Um ano e um mês atrás, elaboramos um relatório intitulado “Líbano: o inferno em julho”, para analisar o que estávamos passando naquele momento. Aparentemente, ainda não sabíamos o que era o inferno. Enquanto países do mundo todo enfrentavam inúmeras crises econômicas e ambientais, resultantes da pandemia de covid-19, do capitalismo e do aquecimento global, o Líbano foi acometido ainda por mais dois desastres: o colapso econômico e a explosão no porto de Beirute.
Quando nos referimos ao “colapso econômico”, o termo se diferencia da crise econômica que o resto do mundo vivencia, no sentido de que se trata de um cenário resultante das políticas econômicas neoliberais destrutivas que assolaram a economia libanesa após a guerra civil de 1975-90, direcionando o país para uma economia rentista improdutiva e dependente dos setores de serviços financeiros, turísticos e imobiliários. Todas essas ações foram tomadas com aval, participação e usufruto de todos os partidos políticos no poder . Esse contexto acarretou, segundo o Banco Mundial, um dos três piores colapsos econômicos já registrados no mundo e o pior da história do Líbano. As políticas neoliberais e o sistema econômico rentista fizeram o valor da libra libanesa despencar mais de dez vezes em um ano – de 1.500 libras libanesas, o dólar passou a valer cerca de 20 mil. Outro efeito das políticas neoliberais foi a ruína das instituições estatais, pela redução dos subsídios fornecidos pelo Estado, a usurpação de suas riquezas e o aumento da concentração do poder nas mãos da classe dominante, deixando a classe trabalhadora e as pessoas marginalizadas sozinhas no enfrentamento do Ghoul [criatura demoníaca que come carne humana] do livre mercado e do capitalismo implacável. Em um país onde o salário-mínimo hoje equivale a cerca de quinze dólares, a agora ex-vice-primeira-ministra Zeina Akar, os ministros e o atual governador do Banco Central do Líbano (Banque du Liban) se reuniram no mês passado para discutir a eliminação de subsídios para combustíveis, elevando assim o preço do combustível para vinte dólares por galão.
O resultado desse colapso pode ser percebido na mídia local e internacional, que mostram as filas humilhantes nos postos de combustível em decorrência da interrupção no abastecimento de gasolina e diesel. Além disso, a escassez de eletricidade e remédios torna a vida quase insuportável e o trabalho impossível no Líbano para aqueles e aquelas que ainda têm emprego. Ao mesmo tempo, o preço dos alimentos aumentou em mais de 400% em apenas um ano. Em um ano, a classe trabalhadora se viu abaixo da linha da pobreza. Um relatório da Comissão Econômica e Social das Nações Unidas para a Ásia Ocidental (ESCAP, sigla em inglês) alertou que mais de 55% da população do Líbano se tornou “pobre”.
Enquanto isso, refugiadas e refugiados foram obrigados a confiar cada vez mais em instituições e organizações internacionais. As condições de vida da população síria e palestina se deterioraram drasticamente no último ano, pois o colapso econômico dificultou a busca por emprego e contribuiu para a criação de condições de trabalho com ainda mais exploração. Além disso, um grande número de pessoas refugiadas vive sob pressão em campos superlotados ou bairros sem infraestrutura, segurança e saneamento básico. Em outro relatório, da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East – UNRWA), fica evidente que os refugiados dispõem de três opções no Líbano: morrer pelo coronavírus, pela fome ou pelo mar, na tentativa de buscar “ilegalmente” uma vida melhor.
Enquanto as mulheres arcam com o maior impacto da pandemia e do atual colapso econômico, refugiadas e trabalhadoras imigrantes sofrem ainda mais. As refugiadas palestinas e sírias no Líbano foram destituídas de seus direitos econômicos básicos durante anos, além de sofrer tantas outras formas de exploração e racismo, enquanto a ajuda de organizações internacionais foi reduzida a vales-alimentação sem valor nenhum. O país tem testemunhado a imensa injustiça que afeta trabalhadoras migrantes, principalmente aquelas que atuam no ambiente doméstico. Além de sofrer com as condições desumanas do sistema kafala[1], essas mulheres hoje estão sendo abandonadas à própria sorte ao sofrer expulsões ilegais sob o pretexto da crise econômica.
