A maternidade e a sexualidade são questões sobre as quais as mulheres moçambicanas encontram pouco espaço para compartilhar e refletir coletivamente. Em Moçambique, é muito comum que as mulheres tenham muitos filhos por obrigação, mesmo que eles não traduzam um desejo e um sentimento prazeroso sobre ser mãe. A realidade de conflitos armados reforça, na maternidade, a função de alimentar a própria guerra. O grande problema da desnutrição assola os corpos das mulheres, que mesmo com fome precisam procurar forças para alimentar os seus bebês. Esses são apenas alguns exemplos de como a maternidade é uma questão que envolve toda a organização social e econômica, e não apenas a vida privada de cada mulher.
As mulheres são cobradas para serem mães e se tornam muitas vezes as únicas responsáveis pela criação dos seus filhos. Espera-se que tenham respostas para tudo. Enquanto mulheres feministas, nos impomos sobre essa cobrança que nos é colocada. “Não temos diploma de mãe”, afirmamos. Ainda encontramos, porém, muitos desafios, pois as mulheres têm dificuldade para falar e compartilhar suas realidades.
Nossa intervenção feminista dentro do país é a de criar espaços de discussão e estratégias para facilitar o acesso das mulheres a serviços de saúde. É necessário olhar mais atentamente para as necessidades das mulheres. Apoiamos a construção de grupos de mulheres que organizam, cada vez mais, as reivindicações no campo da assistência à saúde.
Chega de controle e mercantilização dos nossos corpos
No campo da sexualidade, uma das nossas experiências mais marcantes foi em 2012, quando protestamos contra a fábrica nacional de produção de cerveja que, na ocasião, havia lançado um novo produto cuja publicidade mostrava uma garrafa com o formato de um corpo feminino. Nossa reivindicação pública sobre a sexualização e mercantilização do corpo das mulheres foi levada inclusive à Procuradoria, que nos respondeu positivamente, mandando que a propaganda, que já circulava em todo o país, fosse retirada.
Esse caso nos rendeu bons frutos, mas é importante visibilizar que as instituições públicas são também responsáveis por diversas formas de controle sobre o corpo das mulheres. Nós não podemos entrar em um prédio público com certas roupas, e isso é uma ferramenta para nos excluir dos espaços públicos e de decisão. Vivemos em um Estado conservador, fechado e que bloqueia os debates sobre sexualidade.
Outro caso que ilustra nossa realidade foi o de uma jovem mulher que foi nomeada governadora e, depois, teve fotografias privadas expostas ao público. Isso foi usado para desacreditar as suas capacidades profissionais e políticas. Fizemos uma intervenção pública denunciando novamente a sexualização do corpo das mulheres.
Em termos de organização, há uma caminhada ainda muito longa a se fazer. Estamos empenhadas com a formação política para o reconhecimento das desigualdades. Para que as mulheres reconheçam as várias artimanhas do patriarcado que nos fazem aceitar determinadas práticas como naturais e normalizá-las. Essas práticas colocam as mulheres no lugar de submissão.
Há grupos que procuram sempre confundir a sociedade, dizendo que nossa intervenção é um ataque ao governo e que, por isso, nós servimos a interesses ocidentais. Toda forma de organização que tem em vista a ocupação do espaço público e a desconstrução dessa lógica de opressão é desacreditada pelas instituições mais conservadoras e pelos que são privilegiados. Isso aconteceu conosco. Nós chegamos a receber mensagens pelas redes sociais que nos difamavam e ameaçavam.
Especificamente em Maputo, a capital do país, começam a surgir “novos” fenômenos conservadores, como é o caso das “conselheiras do lar”. São relações totalmente patriarcais de mulheres que ganham uma posição mais pública na sociedade através das redes sociais. Essa representação atrofia a mentalidade das mulheres. É uma imagem que conduz as mulheres ao lar, em favor do sistema patriarcal. O que vemos é o conservadorismo se alargando para além das instituições formais, avançando para essas novas figuras na sociedade que mantêm e atualizam as práticas patriarcais na vida das mulheres. Fazem o conservadorismo acontecer por uma ideia da cultura de bem estar, distorcendo a realidade..
