2022, um ano decisivo: radicalizar o feminismo, transformar o Brasil

07/02/2022 |

Por Nalu Faria

Nalu Faria fala sobre a conjuntura brasileira, as eleições presidenciais e a campanha “Fora Bolsonaro”

Este ano que se inicia será decisivo para as mulheres e para os movimentos populares em geral no Brasil. Um ano de lutas, crucial para dizermos não ao neoliberalismo, ao autoritarismo, ao negacionismo, e para elaborarmos e afirmarmos como é o país que queremos viver.

Todos os dias e também durante as eleições que acontecerão em outubro, temos a tarefa de tirar a extrema-direita do poder. A situação política do Brasil atual tem sua origem no golpe contra o governo da presidenta Dilma Rousseff  (PT), que aconteceu em 2016. Logo após o golpe, políticas de austeridade neoliberal foram retomadas, e as políticas do governo anterior foram desmontadas. Foram aprovados projetos de retrocesso, como a Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos sociais por 20 anos, e a contrareforma trabalhista.

Apesar do cenário de ataque ideológico permanente contra as esquerdas, Lula era o candidato preferido nas pesquisas prévias às eleições de 2018. Em abril daquele ano, Lula foi preso de forma arbitrária, em um processo de lawfare[1] que o manteve preso por 580 dias.

No desenrolar dessa disputa política, as elites aderiram à campanha do candidato Jair Bolsonaro, de extrema direita. Sua campanha eleitoral foi baseada em fake news, mobilizando valores conservadores em nome da família e da religião, e associando comunismo à corrupção. Não compareceu aos debates públicos, mas espalhou seu discurso com uma rede digital de difusão de mentiras e medo, com muitos robôs e também muito dinheiro.

O governo de Bolsonaro deu continuidade ao processo de desmantelamento das políticas públicas que atendem a população. Intensificou a liberalização da economia em todos os níveis, em particular no desmatamento, na mineração e privatizações. O caráter genocida do seu governo já era visível em sua postura racista e militarista, e se evidenciou de forma mais contundente durante a pandemia de covid-19, com uma postura negacionista, de ataques às medidas de isolamento social, boicote na compra de vacinas.

O processo eleitoral presidencial que acontecerá em outubro deste ano poderá significar a derrota do governo de extrema direita e neoliberal de Bolsonaro. Está colocada a possibilidade concreta de consolidar uma mudança estratégica de direção política em nível governamental.

Diante dessa disputa que está colocada hoje em nossa sociedade, é fundamental elegermos um governo pautado por outro projeto de país. Um projeto popular, feminista e antirracista, que para ser posto em prática precisa se ancorar permanentemente nas lutas e organizações populares. A candidatura de Lula, do Partido dos Trabalhadores, hoje tem o apoio desse conjunto de movimentos e partidos que constituíram uma ampla frente de esquerda na Campanha Fora Bolsonaro.

Os movimentos estão se organizando para apoiar sua eleição, com um amplo processo de organização popular como elemento-chave para a construção desse projeto. É necessária uma profunda ruptura com o neoliberalismo, conectada à recuperação e construção de uma democracia com ampla participação popular. Só assim poderemos garantir a transformação do Estado para efetivar seu sentido público e de garantia dos comuns.

As mulheres organizam a resistência

Durante o período da prisão do Lula, os movimentos sociais e partidos progressistas mantiveram com força a campanha por sua liberdade, com mobilizações em todo o país e uma vigília permanente em frente ao local onde Lula se encontrava preso. As mulheres foram muito ativas na luta contra o golpe e também na campanha Lula Livre. Posteriormente, esse processo se vinculou à construção de uma ampla frente que organiza a campanha Fora Bolsonaro e a luta por políticas emergenciais, vacina e assistência à saúde durante a pandemia.

