Morte de menor na França pela arma de policial inflama debate sobre racismo

13/07/2023 |

Mariam Seifeddine

Os últimos protestos na França por justiça ao jovem de origem argelina Nahel Merzouk denunciam o racismo e a xenofobia no país

Ainda hoje, no ano de 2023, a polícia continua assassinando adolescentes desarmados. O assassinato de Nahel Merzouk, um jovem de origem argelina de 17 anos, aconteceu na terça-feira, dia 27 de junho, em torno das 8h18 na cidade de Nanterre no subúrbio a oeste da capital francesa, Paris. O assassinato do menino inflamou protestos que começaram em Nanterre e se espalharam para outros bairros do subúrbio de Paris, repercutindo para outras regiões da França, como Marselha, Lyon e Lille.

Os protestos, com saques e objetos e carros incendiados, não irromperam só em resposta ao assassinato de Nahel, mas também por causa do acúmulo de denúncias e da rejeição de uma longa série de práticas de policiais franceses, que demonstram seu racismo em toda oportunidade. Em vista disso, as e os manifestantes não veem o assassinato do menino norte-africano como um evento isolado de um contexto de práticas semelhantes.

Antes de Nahel, outros motoristas imigrantes foram baleados e mortos enquanto dirigiam. Esse contexto fundamenta a convicção de que os crimes foram motivados por racismo e que a origem do menino, identificado como descendente de imigrantes, foi o que levou o policial a atirar para matar. Até mesmo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos pediu à França que “considerasse seriamente os profundos problemas do racismo e da discriminação racial dentro da polícia”. A França considerou isso uma acusação “totalmente infundada”.

A polícia e sua falsa narrativa 

Para justificar o assassinato de Nahel, fontes da polícia fizeram circular em agências de notícias como a Agence France-Presse uma versão dos eventos que afirma que a vítima tentou atropelar um policial durante uma abordagem policial e que o policial não teve escolha a não ser atirar no motorista. Mas esse relato da polícia foi rapidamente desmentido por uma gravação que registrou o momento em que a vítima foi baleada, assim como a ameaça de morte que o precedeu e que uma testemunha postou no Twitter.

No vídeo, é possível ver o Mercedes amarelo que Nahel estava dirigindo e dois policiais por perto; um dos policiais apoia a cabeça sobre a janela do motorista enquanto o outro, apoiando o cotovelo no para-brisa do carro, aponta uma arma diretamente para ele. Na gravação, é possível ouvir um deles dizer: “Vou meter uma bala na sua cabeça”. Assim que o carro arranca, o policial atira diretamente em Nahel. O carro para alguns metros à frente após atingir um poste, e Nahel morre apesar das tentativas de ressuscitação.

Esse vídeo expôs as mentiras das fontes policiais, cujo relato inicial circulou nos principais meios de comunicação. Diante do relato da polícia, a promotoria de Nanterre declarou que abriria uma investigação sobre as acusações de assassinato premeditado de autoridade pública.

Com o vídeo, no entanto, essas acusações caíram por terra, expondo a tentativa da polícia de encobrir um crime e proteger seus membros da responsabilidade. Diante disso, Yassine Bouzrou, advogado da família de Nahel, levantou a acusação de falso testemunho. O advogado do policial negou, em uma entrevista televisiva, que seu cliente tenha afirmado no testemunho que o garoto tentou avançar o carro sobre ele, o que confirma a mentira do relato da polícia. O jornal Libération criticou a cobertura do colega Le Parisien e do canal BFMTV por terem “noticiado a morte do garoto e divulgado o relato da polícia sem os devidos cuidados”.

Apesar da publicação do vídeo, a polícia continuou tentando justificar o assassinato do menino por meio de declarações de representantes, que foram até a mídia para controlar a narrativa. Em uma entrevista para o canal BFMTV, respondendo ao questionamento de se o comportamento do policial era justificado, o chefe de polícia de Paris considerou que era preciso ouvir a fala do policial para tentar perceber se ele havia identificado perigo antes de atirar.

