Desde 2015 até hoje, há um aprofundamento da crise política e institucional na Guatemala, marcada por um pacto entre corruptos, uma aliança criminosa, com uma investida dos poderes mais obscuros e fundamentalistas e a presença das transnacionais nos territórios. Por sua vez, tal projeto de morte, impunidade e cooptação do Estado tem sido enfrentado pela resistência e mobilização dos povos, das mulheres e dos movimentos sociais. A luta dos povos e dos movimentos é histórica, defendendo a vida, a mãe–terra, a autodeterminação e a defesa do território corpo-terra.
Foi assim que saímos novamente às ruas no 29 de julho para uma paralisação nacional convocada pelos povos originários e movimentos de resistência. O povo guatemalteco – especialmente os povos originários, que são mais de 50% do país – se levantou para exigir uma mudança política radical. O modelo vigente é um pacto político institucionalizado que não representa os sujeitos plurais, nem uma proposta política baseada no bem viver e na livre determinação dos povos. Estamos diante de uma tensão por essa disputa de poder, tanto no nível simbólico, quanto no concreto das instituições territoriais e nacionais.
As mobilizações pedem diretamente a renúncia do presidente, Alejandro Giammattei, e da procuradora-geral María Consuelo Porras. Além disso, denunciam os problemas estruturais do país e evidenciam nossa proposta, dos povos e das mulheres, de fundar um Estado plurinacional. Temos muitas nações vivendo no mesmo país. Desde que as autoridades ancestrais, comunidades, povos e organizações convocaram a paralisação nacional, seguimos em luta permanente, com uma rota definida, ações de protesto e reivindicações nas ruas e nos territórios.
Antecedentes da paralisação nacional
O Estado da Guatemala foi fundado a partir de uma visão que deixa os povos originários de fora das decisões políticas e econômicas institucionais e, mais do que isso, propõe políticas para exterminá-los. Em resposta, surge a proposta de escrever uma nova Constituição com o objetivo de eliminar desigualdades.
Nos últimos 36 anos, desde a última Constituição, houve um período de conflito armado interno que, por sua vez, tem origens na violência colonial e patriarcal. Aconteceram diversos levantes e, nessas ocasiões, o Estado se encarregou de censurar as vozes da população. Depois de um tempo, a democracia supostamente chegou em nosso país e, desde então, um presidente é eleito a cada quatro anos. No entanto, os que presidem o país continuam sendo os setores responsáveis pela exploração do que ainda resta de nós, como povos.
Em 2015, aconteceram amplas manifestações para tirar o então presidente, Otto Pérez Molina, e a vice-presidenta, Roxana Baldetti, mas a prisão de ambos não resultou em nenhuma mudança profunda em nossa organização política e social. Não estamos repetindo o que houve em 2015 porque, agora, há proposições muito mais profundas. Estamos falando de um caminho a curto, médio e longo prazo para poder fundar um novo Estado com o qual todas sonhamos: o Estado plurinacional, baseado no bem viver.
Apesar de haver uma saturação no momento, devido à situação da pandemia, também ficou evidente que o que acomete o país é uma crise permanente. Não é nenhuma novidade a Guatemala pedir empréstimos para infraestrutura e que esta nunca chegue para a população. Isso está mais visível agora porque existe uma situação de emergência, mas essa política tem sido executada por todos os últimos governos.
Mudar o Estado, mudar a política
Estamos diante de uma crise política institucional que afeta as condições materiais e subjetivas da população, das mulheres, e, especificamente, dos povos originários. A crise é resultado de uma aliança criminosa, de um pacto político que conseguiu avançar na cooptação do Estado para institucionalizar uma política de espoliação que se materializa no cotidiano das mulheres. Essa espoliação provocou muitas brechas, com exacerbação dos privilégios fiscais, impactos na mãe terra e usurpação dos modos de vida nos territórios.
Devido ao avanço da cooptação das instituições, já não existe uma independência de poderes no país. A situação piorou quando o Ministério Público decidiu, de forma arbitrária, demitir o procurador Juan Francisco Sandoval, que dava continuidade a casos de corrupção no alto escalão. Por isso, os protestos rejeitam a impunidade e pedem transparência e a renúncia do presidente Alejandro Giammattei e da procuradora-geral Consuelo Porras.
A ofensiva do Estado contra as defensoras e defensores do povo tem se aprofundado desde o último governo, que começou ao mesmo tempo que a pandemia e anunciou diversas políticas de retirada de direitos. Eles estão endividando o país e as e os guatemaltecos. O Ministério da Saúde não assumiu sua responsabilidade para organizar a aplicação de vacinas e é de conhecimento público que algumas vacinas estão perto da data de vencimento.
Estão sendo fortalecidas as alianças mais espúrias com o narcotráfico, capital ilícito, fundamentalismos religiosos, o que têm gerado terror, medo, ódio e um forte racismo que se materializa na vida cotidiana.
Diante de um Estado omisso, as mulheres garantem o cuidado
Até o momento, são mais de 400 mil casos de covid-19 registrados no país e mais de 12 mil mortes. O sistema de saúde não foi capaz de desenvolver o programa de vacinação devido à falta de disposição política e corrupção. Os serviços não conseguem responder às necessidades da pandemia e esse também é outro motivo pelo qual a população está reagindo. As mulheres são as mais afetadas no tema da saúde, porque são elas que cuidam e são responsáveis pelas pessoas doentes, pelo cuidado e pela sustentabilidade da vida.