Na campanha eleitoral de 2018, um fato marcante foi o posicionamento das mulheres. Foram organizadas as manifestações por “Ele Não” nas quais as mulheres se posicionaram  firmemente contra a candidatura de Bolsonaro. Foram protestos massivos, organizados e protagonizados pelo movimento feminista em toda sua diversidade de expressões. Nesse momento, as mulheres rechaçaram o projeto político de Bolsonaro e expuseram seu caráter retrógrado, conservador e inimigo da classe trabalhadora, das mulheres e das pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+.

Esse posicionamento se expressou na votação das mulheres nas eleições – segundo a agência Gênero e Número, com base em pesquisas eleitorais, 52% das mulheres declarou voto em Fernando Haddad (PT), enquanto 59% dos homens se posicionou a favor de Bolsonaro –, bem como em sua avaliação durante o governo Bolsonaro, onde a posição de rejeição tem sido maioria – 67% desaprovam a gestão, segundo pesquisa do PoderData divulgada em janeiro deste ano.

Esse rechaço é parte de um processo mais amplo e reconhecido atualmente: as mulheres são as principais protagonistas das lutas de resistência e de construção de respostas ao atual modelo – que definimos como um modelo baseado no conflito capital-vida.

As mulheres estão na frente das lutas contra as empresas transnacionais, contra a guerra, as políticas neoliberais, a violência policial que mata seus filhos, o racismo e o genocídio dos povos negros e indígenas. Defendem a autonomia sobre seus corpos, exigem uma vida sem violência, estão na linha de frente das lutas nas comunidades defendendo seus territórios, sua cultura, seus modos de vida. É uma lista que não termina porque os ataques são muitos e, para todos eles, há resistência e construção de força coletiva.

As mulheres também estão na produção agroecológica, na economia solidária, nas ações de solidariedade, nas cozinhas coletivas, no acompanhamento àquelas que sofrem violência, estão socializando cuidados, produzindo comunicação contra-hegemônica, promovendo a recuperação de práticas culturais e de saúde. Outra lista que não termina e que nos faz afirmar a centralidade das mulheres para a sustentabilidade da vida.

Toda essa resistência é coextensiva à construção de respostas cotidianas para sustentar a vida. Ao resistir, apontamos as transformações necessárias para a construção de uma sociedade que garanta o bem viver, com igualdade, liberdade, democracia, centrada na construção dos comuns. Essa não é uma realidade apenas brasileira ou das Américas, mas mundial.

Durante a pandemia, as desigualdades foram escancaradas, assim como os ataques à vida, que foram intensificados por setores retrógrados. As mulheres estiveram e estão na linha de frente do enfrentamento à pandemia, sendo a maioria das trabalhadoras da área de saúde, de vários setores de serviços, e garantindo o trabalho doméstico e de cuidados nas casas e comunidades.

Ao mesmo tempo, as mulheres foram mais impactadas pelo desemprego. Desde o início da pandemia, setores de serviços que concentram trabalhadoras mulheres passaram por diminuição dos postos de emprego, inclusive no setor de trabalhadoras domésticas.

Os dados do segundo trimestre de 2021 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que as mulheres vivem um nível maior de desocupação, que atinge 17,1%, enquanto o dos homens atinge 11,7%. Essa situação se soma ao fato de que as mulheres estão nas ocupações mais precárias. Faz parte de seu cotidiano buscar empregos que consigam conciliar com o trabalho doméstico e de cuidados. O fato é que tiveram mais dificuldades para garantir o sustento de suas famílias num contexto de alta da inflação, em particular do preço dos alimentos.

Mais uma vez, as mulheres amorteceram em seus corpos os impactos da crise, vivendo situações de estresse, tensões e adoecimento mental em uma dinâmica de precarização da vida – uma dinâmica onde se trabalha para viver, se vive para trabalhar. E a resposta patriarcal? Mais violência, mais feminicídio, mais imposição do mercado sobre nossas vidas e nossos corpos.

