Corpo e território na luta feminista

24/01/2023 |

Por Miriam Nobre

Leia a reflexão de Miriam Nobre sobre experiências de resistência coletiva diante da ofensiva do capital sobre a natureza

Para falar sobre a relação entre corpo e território,  começamos olhando para a forma como essa ordem capitalista, colonialista, racista, patriarcal se impõe sobre nós. Pensando nisso, recuperamos uma ideia que Angela Davis formulou, a partir dos Estados Unidos, sobre como a plantation, um modo de monocultura, estrutura e organiza a economia. Grada Kilomba usa essa mesma ideia para pensar como nossa subjetividade se estruturou. Aqui no Brasil, nós podemos usar essa mesma referência para falar sobre a estrutura e a forma como a economia e o trabalho se organizam.

Nos referimos ao processo de cercamento das terras, de genocídio da população indígena, de apropriação das suas terras e de instalação de um modo de produção com um grau de exploração da força de trabalho tão violento que foi baseado no sequestro de pessoas.

Essa forma de cercamento e apropriação da natureza é acompanhada pela utilização do corpo das mulheres negras e indígenas, não só como trabalhadoras superexploradas, mas também como produtoras de pessoas disponíveis para o trabalho.

Em gerações recentes, é comum ouvir muitas pessoas dizerem que as suas avós foram pegas a laço, pegas a dente de cachorro. O corpo das mulheres instaurou essa biopolítica do capital, uma extrema agressividade. Essa biopolítica situa o nosso país em uma divisão internacional, sexual e racial do trabalho que perdura até os dias atuais.

Enfrentando o capitalismo e a naturalização da exploração

Nosso primeiro desafio é desnaturalizar essa forma de atuação do capitalismo colonialista. É preciso mostrar que não tem nada de natural nessa ordem. São opções políticas realizadas por grupos de pessoas. Junto disso, queremos ressignificar o que é a natureza, aprendendo com os saberes das comunidades tradicionais que vivenciam a concepção de que nós somos natureza.

Se, por um lado, temos a tarefa de “desnaturalização”, por outro queremos reconhecer visões de natureza e de relação com os territórios e com os corpos que sustentam resistências. Ao aprender com elas, podemos reconectar corpo e território, sustentando também a nossa resistência.  

A noção de território em comunidades quilombolas, indígenas e afrodescendentes rurais extrapola e implode a noção de propriedade privada. As comunidades pensam os territórios como organizações não passíveis de cercamentos. Nessa visão, os territórios são caminhos. As comunidades estão sempre se movimentando, andando pelos territórios. As próprias sementes e as plantas andam pelos territórios e, por isso, têm vida. Desse modo, a ideia de cercamentos, sejam genéticos com transgenia ou com bancos e casas de sementes, nunca dão conta dessa potencialidade do movimento da vida.

Nos diálogos com essas comunidades, falar de território impondo a lógica dos cercamentos traz conflitos. As comunidades indígenas e quilombolas compartilham caminhos. Quando é preciso delimitar o que é um território indígena e o que é um território quilombola, é corriqueiro que as áreas comuns não consigam ser entendidas pela visão legal que sustenta a propriedade privada.

As mulheres quilombolas percebem o território não somente como os caminhos que elas fazem, mas também como os caminhos que as águas fazem. O caminho das águas organiza o território e a visão que as mulheres têm dele. Por isso, para elas é chocante quando o Estado faz um corte reto e diz que o limite do território está ali onde eles colocam a demarcação. No mesmo sentido, a distribuição do trabalho é organizada entre uma grota e outra. Por isso, para elas, a percepção da água secando não só traz a ideia de faltar o recurso da água, mas é também a percepção de que o seu território está deixando de ter vida.

Outro exemplo forte aqui no Brasil é o das quebradeiras de coco-babaçu. São mulheres que vivem do extrativismo. Extrativismo, nesse sentido, tem a ver com uma extração que não é a do extrativismo capitalista, que considera a natureza como recurso  escasso. Ao contrário, essa atividade econômica das quebradeiras de coco-babaçu se baseia na convivência com a natureza e questiona a ideia da escassez. Enfrenta, ainda, a ideia de que viver da natureza é viver com escassez, sendo essa escassez frequentemente imposta pelo capitalismo. Também combate o discurso  de que as pessoas terão de trabalhar muitas horas e fazer uma agricultura com muitos insumos para que possam ter bem estar.

Essas mulheres, assim como tantas que vivem da coleta, seja do coco babaçu, da mangaba ou de outros tantos frutos, reivindicam o livre acesso às palmeiras de babaçu, questionando legislações pautadas nas ideias de cerca e de propriedade privada.

Território e pertencimento

Um ensinamento fundamental das comunidades tradicionais para pensarmos o território é o sentido do pertencimento e do enraizamento. Aqui no Brasil, as comunidades afrodescendentes tem o costume de enterrar o umbigo na terra onde nasceram e foram criados. Enterrar o umbigo tem uma significação muito grande, de que aquela terra está dentro da pessoa, mesmo que ela não esteja mais vivendo ali. Certa vez, uma companheira contou que  mudou de uma pequena cidade com a família, do norte de Minas Gerais, para a cidade de São Paulo, uma megalópole. Ela foi viver na periferia da cidade, em uma época em que a periferia ainda era praticamente rural. Ali, foi vendo essa periferia ser urbanizada e percebendo as injustiças desse processo. O processo de urbanização foi uma artificialização e degradação das condições de vida. Nas férias, ela sempre voltava para o norte de Minas e a tia a benzia, mostrava onde estava seu umbigo enterrado, e falava para ela nunca perder aquela percepção da natureza. Com essa consciência, ela foi lutando contra esse processo de desestruturação da vida na cidade. Na mesma oficina, havia uma companheira bem mais jovem, que afirmou que, para ela,  racismo era morar em um lugar onde não tinha nenhuma árvore, onde não tinha nenhum verde e onde tudo era cimento.

