A família Rajapaksa é a principal responsável por todas as violações aos direitos humanos cometidas no Sri Lanka nos últimos 40 anos, sobretudo durante a guerra, até 2009, e depois disso, quando muitas pessoas desapareceram, foram sequestradas e mortas. Mas como vivemos 27 anos em uma guerra separatista com os Tigres pela Libertação de Tamil Eelam (Liberation Tigers of Tamil Eelam – LTTE), a maioria da população apoiou os irmãos, considerando-os heróis de guerra. Gotabaya Rajapaksa foi secretário de Defesa durante o conflito, então, na última eleição, em 2018, as pessoas votaram nele para presidente. Seu irmão mais velho, Mahinda Rajapaksa, havia sido presidente até 2015.
Em 2015, conquistamos uma mudança no país, com o governo do Partido Nacional Unido, mas essa conquista não durou muito. A família Rajapaksa voltou ao poder com o slogan “um país, uma lei”, pauta antimuçulmana ligada aos tempos de guerra. Essa agenda se fortaleceu ainda mais depois do Ataque da Páscoa[1], reivindicado pelo Estado Islâmico. Naquele momento, as pessoas acreditavam de fato que um governo antimuçulmano evitaria uma nova guerra civil no país. A família passou então a receber mais apoio dos budistas cingaleses, que compõem a maioria da população, sempre investindo em slogans apelativos para lucrar com o racismo e o extremismo religioso nas eleições.
Com todas essas questões históricas, a família chegou ao poder, mas não conseguiu administrar as finanças do país. Pela natureza autoritária e a má gestão, em 2021, o governo derrubou as reservas cambiais do país para pagar uma dívida interna de dois bilhões de dólares estadunidenses. Eles pegaram o dinheiro porque nós tínhamos um alto número de empréstimos junto à China, por exemplo, quarto maior credor do Sri Lanka, atrás dos mercados financeiros internacionais, do Banco Asiático de Desenvolvimento e do Japão. O país havia recebido bilhões de dólares da China em empréstimos subsidiados, mas a nação insular foi engolida por uma crise cambial, o que alguns analistas afirmam ter empurrado o país para a beira de uma moratória.
Em 2021, o governo rebaixou as reservas cambiais para pagar US$ 2 bilhões em dívidas. Em 2022, vencem empréstimos de US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão em janeiro e junho respectivamente. O Sri Lanka precisará pagar estimados US$ 7,3 bilhões em empréstimos nacionais e internacionais. No entanto, desde novembro, as reservas do país disponíveis em moeda estrangeira estavam em apenas US$ 1,6 bilhão.
Por esse motivo, o governo não consegue comprar combustível, fertilizantes e alimentos necessários, o que está se tornando um grande problema e afetando sobretudo as camadas populares da população. A situação dos combustíveis é gravíssima. A escassez está provocando cortes na energia do país. As máquinas precisam de combustível para operar. Sem energia, fábricas, escritórios e empresas não funcionam. As confecções do setor de roupas e a indústria exportadora de chá – espinhas dorsais da receita em moeda estrangeira – não conseguem produzir para atender a demanda de compradores e do mercado. Como as mulheres representam a maior força de trabalho nesses setores, são elas as mais afetadas, perdendo emprego e fonte de renda.
Não há trabalho adequado nas plantações e para agricultores desde 2021, em função da escassez de fertilizantes. Não há colheitas decentes neste ano, afetando agricultores e agricultoras que agora não têm renda, e o país que não tem alimento. A escassez de combustíveis leva a população a enfrentar filas quilométricas para comprar gasolina e gás de cozinha. As mães estão saindo em busca de gás e alimento para seus filhos.
As pessoas estão morrendo nos hospitais sem medicamentos e oxigênio. O Banco Mundial estima que cerca de 500 mil pessoas caíram abaixo da linha da pobreza desde o início da pandemia de covid-19. A situação está piorando agora. Os preços de alimentos comuns subiram mais de 15%. Os empregos vêm sendo reduzidos e a receita vital em moeda estrangeira que vem do turismo, em geral contribuindo com mais de 10% do Produto Interno Bruto (PIB), caiu significativamente. Mais de 200 mil pessoas perderam sua fonte de renda no setor de viagens. Tudo isso é resultado da má gestão da família Rajapaksa. Nós falamos há décadas em direitos humanos, boa governança e crise constitucional, e as pessoas nos tratam como traidoras da nação.
