Os movimentos sociais que lutam por soberania alimentar e agroecologia denunciam e rechaçam a ofensiva do poder corporativo sobre a alimentação e a natureza, representada pela Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Sistemas Alimentares (UNFSS – UN Food Systems Summit).
Essa conferência é resultado de um acordo entre a ONU e o Fórum Econômico Mundial e é a estratégia das grandes corporações transnacionais para avançar sobre a alimentação. A conferência é organizada pelo modelo de “múltiplas partes interessadas”, o que coloca as empresas transnacionais no centro da definição política. Consolida-se, assim, a privatização da política e a captura corporativa do sistema ONU.
A conferência passa por cima de processos e instâncias construídos há décadas com a participação de movimentos camponeses e indígenas, desconsidera a declaração das nações unidas sobre os direitos camponeses e ataca diretamente a soberania alimentar. Por isso, a Via Campesina convoca o boicote a essa Conferência sob o mote: “Nunca mais em nosso nome!”
As mulheres da Marcha Mundial das Mulheres, Amigos da Terra Internacional, FIAN e Via Campesina têm denunciado[1] a ofensiva de apropriação do mercado sobre a natureza, os territórios e a alimentação. Diversas frentes do capitalismo racista, patriarcal e colonialismo convergem nessa ofensiva. A apropriação dos sistemas alimentares, a agricultura 4.0, a economia verde e as chamadas soluções baseadas na natureza estão relacionadas entre si, e tem como pano de fundo a digitalização.
Mais uma vez, as elites econômicas usam a profunda crise que vivemos como justificativa para suas falsas soluções, que incorporam mais a natureza no circuito financeirizado da acumulação capitalista.
Nossa resistência parte da crítica e da afirmação de que a forma como os povos, camponeses, indígenas e mulheres historicamente fazem agricultura e se relacionam com a natureza são as verdadeiras soluções.
O lugar da alimentação e da natureza no conflito capital-vida
A alimentação não é pode ser encarada de forma isolada, pois está no centro da organização da sociedade e da nossa vida em comum. Quando as corporações transnacionais se organizam para controlar todo o sistema alimentar, elas querem controlar a sociedade e a vida.
As mulheres alertam que está em jogo uma mudança no sentido e significado dos alimentos e da alimentação. Isso se relaciona ao processo em curso de reformulação da indústria dos alimentos. Nele, os produtos alimentícios ultraprocessados apresentam a “fortificação” como solução. Colocam “mais cálcio” no leite ou trocam o açúcar da Coca-cola por estévia, como se ser saudável se resumisse a isso. Ser “nutritivo” passa a ser medido pela fragmentação de substâncias, que podem ser produzidas em laboratório, em um processo avançado de tornar artificial tudo o que comemos.
Por isso, é importante estarmos atentas em nossas análises integrais, compreendendo a relação entre o acaparamento de terras e expulsão dos camponeses pelo agronegócio, e os investimentos em biologia sintética e molecular, por exemplo.
Bill Gates é uma das figuras que representam essa articulação corporativa para o controle dos sistemas alimentares: suas fundações e fundos de investimentos estão, simultaneamente, comprando grandes quantidades de terras, investindo em pesticidas, corporações de sementes, propriedade intelectual e aplicativos para colocar pequenos agricultores e camponesas sob seu controle digitalizado, empresas de proteína vegetal, entre outros. Não à toa, a pessoa que está à frente da Conferência de Sistemas Alimentares é presidente da AGRA (Aliança para uma Revolução Verde na África), uma iniciativa financiada por Bill Gates.
Um aspecto central da reflexão feminista sobre os perigos da Conferência é a relação entre alimentação e natureza. O marco para essa relação é o capitalismo verde. Reduzindo a complexidade da crise ambiental às mudanças climáticas, os projetos de economia verde estão orientados à criação de novos mercados, inseridos na lógica de especulação e financeirização. São os mercados de carbono, dos quais o REDD+ é uma referência e os mercados ecossistêmicos conformados por exemplo por pagamentos por serviços ambientais. Os fundos de investimento de impacto em “sistemas alimentares climaticamente inteligentes” são exemplares na incorporação da agricultura no circuito da economia verde.
A disputa política em torno da alimentação e da natureza passa por explicitar a incompatibilidade entre duas lógicas: a da sustentabilidade e cuidado da vida, de um lado, e a de acumulação de capital (que inclui a acumulação de dados como capital), de outro. São lógicas irreconciliáveis, com concepções de natureza totalmente diferentes.
Diversidade e complexidade contra a redução e homogeneização
Aplicativos, drones e sensores são oferecidos com a promessa de facilitar o trabalho agrícola. Por trás deles, está o pacote tecnológico das corporações. Essas tecnologias não são neutras. Seu sentido é fragmentar e reduzir tudo a dados binários, homogeneizar e se apropriar do que é vivo.
Os algoritmos falam o idioma do agronegócio, só conhecem uma forma de cultivo (em linha), com sementes modificadas e patenteadas e pesticidas. Essa forma de fazer agricultura não tem nada a ver com o cultivo agroecológico, em que a complexidade e a diversidade predominam.
A datificação pretende artificializar a vida, acelerando os ritmos sem respeitar os tempos de regeneração da natureza, dos corpos, do cuidado com o que é vivo. E, para fazer isso, oculta a dependência que temos entre nós e em relação à natureza.