Por outro lado, a infraestrutura do Estado, responsável por assegurar uma vida digna, com educação, moradia e saúde para a população mais marginalizada, está em colapso. Em sua pesquisa “Habitação como uma questão feminista”, a Public Works Studio mostrou a extensão da decadência da segurança habitacional para as mulheres no Líbano e a invisibilização do direito à moradia, especialmente para mulheres idosas, trabalhadoras imigrantes e refugiadas que vivem nas áreas mais afetadas pela explosão no porto de Beirute. Um relatório da Housing Monitor revelou que, nos meses de maio e junho, entre 110 ameaças de remoção, 33 foram registradas contra mulheres que viviam sozinhas.
No âmbito da saúde, além do temor sobre uma nova onda de casos de covid-19 e uma eventual incapacidade dos hospitais de atenderem o aumento da demanda, a saúde sexual e reprodutiva das mulheres também é afetada. Essa área sofreu um desmonte pela falta de investimentos e a relutância do Estado em cobrir cirurgias e apoiar com medicamentos, absorventes e anticoncepcionais. Aliás, os contraceptivos desapareceram do mercado e os absorventes passaram a custar 20 vezes mais ao longo do último ano. Como mostram as pesquisas, o colapso econômico, a explosão no porto de Beirute e a pandemia de covid-19 se combinam a tantas outras crises, como os incêndios florestais de 2019 e conflitos ocasionais marcados por racismo, sectarismo e discriminação por região e classe.
Esse cenário levou a uma deterioração significativa no psicológico da população, e mais ainda no das mulheres refugiadas. O colapso da infraestrutura e a escassez de óleo diesel também afetaram a infraestrutura necessária para o atendimento à saúde mental: o serviço telefônico de apoio à prevenção ao suicídio, essencial para evitar a perda de mais vidas, hoje está ameaçado por causa da crise energética.
Em sintonia com a crise econômica, a classe dominante – representada por ministros e deputados, líderes partidários, banqueiros e o governador do Banco Central do Líbano – se recusa a mudar as políticas econômicas e a liberar o dinheiro da população, confiscado pelos bancos. Nesse momento em que a libra libanesa está extremamente desvalorizada em relação ao dólar, as autoridades interpretam a realidade com mentiras e análises surreais, com argumentos fundamentados em informações distorcidas: culpam as refugiadas e refugiados pela crise, acusam a população de “guardar dólares” em casa e inventam a existência de uma conspiração global contra o Líbano.
Ainda que pareça ser uma vitória para a classe trabalhadora, mulheres e comunidades marginalizadas, o fracasso das negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) não é boa notícia: a classe dominante não está oferecendo soluções melhores.
Ao aderir ao modelo capitalista neoliberal, a classe dominante tenta sacrificar mais grupos a fim de preservar seus ganhos e privilégios, ruminando a cada dia novas mentiras, mobilizando sua base de forma sectária, racista e classista.
Não há solução imediata para o Líbano, e quem mais sofrerá são aquelas e aqueles que já sofriam com todas as formas de exploração. Isso significa que o atual colapso é uma crise sentida por toda a sociedade no Líbano, mas são a classe trabalhadora, as mulheres, a população marginalizada e refugiadas e refugiados que sentem os efeitos disso de múltiplas formas e em maior nível. É um colapso que está destruindo as formas e redes de proteção, cooperação, solidariedade e permanência que essas comunidades construíram durante anos com muita luta.
Hoje, todas essas comunidades enfrentam desafios antes desconhecidos, e o Estado desapareceu quando se tornou mais necessário, empurrando a população mais afetada para uma única direção: a exploração de uns pelos outros. O Estado é responsável por tudo o que estamos enfrentando hoje, principalmente por destruir a unidade e a solidariedade entre a classe trabalhadora, as mulheres, a população marginalizada e as pessoas refugiadas.
[1] Kafala é um contrato de trabalho abusivo segundo o qual trabalhadores migrantes devem ser patrocinados por um cidadão libanês para poder permanecer no país, submetendo-os ao controle total dos empregadores. O empregador tem o direito de confiscar o visto do trabalhador e se torna responsável por manter a pessoa em situação de legalidade no país, eximindo-o de garantir direitos trabalhistas como salário-mínimo, jornada máxima de trabalho, férias e hora extra.
Jana Nakhal é urbanista, militante da Marcha Mundial das Mulheres no Líbano e integrante do Partido Comunista Libanês.