A digitalização dos sistemas agroalimentares são nuvens sobre a agricultura camponesa

15/07/2022 |

Por Silvia Ribeiro

Conheça a crítica ao avanço do controle de empresas transnacionais na agricultura em países do Sul global

Do campo à mesa, a digitalização dos sistemas agroalimentares avança em todo o planeta, com impactos pouco conhecidos. Pode-se pensar que por se tratar de um pacote de alta tecnologia, só é utilizado em sistemas agrícolas industriais, mas também avança em países do Sul e áreas de agricultura familiar e camponesa, com falsas promessas de maior eficiência e informação para melhorar a produção.

Muitas questões surgem com esta nova onda de tecnologia no campo. O que é e o que significa? Que impactos tem para o campesinato e a agricultura familiar e de pequena escala? Compartilho aqui um documento com exemplos de possíveis impactos e reflexões sobre essas questões.

No México, entre janeiro e maio de 2022, as maiores empresas globais de sementes e agrotóxicos, como Bayer-Monsanto, Basf e Corteva (fusão da DuPont e Dow) lançaram novas plataformas agrícolas digitais, que vendem “serviços” aos agricultores. Elas se reúnem às que estiveram presentes nos últimos anos e à implantação das mesmas em outros países da América Latina, principalmente no Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Colômbia – todos os países onde essas transnacionais dominam os mercados do agronegócio e conseguiram impor grandes áreas de cultivos transgênicos e agrotóxicos.

Basicamente, para entrar nas plataformas digitais, as e os agricultores devem fazer um contrato de adesão. Então, por meio de sistemas que podem ser drones, satélites ou fotos de celular tiradas pelos próprios agricultores de suas lavouras e enviadas para as plataformas, as empresas registram dados de seus campos – como dados sobre solo, umidade, sementes, produção, doenças de culturas, plantas invasoras e insetos que podem ser considerados pragas, vegetação e florestas etc. Armazenam e processam a informação nas nuvens de computadores de grandes empresas de tecnologia e retornam “conselhos” aos agricultores que indicam o quê, quanto e onde usar determinados produtos em seus campos. Geralmente, os contratos estabelecem como condição para obter os resultados, o compromisso de usar as sementes e agrotóxicos das próprias empresas.

A Bayer – que após comprar a Monsanto, tornou-se proprietária da plataforma digital Climate Fieldview, uma das mais difundidas – anunciou seu acordo em 2022 com a Microsoft Azure (computação em nuvem) para, além de atuar nos campos, acompanhar digitalmente as cadeias de suprimentos. A Microsoft já ofereceu o programa Farmbeat. A Basf lançou no México a plataforma Xarvio, que promete detectar ervas daninhas, pragas e doenças locais nas principais lavouras a partir de fotos de celular. A Corteva adiciona a várias de suas plataformas – como Granular e MiLote com funções semelhantes às anteriores – uma nova para medir “a pegada de carbono” nos campos. Assim, se une à Bayer na incursão de potenciais créditos de carbono em solos agrícolas, questão com muitas arestas, todas negativas.

A implantação da digitalização e da robotização nos campos anda de mãos dadas com acordos e fusões entre as maiores empresas do agronegócio – sementes, agrotóxicos, fertilizantes, comercializadoras – com as de máquinas agrícolas e as titãs tecnológicas. Cada uma das etapas da cadeia agroalimentar industrial é dominada por poucas empresas: entre 5 e 10 em cada setor controlam mais da metade do mercado global. A mudança mais forte no setor agroalimentar nos últimos anos é o surgimento dos gigantes tecnológicos americanos (conhecidos como GAFAM antes de mudar seus nomes comerciais: Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft) junto com os chineses Alibaba e Tencent.

Em proporção cada vez maior, as empresas que decidem sobre a produção, abastecimento e mercados agroalimentares não têm histórico nem conhecimento do setor. O fato de o principal interesse do agronegócio transnacional não ser a produção de alimentos, mas o lucro ganha novas facetas com a entrada de empresas igualmente ou mais inescrupulosas, cujo objetivo imediato é coletar o máximo de dados possível, para vender informação e formas de manipular os comportamentos de produção e consumo de alimentos de grandes grupos sociais.

O que Shoshana Zuboff chamou de capitalismo de vigilância tem, portanto, sua versão de “agricultura de vigilância”. O que comemos, como e onde é produzido e comercializado são informações fundamentais sobre o meio rural e sobre a sociedade em geral.

Portanto, as plataformas digitais não são voltadas apenas para grandes proprietários e agricultura industrial. Para alcançar a maior coleta de dados de campos e processos alimentares, há uma vasta comercialização e facilidades para envolver a agricultura de pequena escala e camponesa, que é a maioria dos habitantes rurais.

A introdução das plataformas digitais consolida a dependência dos agricultores de todas as escalas às grandes empresas por meio de contratos que obrigam a usar seus produtos e seus manejos agrícolas, mecanismo que já existia, mas, com a virtualidade, expande-se significativamente. Agora, além disso, o novo negócio é que os oligopólios se apropriam de infinitos dados de cada campo (incluindo terras, florestas, águas, territórios), de conhecimento de produção, sementes, manejos de solo e cultivos, formas de comercialização, hábitos alimentares do consumidor. Longe de prestar “serviços” às comunidades camponesas, estão sujeitas à extração massiva de informações que, ao serem “datificadas” e interpretadas por seus algoritmos, tornam-se mercadoria com fins lucrativos e maior controle das empresas.

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Silvia Ribeiro mora no México, é pesquisadora e ativista ambiental uruguaia e integrante do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (Grupo ETC).

Idioma original: espanhol

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