Mobilizações populares
A princípio, os empréstimos da China eram justificados com a promessa feita à população de que Colombo, a capital do Sri Lanka, se tornaria uma nova Singapura, uma cidade portuária desenvolvida. Depois, as pessoas começaram a perceber que haviam sido enganadas e passaram a protestar. Esses protestos foram tão fortes e pressionaram tanto que o presidente impôs um governo interino e pediu ao primeiro-ministro, seu irmão Mahinda Rajapaksa, que renunciasse. Antes disso, outros ministros já haviam se afastado. Os manifestantes também pedem a renúncia do presidente. Exigimos que toda a família saia da política.
A raiz de todo esse problema é que a Constituição dá poderes excessivos ao presidente, ao judiciário e ao legislativo. Precisamos promover uma emenda constitucional que a torne uma Constituição Popular, não uma carta de proteção aos governantes. Os governantes não deveriam poder fazer o que querem com os fundos e a economia de um país sem a possibilidade da população questioná-los.
Antes, qualquer pessoa que os questionasse ou criticasse era sequestrada ou morta, ou inventariam uma história e a prenderiam. Agora, estamos exigindo um novo governo. As mulheres estão lutando contra essa situação, mas a prioridade são as necessidades básicas. Alimentos, água e gás são as bases da vida e hoje não estão acessíveis. As mulheres representam 80% da população que trabalha na indústria do vestuário e na agricultura, os dois setores mais afetados. E conforme elas perdem seus empregos, a crise só aumenta. Além disso, em função dos altos preços, as mulheres que estão no setor informal não têm mais produtos para vender nem pessoas para comprá-los.
São três as principais etnias do Sri Lanka: tâmil, muçulmana e cingalesa. Politicamente, os partidos dividiram as mulheres por etnia. Além disso, fomos divididas regionalmente. As mulheres muçulmanas apoiam partidos políticos muçulmanos e assim por diante. Estamos trabalhando juntas entre algumas de nós, mas a maioria das mulheres está separada em suas lutas. O motivo é o mesmo: os últimos 40 anos de conflito separatista. Esse ressentimento e a divisão fica registrada no inconsciente. Essas mulheres são igualmente afetadas pelas crises econômica e constitucional, portanto precisam se unir.
Outro aspecto é a baixa porcentagem de mulheres na política no sul da Ásia. Não passamos de 5,8% no Parlamento. Nos governos locais, conseguimos uma cota de 25% em 2018. Quando o assunto é política, nenhum partido, seja de qualquer etnia, religião ou região, dá prioridade às mulheres nem reconhece a participação delas nas mesas de decisão. Mas nesses protestos, podemos ver muitas jovens lutando na linha de frente. A luta é por abrir espaços para essas mulheres participarem da política, porque os problemas e a violência que enfrentamos hoje são todos promovidos por governantes homens.
Conquistamos direito a voto para as mulheres em 1931 no Sri Lanka. Mais de 90 anos se passaram, mas no Parlamento temos apenas 13 mulheres entre 225 assentos. Se queremos um país com igualdade e dignidade para as mulheres e minorias étnicas e religiosas, se queremos que todos os cidadãos vivam em condições igualitárias, desfrutando de oportunidades e participação iguais, precisamos de uma Constituição que respeite os direitos humanos de todos e todas. Isso permitirá que as pessoas tenham seus direitos garantidos, com acesso à justiça social.
[1] No dia de Páscoa de 2019, oito bombas foram acionadas em diversas cidades e localidades, incluindo três igrejas e hotéis de alto padrão. Mais de 250 pessoas morreram e cerca de 500 ficaram feridas.
Nalini Rathnarajah é defensora dos direitos humanos, militante política feminista do Sri Lanka. Mora hoje em Colombo, capital do país.