Além disso, a situação econômica da população é precária, com indicadores que refletem como o Estado não cuida das mulheres. A Guatemala tem uma das maiores taxas das Américas de desnutrição crônica de crianças menores de cinco anos. Só no primeiro semestre de 2021 foram contabilizados mais de 57 mil casos de gravidez infantil em meninas de 10 a 19 anos, segundo as informações do Observatório de Saúde Sexual e Reprodutiva (OSAR). Dessas, 2.737 têm até 14 anos. A alta taxa de gravidez de meninas e adolescentes representa o nível de violência que ronda as casas, as famílias e as comunidades.
Localmente, a violência contra as mulheres tem aumentado, especialmente a violência racista contra as mulheres dos povos originários. O acesso à justiça está mais difícil, já que os operadores do Poder Judiciário estão trabalhando em escalas. Outro problema que tem nos afetado nas comunidades é que as creches e escolas não estão funcionando, o que tem dobrado a quantidade de trabalho das mulheres em casa, que agora exercem o papel de mães e professoras.
Não existe nenhum programa nacional do Estado para erradicar a violência contra as mulheres, a discriminação e o racismo nas comunidades dos povos originários. Os direitos sexuais e reprodutivos estão mais vulneráveis territorialmente devido à presença das empresas transnacionais instaladas nos territórios. Temos uma mineração a céu aberto e um território militarizado. E tudo o que fazem os militares é assediar as mulheres, especialmente as mais jovens. A criminalização de defensoras e defensores de direitos humanos nos torna cada vez mais vulneráveis.
E é justamente nas situações de violações de direitos que acontecem os ataques mais fortes contra os povos originários, que são caluniados pela desinformação e por uma visão conservadora e racista. A divulgação de informações é racista, assim como o tratamento dado às comunidades, como vemos na dificuldade de acesso à vacina para as pessoas dos povos originários.
Agendas, sujeitos políticos, organização popular e indígena
A participação das mulheres dos povos originários e feministas nos movimentos gerais tem sido fundamental para fortalecer a articulação e reconhecer as diversidades de organização e de convocatória, valorizando nossa espiritualidade. Foram feitas diversas consultas nas cerimônias Maia para definir o momento mais propício e adequado para as ações.
As mulheres dos povos originários estão na luta direta contra o racismo, porque nossa vida está atravessada pelos sistemas de opressão. Existe uma forte rejeição contra nossas formas de viver, de vestir, de comer e falar, e por isso defendemos nossos conhecimentos coletivos, organizando amplos espaços de reflexão na sociedade para posicionar nossas lutas, apostas e propostas para uma vida plena. Faz parte da nossa natureza organizativa a defesa dos direitos coletivos e dos bens comuns.
Atualmente, no movimento estudantil, as companheiras fazem convocatórias, discursam, falam da realidade e dão corpo às lutas dos povos, algo que é novo nos últimos vinte anos do movimento dentro das universidades. Depois da desarticulação no pós-guerra, a juventude teve que recuperar seus espaços com novas formas de organização e denúncia. Por isso, hoje as intervenções artísticas fazem parte das mobilizações. As companheiras e os companheiros pintam as ruas, fazem mosaicos, entre outras novas formas de ação coletivas. Em 2015, cada um ia com seu cartazinho, mas agora a nova onda de protestos está sendo organizada com práticas e discursos coletivos e mais concretos.
Nos somamos às ações e propostas dos povos na Assembleia Plurinacional e, a partir dos coletivos feministas, estamos impulsionando a proposta de um Estado Plurinacional e Antipatriarcal. Romper com os paradigmas patriarcais para fazer um movimento nacional antipatriarcal é algo complexo, mas ainda assim colocamos a proposta sobre a mesa nos espaços de discussão. As novas líderes estudantis falam inclusive da violência que podemos sofrer dentro dos movimentos sociais mistos, e elaboram como não tolerar os companheiros que dizem estar de acordo conosco, mas reproduzem a violência.
Mas como sustentar a vida em meio a tanto retrocesso nos direitos humanos? Na Aliança Política Setor de Mulheres (APSM), que faz parte da Marcha Mundial das Mulheres, viemos de uma trajetória de apostas feministas e plurais, unindo a luta territorial à solidariedade internacional. Nosso processo de alianças se baseia em princípios e consensos para a construção de sujeitas e sujeitos políticos plurais para um projeto de transformação. Os movimentos articulados potencializam a força popular quando têm cumplicidade e pacto político comum, apesar das tensões presentes nas diferenças entre as organizações. Há pontos em comum que unem nossas cosmovisões e movimentos: queremos escancarar as ações racistas e a violência política, e recuperar as propostas políticas das mulheres dos povos originários pela emancipação.
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Aurora Monzón, Esperanza Tubac, Isabel Saenz, Karen Molina, María Velázquez, Milvian Aspuac e Tita Godínez são integrantes, militantes, ativistas e defensoras da Aliança Política Setor de Mulheres (APSM), um movimento auto-organizado de resistência que faz parte da Marcha Mundial das Mulheres na Guatemala. Sua ação está voltada para a defesa da vida, da dignidade humana e uma relação de harmonia com a natureza.