A escritora Conceição Evaristo também nos conta histórias lindas sobre o umbigo. Nos seus romances, ela escreve o que foi a vivência dela em uma favela: a condição de vida era bastante precária, mas existia uma comunidade e uma relação de cuidado entre vizinhas e vizinhos. Essa favela foi destruída na época da ditadura militar, supostamente em um processo de urbanização. No terreno que ficou vazio, foi construído um grande hipermercado. Quando ela volta naquele hipermercado, diz que lá está enterrado o seu umbigo. Ao falar disso, ela combate o apagamento da memória das pessoas, que está enraizada nos territórios.

Um dos processos de aceleração do capitalismo envolve apagar as memórias que as pessoas têm nos seus territórios.

As comunidades indígenas têm vivido processos de retomada de territórios e também de ressurgência dos povos, como os Guarani Kaiowá e os Tupinambás. Comunidades que estavam desarticuladas como povo, que tinham identidade mais como agricultores familiares do que como povos indígenas, nesse processo político de encontro vão ressignificando suas relações de parentesco,  recuperando e reconhecendo formas de fazer agricultura, formas de viver a vida e de viver a sua temporalidade. Esse pertencimento resiste ao apagamento da memória.

Uma vez, em uma atividade organizada pela Marcha Mundial das Mulheres nos Estados Unidos, aconteceu um ritual de defesa de um campo sagrado indígena que foi transformado em um estacionamento. Estávamos no estacionamento de um shopping center, mas na hora que aquele povo indígena chegou, elas transformaram aquele espaço no espaço sagrado onde elas tinham existido – onde provavelmente, se fosse no Brasil, seus umbigos estariam enterrados. Por isso, esse processo de reconhecimentos e de reconexões faz parte também do processo político, organizativo, de formação e construção de conhecimento. 

Caminhos para a reflexão sobre sentir, pensar e resistir 

Frequentemente nós fazemos oficinas para reconectar o que é nosso corpo e o que é nosso território. Começamos com uma reflexão, por meio de uma meditação guiada, propondo pensar no grau de degradação ambiental e de ataques aos territórios que as mulheres estavam vivendo, e como sentimos isso no corpo. A garganta seca, o coração aperta e dá um embrulho na barriga. Como sentimos?

Atualmente, em nome da conservação de uma natureza “sem gente”, nas trilhas da economia verde, é recorrente o não reconhecimento das comunidades tradicionais como garantidoras da existência de uma natureza e uma biodiversidade. O sentido dessa política é proteger algumas áreas como unidades de conservação de responsabilidade do Estado, junto a um processo de privatização. Dentro dessa formalidade, colocam a ideia de participação da população por meio de um conselho gestor. Isso acontece no Vale do Ribeira, por exemplo. Escutando as mulheres, ficava evidente que essa participação era muito difícil, porque ela tinha que acontecer nos tempos e termos impostos pelo Estado: na linguagem, no formato e nos documentos de muitas páginas. É uma lógica completamente diferente daquela da comunidade. Mesmo assim, as mulheres reagiam, falavam e contestavam. Nós nos perguntávamos como elas haviam entendido o que esses documentos estavam falando. E a resposta delas é de que não haviam entendido, mas a primeira sensação que tiveram foi que seus estômagos embrulharam. Ou seja, a primeira percepção que elas tinham de que aquilo estava muito errado, era uma sensação corporal. Reconectar com aquele primeiro sentimento que vivemos no nosso corpo foi a forma da gente iniciar processos de resistência, lidando com a apropriação e cooptação dos nossos termos, e com a pressão sobre as lideranças.

Em 2022, Bruno Pereira, indigenista, servidor público da fundação que atuava com os indígenas e que estava de licença, e Dom Phillips, jornalista,  foram assassinados. Eles foram assassinados no dia 5 de junho, comemorado como Dia do Meio Ambiente. Seus corpos foram encontrados em 23 de junho, e vivemos um momento de muita comoção e lembrança de muitas pessoas que vêm sendo continuamente assassinadas na Amazônia dado a conflitos agrários e ambientais. Algumas pessoas têm nomeado esse processo como uma guerra que acontece de forma permanente nesses enclaves da natureza, que são os refúgios para manter um equilíbrio climático, para o reconhecimento da biodiversidade e muitas outras coisas.

Assim, um compromisso nosso é estar junto com aquele povo, reconhecendo as suas contribuições e conhecendo tudo que eles nos aportam, mas também atuar para desartificializar todos os territórios. Lutar para ampliar o que são suportes de vida em todos os espaços, para que não sejam mais enclaves ou só refúgios. Para que os refúgios se expandam.

Nosso debate sobre território e corpo, que aprende tanto com as visões tradicionais que resistem há milênios, deve ser exercitado nos territórios onde nós estamos. Nos territórios artificializados da cidade e também nos processos de aliança.  

Lutamos para nos libertar minuto a minuto, metro quadrado por metro quadrado, das imposições colonialista, patriarcais e capitalistas sobre a nossa vida.

Texto editado a partir da contribuição de Miriam Nobre na Escola de Formação Feminista da Marcha Mundial das Mulheres – Américas

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