Por um novo ano de lutas antissistêmicas

Se queremos entender a condição e as dinâmicas que vivem as mulheres na sociedade, precisamos ter uma visão sistêmica e não apenas centrada nos “temas”, nos “problemas” ou mesmo nos direitos das mulheres. Só assim poderemos estabelecer os marcos necessários para as transformações estruturais que necessitamos.

Nosso desafio para o próximo período é radicalizar os processos de lutas que já estamos construindo a partir de uma perspectiva da pluralidade de sujeitos e de resistência ao atual modelo. Queremos avançar para desmantelar esse modelo baseado na injustiça e na exploração, e construir um novo modelo, que coloque a sustentabilidade da vida no centro.

Nos ancoramos nos acúmulos construídos pelos povos que resistem e constroem força política coletiva. No Brasil, essa trajetória se expressou na resistência à reação neoliberal, conservadora e autoritária apoiada por setores do mercado, de igrejas e do exército.

A Campanha Fora Bolsonaro articula um amplo campo político e converge experiências de muitos anos de luta conjunta envolvendo movimentos sociais, partidos de esquerda e diversas organizações da sociedade civil. A campanha elaborou coletivamente uma proposta de impeachment contra Jair Bolsonaro e propôs um programa de medidas emergenciais para enfrentar a crise, exigindo auxílio emergencial, vacinação, taxação de grandes fortunas, entre outros tópicos. Ao mesmo tempo, organizou uma grande campanha de solidariedade, com arrecadação de alimentos e materiais de higiene, ações educativas sobre a pandemia e cozinhas coletivas para distribuição de refeições. A dimensão da solidariedade foi trabalhada não só como uma ajuda emergencial, mas como um valor central para nossas propostas de outro modelo de sociedade.

Nessa trajetória, acumulamos uma visão antissistêmica que deve ser aprofundada para definir diretrizes comuns de um projeto popular e democrático para o Brasil. Esse projeto precisa incorporar os anseios da classe da trabalhadora, da luta antirracista, feminista, ecológica e pela diversidade sexual e de gênero. Marchamos com a certeza que não estamos sós e que nossa visão internacionalista alimenta nossa posição anticolonial e anti-imperialista e nossos ideais socialistas, democráticos e libertários.

Neste ano de 2022, temos o desafio de seguir nossa luta cotidiana por respostas para as necessidades concretas do nosso povo: comida, terra, água, serviços públicos, direito de existir sem violência. Essas lutas são parte da disputa pelo outro modelo de sociedade que queremos. Não há como acabar com a pobreza sem acabar com a exploração. Para ter uma vida sem violência e perseguição, precisamos de democracia, de poder popular, de valores libertários. As lutas não se separam, estão sempre articuladas e devem ser radicalizadas.

Por isso, nossa prioridade será a mobilização, a organização em cada pedaço desse país para ecoar nossas vozes todas juntas, em sintonia e em um só canto. Somos internacionalistas e acreditamos na força da nossa luta comum. A articulação de nossas lutas em nível mundial é fundamental para transformar nossas vidas.

Nós, da Marcha Mundial das Mulheres, ecoaremos nossas vozes porque “resistimos para viver, marchamos para transformar”! Queremos construir grandes mobilizações no 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres. Esse é o sentido dessa data: marcar lutas articuladas e simultâneas em todo o mundo. Esperamos que, neste ano, o 8 de março seja a marca do nosso avanço para derrotar o neoliberalismo. Que essa mobilização cresça e se torne um processo de mudança incontornável.


[1] Lawfare é um termo em inglês que expressa a manipulação do direito e das leis como estratégia de combate a oponentes. Lawfare é a união das palavras “law” (“lei”) e “warfare” (“guerra”).

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Nalu Faria integra o Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres representando as Américas.Esse texto é uma adaptação do texto original publicado na Coluna Sempreviva, no Brasil de Fato.

Edição e revisão de Helena Zelic

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