Construir um tratado vinculante para transnacionais é uma luta feminista

17/11/2021 |

Por Júlia Garcia, Letícia Paranhos e Tchenna Maso

As mulheres são as mais afetadas pelo poder das empresas transnacionais; mas são, também, a principal resistência contra elas.

Friends of the Earth, 2021

Na última semana de outubro de 2021 se realizou em Genebra a 7ª sessão de negociação do grupo intergovernamental para criação de um tratado vinculante para empresas transnacionais e outras empresas em matéria de direitos humanos, no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). A sessão presidida pelo Equador contou com a participação de mais de 70 países.

A luta por essa normatização se centra na necessidade de controlar as ações de empresas transnacionais nos territórios a partir de uma legislação internacional que as responsabilize pela violação sistemática aos direitos humanos que ocorre a partir das suas atividades.

Entre as práticas mais comuns estão a apropriação da natureza de forma indiscriminada, a destruição dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais; perda da soberania alimentar; a criminalização e violência; a flexibilização de direitos e a precarização das condições de trabalho; e a inviabilidade de manutenção das relações sociais construídas em comunidade, forçando a migração ou o reassentamento de grandes parcelas populacionais.

Impactos dos tratados de livre comércio

Desde 1972, com a intervenção de Salvador Allende na ONU, se evidencia a gravidade da concentração de poder político, econômico e cultural pelas empresas transnacionais ao longo dos anos. Essas corporações possuem muito mais capital do que diversos Estados, que terminam controlados por elas devido à dependência econômica. Assim, ao invés de responsabilizar as empresas pelos danos socioambientais causados, o Estado torna-se cúmplice de sua atuação.

Os tratados de livre comércio e investimento também contribuem para a impunidade corporativa, ao privilegiar direitos econômicos em detrimento dos direitos humanos, estabelecendo mecanismos de arbitragem internacional. Em razão disso, muitos Estados que ousam responsabilizar as empresas terminam condenados em cortes de arbitragem. Alguns exemplos são o caso Uruguai vs. Philip Morris e o caso Equador vs. Chevron.

Ainda dentro das práticas comuns das transnacionais ao redor do mundo, podemos destacar a superexploração das mulheres. Excluídas dos processos produtivos dessas empresas, as mulheres se inserem nessas atividades de forma marginalizada e em situação de vulnerabilidade. Desde a exploração do trabalho até à exploração sexual, devemos dizer que o modus operandi das grandes empresas ultrapassa fronteiras e encontra um terreno fértil de impunidade pela falta de legislação em seus próprios países.

Essa realidade é imperativa, principalmente no sul global, mas também se torna motor do envolvimento e da liderança das mulheres nos processos de resistência. As mulheres de todo o mundo protagonizam as lutas por uma sociedade mais justa, em defesa da natureza, pelo fim da violência e da exploração sexual, por moradia, acesso a alimentos e água. As empresas transnacionais têm destruído os tecidos sociais e modos de produção da vida gerando maior sobrecarga de trabalho às mulheres, que sustentam toda a economia de cuidado, devido à estrutura social patriarcal.

Um exemplo marcante foi em 28 de abril de 2013, quando desabou o edifício Rana Plaza, em Bangladesh, matando 1138 pessoas. Dessas, 80% eram mulheres, trabalhadoras da indústria têxtil. Essas trabalhadoras produziam para grandes marcas como H&M, C&A e Benetton em condições de insalubridade e baixos salários. Não é raridade as transnacionais colocarem as mulheres trabalhadoras para produzir em condições degradantes e em sublocação de espaços para minimizar seus custos de produção.

Friends of the Earth, 2021

A intervenção das mulheres em Genebra

É precisamente porque as mulheres lideram a defesa dos territórios diante do avanço do poder e controle das empresas transnacionais que observamos uma forte liderança feminista e jovem nessa 7ª sessão.

São mulheres que se movem a partir dos seus territórios e que levam para as sessões da ONU pautas insubordinadas e rebeldes, para combater a desenfreada ação capitalista e colonial em suas comunidades.