Pautamos a revisão do Código Penal em 2014. Um dos artigos do Código dizia não haver crime de estupro caso o violador casasse com a vítima. Defendemos que uma união de casamento não pode servir para legitimar a violência, nem anular este crime e que toda violação sexual deve ser penalizada. O artigo se sustenta em um sistema patriarcal que naturaliza a satisfação de necessidades sexuais dos homens. Daí que é comum desculpar e não penalizar. Em muitas comunidades do meio rural, onde as instituições são incipientes na prestação de serviços, casos de violência sexual não chegam até as autoridades locais. São feitos arranjos dentro da família, acertos “amigáveis” para encobrir estas situações. Muitas armadilhas tinham sido colocadas durante o processo de revisão do Código Penal. Elas estão diretamente ligadas à questão da sexualidade, da autonomia e do corpo das mulheres, e nossa luta é por conseguir eliminá-las. Sempre podemos sofrer retrocessos e colocar em risco os direitos já alcançados se não estivermos atentas.
A formação política é um espaço de organização que permite que as mulheres reconheçam e falem mais abertamente das questões de sexualidade e do corpo. Ainda são poucas as mulheres que atuam publicamente a partir do aprendizado do espaço da formação política, mas ele tem sido, para nós, o canal de organização do pensamento político, do reconhecimento da autonomia e da liberdade.
Enfrentar os privilégios masculinos para que as mulheres tenham direito a uma sexualidade livre
Nas instituições, as forças conservadoras tentam fazer revisões e reformas legislativas para que os interesses particulares sejam acomodados. Esses interesses particulares estão relacionados com os interesses dos homens. Muitos deles são, por exemplo, praticantes de relações poligâmicas, ainda que tenham um casamento monogâmico. Manter relacionamentos e até outras famílias simultaneamente é um privilégio dos homens, uma prática enaltecida no campo da masculinidade, não sendo exercida pelas mulheres.
Há muitas mulheres que aceitam a poligamia porque ter um marido é algo que as dá uma falsa posição na sociedade, dignidade e sustento. Uma mulher sem parceiro, para essa sociedade patriarcal, é como se não existisse. É um desafio fortalecer a dimensão de que nosso sentimento de realização pode partir de nós mesmas. Os homens que desenvolvem famílias com várias mulheres as fazem acreditar que são seus maridos oficialmente, mas não há nenhum documento que prove esta união. Muitas almejam ter seus direitos como esposas, mas na realidade não têm nenhum relacionamento oficial.
É muito importante entendermos as relações entre sexualidade e controle e, por consequência, os papéis que são impostos às mulheres. A maior parte da população moçambicana é rural e neste lugar é muito comum que as mulheres mais velhas arranjem mulheres mais novas para seus próprios maridos. O que existe é o deslocamento de papéis daquela mulher: do lugar de esposa para o lugar de mãe. As mulheres mais velhas passam a cuidar dos seus maridos como se fossem seus filhos. Elas se tornam organizadoras da vida do marido e se preocupam em provê-los uma satisfação sexual se colocando no lugar de intermediação entre ele e novas mulheres.
É comum que as relações poligâmicas sejam sempre com mulheres mais jovens, como se fosse o termômetro da masculinidade. O indivíduo que tem um relacionamento com uma mulher mais nova recebe o status de um peso adicional a sua performance, que o classifica como “mais homem” diante dos outros. Enquanto isso, tenta-se fazer com que as mulheres mais adultas se vejam menos atraentes, com menos capacidade de sentir prazer.
Precisamos desconstruir o prazer como algo que o outro nos dá. Ampliar a compreensão do nosso corpo e da liberdade para dialogar coletivamente sobre os fantasmas da sexualidade. Todos os estereótipos gerados em volta da sexualidade feminina são carregados de vergonha, culpa e receios que remetem ao controle patriarcal e capitalista. Desmascarar essas artimanhas é um passo para a autonomia das mulheres, para que vivenciemos o prazer livre de opressão.
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Maira Domingos é militante da Marcha Mundial das Mulheres de Moçambique e Diretora de Programas do Fórum Mulher.