o lema pelo fim do patriarcado. A Marcha Aurat é o movimento das jovens feministas, com uma abordagem mais inclusiva e intergeracional. Todo ano, é realizada a Marcha Aurat no dia 8 de março e, durante todo o ano, também são realizadas atividades como divulgação de comunicados à imprensa, pequenas manifestações e trabalhos artísticos.

Desafios Contemporâneos

As jovens feministas enfrentam a morte, o estupro e ameaças de ataque com ácido enquanto exercem o direito constitucional de se reunir e o direito à liberdade de expressão. Levantar uma bandeira incomoda e irrita a mentalidade patriarcal no Paquistão.

A estrutura, as práticas e o tecido social estão contra as mulheres. O poder governamental é fraco para proteger as mulheres. As mulheres estão enfrentando oposição em casa, nas ruas e no trabalho, mas seguimos em marcha nas ruas, conectadas com o Dia Internacional de Luta das Mulheres e outras pautas.

Os ataques por comentários e mensagens privadas na internet trouxeram insegurança para as jovens. Em consequência disso, elas tiveram que parar de publicar conteúdo sobre sua participação em espaços públicos ou começaram a ignorar esses comentários, lidando, sozinhas, com o medo e a insegurança. A mídia e as táticas prejudiciais de YouTubers deterioraram a causa de meninas e mulheres sem investigar a fonte. A mídia impressa e eletrônica publicou cartazes adulterados com imagens de meninas e mulheres que participaram de atos e marchas, incluindo minhas.

As redes sociais afetam a sociologia e a psicologia do que é comunicado, com o auxílio da tecnologia. O populismo crescente expõe como a sociedade ainda não está pronta para dar e oferecer direitos sobre o corpo para meninas e mulheres. O lema “mera jism meri marzi” (“meu corpo, minha escolha”) se tornou uma expressão ousada e audaciosa utilizada por jovens feministas para negar o controle sobre o corpo das mulheres na forma de estupro marital e da não escolha sobre ter filhos. Muitas pessoas repudiam esse lema e poucas o admitem.

O espaço para a divergência está se comprimindo com rapidez na região da Ásia-Pacífico. De forma semelhante, os espaços civis e os movimentos jovens feministas no Paquistão também estão em xeque.

Aumentaram as ameaças contra a vida de manifestantes. As mulheres enfrentam o assédio na internet, o assédio sexual nos espaços públicos e a estigmatização, por causa dos fundamentalismos, dos setores de direita e da ausência de laicidade. Todos esses são desafios que surgem e demandam muito do Estado e das comunidades para que se encontrem soluções, para considerar as mulheres cidadãs iguais nesse país, para conceber políticas a favor das mulheres e para garantir espaços civis para mulheres e meninas.

Nosso caminho adiante é a mobilização e o fortalecimento das capacidades de centenas de jovens na construção do movimento, sob a bandeira da Marcha Mundial das Mulheres no Paquistão. Com essa militância cotidiana, continuaremos a lutar pelos direitos das mulheres e por mudanças estruturais. É por isso que dizemos que “resistimos para viver, marchamos para transformar”.

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Asma Aamir integra a Marcha Mundial das Mulheres no Paquistão e é suplente no Comitê Internacional do movimento, representando a região da Ásia. Este artigo é uma versão editada de sua fala no 13.o Encontro Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, realizado em outubro de 2023, em Ancara, na Turquia.

Idioma original: inglês

Traduzido do inglês por Aline Scátola

Editado por Helena Zelic

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