O cenário de disputa de ideias encabeçado por mulheres trouxe diversas atrizes políticas que ocupam tanto as lideranças dos países que defendem posições mais avançadas sobre a regulação das transnacionais, como a Palestina e Egito, bem como as que atuam na sociedade civil. Foi o caso das juristas populares defendendo as pautas políticas com rigor da técnica jurídica, e das lideranças feministas de movimentos populares, com suas falas potentes. Sem dúvida, as grandes articulações políticas de defesa dos povos da agenda são lideradas por mulheres.

O papel dessas mulheres foi fundamental para que o conteúdo dessa normatização levasse em conta as diferentes condições às quais são expostos os grupos sociais mais vulneráveis na perspectiva econômica, social e ambiental, como as crianças.  A organização das mulheres tem levado para a mesa de debates toda a problemática de gênero que envolve a atuação dessas empresas, desmascarando suas falsas políticas inclusivas.

Muitos desafios se desenham para a construção de um tratado vinculante ambicioso, capaz de dar fim à impunidade das transnacionais. Entre eles, podemos destacar: a necessidade de superar as tentativas estadunidenses de esvaziamento da agenda pela construção de iniciativas de “quase-direito” (soft law); as iniciativas de envolvimento das corporações nas negociações proposta pela União Europeia; e a incerteza sobre a continuidade da metodologia de negociação por parte do Equador.

Sujeitos em luta contra a impunidade corporativa

O papel das organizações populares em pressionar seus Estados para defender os interesses dos povos nessa negociação será decisivo no intervalo entre essa sessão e a próxima. Também o será a mobilização dos parlamentares para avançar em marcos regulatórios para punir as violações de direitos humanos pelas corporações.

A Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Pôr Fim à Impunidade foi fundada em 2012 e é formada por mais de 250 organizações, movimentos sociais e comunidades afetadas por transnacionais. Os membros da Campanha acompanham e incidem no processo de negociação pelo Tratado Vinculante desde o início em 2014. O símbolo da campanha nos ajuda a pensar na mobilização que precisamos construir: um homem branco de terno e gravata, representando o poder corporativo, caído no chão e sendo detido pelo povo.

Agora, após a 7ª sessão de negociações, podemos afirmar que as mulheres estão à frente dessa luta, rompendo com os padrões do Direito Internacional e tocando o nervo do sistema capitalista, racista e patriarcal.

O protagonismo das mulheres resistindo aos impactos das transnacionais nos territórios e a liderança de mulheres no processo de negociação do tratado vinculante impõem a todas as organizações que lutam contra o poder corporativo que reconheçam que essa é uma luta feminista. É preciso, portanto, repensar sua simbologia, liderança e posicionamentos para reconhecer esse sujeito político chave. De igual modo, os países que estão negociando o documento precisam compreender que suas posições nesse processo influenciam diretamente no cotidiano da vida de milhares de mulheres no mundo.

A luta pelo tratado vinculante é também uma agenda na luta feminista para desmantelar o sistema patriarcal, capitalista e racista, já que as transnacionais representam a face mais brutal desse sistema nos territórios.

O protagonismo das mulheres nesse processo reflete toda a luta histórica e organização política feminista para construir uma economia e política que coloque a vida no centro, em vez do lucro. Assim, seguiremos em luta para que os marcos do direito internacional avancem, sejam efetivos na realidade concreta; para que possamos reduzir a assimetria de poderes entre transnacionais e povos; para criarmos melhores condições de existência e sobrevivermos enquanto tecemos outros modos de produção.

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Júlia Garcia é militante do Movimento das e dos Atingidos por Barragens (MAB) no Brasil, Letícia Paranhos integra os Amigos da Terra Internacional (ATI) e Tchenna Maso é pesquisadora-associada na Homa – Centro de Direitos Humanos e Empresas. As autoras fazem parte da Campanha Global para Reivindicar a  Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Pôr Fim à Impunidade

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