Por outro lado, ninguém levou em consideração o perigo que Nahel deve ter percebido após o policial ameaçar atirar, apontando uma arma diretamente para ele. É como se a polícia estivesse procurando justificativa para o assassinato de um menor, apesar de o vídeo não indicar que ele representava qualquer ameaça. Ao mesmo tempo, a polícia parece ter ficado sem ideias de explicação sobre o motivo para um jovem motorista ter fugido depois de ouvir uma ameaça de morte, algo que pode ser claramente visto no vídeo, já que uma arma estava apontada para ele.

Lei e jurisdições policiais

Os defensores do policial que assassinou Nahel se baseiam no Artigo 435, parágrafo primeiro, da Lei de Segurança Interna promulgada em 2017. De acordo com legalistas, o artigo concede à polícia o direito de usar suas armas se um motorista não parar numa abordagem policial e quando houver possibilidade de a fuga desse motorista representar perigo à vida do policial ou de outras pessoas. Os juristas acreditam que a palavra “possibilidade” é vaga e sujeita ao critério do policial.

Em 15 de dezembro de 2022, o parlamento francês reivindicou a substituição da palavra “possibilidade” por “perigo iminente”, além de que se deveria mirar nas rodas do carro, não no motorista, mas a questão não foi discutida. Na opinião dos juristas, as medidas de segurança na França estão caminhando para o uso da violência. Isso fica evidente na declaração emitida pela aliança dos sindicatos da polícia (Alliance Police Nationale) e pela UNSA Police (organização sindicalista que representa a Polícia Nacional) em resposta aos protestos acompanhados por incêndios e depredação. A declaração convocava uma luta contra “as hordas perniciosas e selvagens que participaram dos tumultos noturnos desde a morte do jovem Nahel”. 

Em resposta, o líder da esquerda francesa Jean-Luc Mélenchon acusou os sindicatos policiais de convocar uma guerra civil. Uma enquete conduzida pelo instituto de pesquisa Cluster 17 e publicada pela agência France 24 mostrou que, no primeiro turno das eleições presidenciais de 2022, 64% dos membros da polícia e do exército votaram na extrema direita – 39% em Marine Le Pen e 24% em Eric Zemmour. 

Enquanto os protestos ainda aconteciam, a campanha de arrecadação de fundos para a família do policial que matou Nahel foi bastante significativa. Criada por Jean Messiha, ex-porta-voz de Eric Zemmour, a campanha foi encerrada na noite de terça-feira, 04 de julho, contabilizando cerca de um milhão e meio de euros arrecadados em cinco dias. A campanha e os pedidos de doação, alvo de muitas críticas, funcionaram como uma recompensa ao policial por ter assassinado um jovem francês descendente de imigrantes e um encorajamento a seus colegas para que sigam o exemplo, além de limitar o impacto da punição que vier a ser aplicada ao policial como resultado do crime.

Crises de raízes profundas 

Os protestos perderam força, enquanto políticos e todas as partes envolvidas parecem não ter prestado atenção à dimensão do problema e aos motivos dessa explosão política. As autoridades continuam a ignorar as raízes do problema, já que o discurso oficial se voltou para a responsabilidade dos pais, que deveriam impedir que seus filhos participassem de protestos. Foi também levantada a possibilidade de aplicar multas aos pais cujos filhos foram presos, medida que só agravaria a crise.

Não é coincidência o fato de que um terço das pessoas presas pela polícia sob acusação de revolta não passam dos 18 anos de idade.

É, na verdade, um indício da falta de confiança de grande parte da geração mais jovem nas forças policiais, assim como da necessidade deles de comunicar sua vontade de se rebelar e se manifestar contra a marginalização. 

Esses eventos não só levantam a questão da violência policial, mas também da situação dos subúrbios e dos bairros da classe trabalhadora nos arredores da capital, em sua maioria habitados por imigrantes e seus filhos. Isso tudo também levanta a questão da eficácia das políticas de integração adotadas e dos planos implementados ao longo das últimas quatro décadas, bem como do impacto do legado colonialista nas relações entre cidadãos do mesmo estado.

Mariam Seifeddine é militante da Marcha Mundial das Mulheres no Líbano e, atualmente, vive na França.

Original em árabe
Tradução do inglês por Rosana Felício dos Santos
Edição por Helena Zelic

Artigos Relacionados