Na Conferência de Sistemas Alimentares, a Bayer, a Syngenta e o Conselho Empresarial Mundial de Desenvolvimento Sustentável [World Business Council for Sustainable Development – WBCSD] – organização internacional de mais de 200 empresas em torno do desenvolvimento sustentável – impulsionam as discussões sobre as “oportunidades de investimento no solo”. Orientam-se por uma visão que reduz o solo a um sumidouro de carbono. Por outro lado, as agricultoras agroecológicas consideram o solo como um organismo vivo e diverso. Uma das contribuições das mulheres na agricultura agroecológica é cuidar e cultivar um solo fértil, rico e complexo.
Ampliando a discussão, as companheiras denunciam o discurso das corporações que chegam nos territórios prometendo investir em “territórios ociosos”. Em Moçambique, por exemplo, empresas chamam de “ociosas” as terras que não são usadas para a machamba (cultivo). Mas não há espaço sem uso nos territórios das comunidades. É desse espaço que as mulheres extraem plantas medicinais e são esses espaços usados para cultos e rezas e onde, inclusive, as comunidades encontram força para a resistência e a vida em comum. Esses espaços vitais são negados e apropriados em nome de uma visão de progresso devastadora. Afirmar esses territórios e seus usos é reconhecer práticas ancestrais e aprendizados entre gerações – práticas que tem sido, inclusive, criminalizadas pelos projetos de economia verde.
Impulsionada por organizações transnacionais como WWF e TNC, a política ambiental conservacionista carrega em si um racismo ambiental profundamente colonialista. Expulsam comunidades de seus territórios em nome da conservação ambiental, como se os modos de vida das comunidades tradicionais fossem contraditórios com a natureza. São essas comunidades que historicamente cuidam e nutrem a biodiversidade.
A agroecologia feminista não pode ser capturada pelas corporações
Um dos grandes perigos da Conferência é estabelecer os marcos necessários para inserir a agroecologia no circuito da economia verde. A partir da ideia de “neutralidade do carbono” com as soluções baseadas na natureza, esses agentes têm discutido ampliar o mercado de carbono para mangues, oceanos e agroecologia e ampliar a financerização da natureza.Agroecologia é prática, ciência e movimento. Não pode ser apropriada de maneira fragmentada e seletiva, muito menos descolada do sujeito político que a constrói. O que se considera ciência e tecnologia também está em disputa na Conferência . O poder corporativo pretende legitimar uma ciência antropocêntrica e androcêntrica[2] para os sistemas alimentares, vinculada aos interesses das empresas e à reorganização da linguagem do capital.
Agroecologia é um conhecimento estratégico. As mulheres reivindicam os saberes e tecnologias dos povos e denunciam o epistemicídio, que é a destruição de conhecimentos e culturas de povos racializados. .
A maquiagem verde e lilás estão articuladas na agenda corporativa da Conferência, tendo como eixo transversal o empoderamento das mulheres em uma perspectiva neoliberal. Daí resultam slogans como “a natureza contrata as mulheres”.
Nos projetos de carbono azul em oceanos e manguezais (como o Vida Manglar, na Colômbia), a propaganda está direcionada à contratação das mulheres como guardiãs. São projetos baseados em parcerias publico-privada, que resultam em acaparamento de territórios e expulsão de comunidades. Por isso, os movimentos decidiram chamá-los “opressões e exclusões baseadas na natureza“.
Quando chegam nos territórios, as empresas encontram comunidades em situação de precariedade e ausência de políticas públicas. Chegam com contrapartidas que inserem mais as comunidades no mercado, com instrumentos de cultivo e criação de animais mais tecnificados, que criam dependência entre a comunidade e os proprietários das tecnologias. Um exemplo compartilhado pelas companheiras do Brasil é a instalação de tanques de piscicultura em comunidades indígenas, uma contrapartida a projetos de REDD+. São comunidades onde a pesca sempre foi feita nos rios – que, muitas vezes, sofrem com a contaminação por mineração ou outras intervenções. Pouco a pouco, o poder corporativo desarticula as economias locais e aumenta os obstáculos para a autodeterminação e soberania dos povos.
As mulheres se contrapõem a essa ofensiva, e apostam na afirmação de suas práticas e movimentos: a diversidade da natureza, suas múltiplas funções e relações. É como dizem as companheiras: o quintal de uma agricultora tem muito mais diversidade do que qualquer programa de bioeconomia de empresas farmacêuticas.
Essa tarefa se articula à afirmação da agricultura feita pelas camponesas e povos tradicionais, pela diversidade e complexidade da agroecologia. Essa prática, ciência e movimento passa pela disputa de sentidos dos territórios e pelo questionamento à propriedade privada – de terras e intelectual –, afirmando territórios e tecnologias livres.
A contra-cúpula dos povos será um momento de convergência entre os diferentes movimentos sociais e de construção de forças dos povos contra o poder corporativo.
[1] Esse texto foi escrito a partir da síntese de oficina realizada no dia 6 de julho, que contou com a participação de companheiras da Marcha Mundial das Mulheres, Amigos da Terra Internacional, FIAN e Via Campesina.
[2] Antropocentrismo considera a centralidade e prioridade dos seres humanos nas análises. O Androcentrismo tem como referência as experiências masculinas e as universaliza para o conjunto dos seres humanos.