Os Estados Unidos são conhecidos como o país das oportunidades, onde é possível viver o “sonho americano”. Mas a realidade é que vivemos no “ventre da besta”. A primeira vez que participei de um seminário internacional, achei interessante que as e os participantes ficassem surpresos ao saber que também há lutas de base nos EUA. As organizações como o Comitê de Apoio aos Trabalhadores Agrícolas (CATA) têm como foco as comunidades afetadas pelas leis, políticas e injustiças nos EUA.
Luta e trabalho diário
No CATA, trabalhamos com a comunidade rural e também com a comunidade imigrante e latina. Somos uma organização associativa e a maioria faz parte da comunidade em situação ilegal. Nossas áreas de trabalho estão divididas em três ramos: imigração (focada majoritariamente em advocacia), direitos trabalhistas e justiça alimentar.
No 1º de maio deste ano, na celebração do Dia Internacional das e dos Trabalhadores, alguns dos nossos companheiros participaram de uma marcha na capital, em Washington. A palavra de ordem da marcha foi “papéis, sim, migalhas não”, reforçando a necessidade de uma reforma migratória que possa beneficiar as mais de 11 milhões de pessoas em situação ilegal nos EUA. Essa realidade que vem sendo empurrada por vários anos já.
Nossa segunda área de trabalho, direitos trabalhistas, inclui a visita aos centros de trabalho e a capacitação dos trabalhadores no que diz respeito a seus direitos. Existe uma crença de que a comunidade imigrante em situação ilegal, por não ter um status legal no país, não tem direito como trabalhadores. Inclusive, muitas vezes, os empregadores se aproveitam disso para intimidá-los, ameaçando chamar “a migra” (a polícia de imigração) ou o Serviço de Imigração e Controle de Aduanas [U.S. Immigration and Customs Enforcement – ICE] caso as e os trabalhadores se atrevam a dizer ou denunciar algo.
O último ramo do nosso trabalho, a justiça alimentar, se dá simplesmente porque a comunidade que atendemos não tem o luxo de comer comida saudável, nem elas, nem suas famílias, seja por falta de recursos ou por ter só o que está disponível nas suas comunidades. Muito se fala que o trabalho agrícola não requer nenhuma habilidade, mas na verdade ele exige que se saiba trabalhar.
Muitas e muitos trabalhadores agrícolas vêm de países latino-americanos em que a agricultura era o sustento da família. Ali tomavam as decisões e tinham controle sobre o que cultivavam e como. Aqui, obedecem as ordens do fazendeiro, não tem controle disso, e os conhecimentos se perdem. Por isso, o coração do nosso programa de justiça alimentar são as hortas comunitárias, onde as pessoas participam na comunidade, tomam decisões sobre o que será cultivado e como, e compartilha esse conhecimento com as novas gerações.
Nenhum ser humano é ilegal
Quando comecei a trabalhar no CATA, entrevistei uma mulher centro-americana contando como chegou aos EUA. Isso foi em 2014. O ano é importante porque, a partir daí, começamos a ver a intensificação da migração de pessoas da América Central através das caravanas. Muitas daquelas que empreendem essa jornada o fazem porque há muita violência em seus países, do governo ou dentro de suas casas, como foi no caso dela.
A mulher que entrevistei tinha fugido do marido por causa da violência doméstica. Esse é o caso de muitas mulheres. Vimos também que estão mandando as crianças sozinhas: elas se entregam à imigração na fronteira e são declaradas como refugiadas, e assim as deixam passar para os EUA, mas a partir desse momento são criminalizadas, uma vez que são “soltas” com uma tornozeleira, como foi o caso da garota entrevistada. Essa tornozeleira exige que fiquem perto da tomada para recarregá-la por horas e as obriga a comparecer à imigração com frequência.
Os agentes da imigração, mais conhecidos como ICE, não têm nenhum órgão que fiscalize suas práticas ou políticas. A nova administração mantém as medidas supremacistas e patriarcais da lei de imigração. Os oficiais do ICE, mesmo os tribunais, têm muito poder de decisão sobre como tratam as pessoas e quem eles consideram merecedor do status de refugiado. Nisso, as mulheres são frequentemente excluídas, pois são vistas como um fardo para o Estado. Seus filhos são tirados delas, elas são colocadas em condições que as forçam a sofrer mais violência de gênero, inclusive violência nos centros de detenção, onde sofrem, por exemplo, com violências sexuais e esterilizações forçadas.
Não foram tomadas muitas medidas e, de fato, eles continuam deportando as pessoas apesar de terem declarado uma prorrogação das deportações por 100 dias. Os imigrantes haitianos estão sendo deportados em massa. Isto se combina com outras políticas e práticas contra pessoas negras e imigrantes que vemos na vigilância e captura para a deportação de migrantes negros e latinos. Os EUA não estão seguindo as convenções internacionais sobre os direitos dos refugiados, mas estão escolhendo, para seu proveito, quem é refugiado e quem não é. As mulheres continuarão sendo afetadas pela crise tripla: econômica, política e climática. Os imigrantes centro-americanos, neste momento, estão sendo excluídos do status de refugiado e sua permanência nos Estados Unidos é vulnerável à deportação.
A pandemia aprofunda as desigualdades
No ano passado, foi possível dar mais visibilidade às injustiças e aumentar a conscientização sobre a realidade enfrentada principalmente pelas comunidades não brancas. Não apenas porque “havia interesse”, mas porque, devido à pandemia, muitas coisas vieram à tona. Isso acontece quando há uma catástrofe, mas precisamos aproveitar o momento para reverter o sistema e as situações de forma permanente.
Nesse último ano de pandemia, a discriminação contra as comunidades asiáticas tem aumentado. Há um aumento do número de crimes de ódio contra mulheres e idosos, e contra as pessoas desprotegidas, tais como trabalhadores essenciais, trabalhadores agrícolas, cuidadores e trabalhadores do setor de vestuário, setores em que há muita exclusão e falta de proteção e, ao mesmo tempo, recebem uma alta demanda de serviços.
O governo dos EUA tem fornecido incentivos monetários para os cidadãos americanos por causa da pandemia. As pessoas em situação ilegal foram excluídas desse apoio. Foram excluídas as famílias em que apenas uma pessoa é cidadã dos EUA. As pessoas que perderam seus empregos e não têm seguridade social não podem tirar proveito do desemprego. Dentro das famílias, as mães tiveram que deixar seus empregos porque não podiam levar seus filhos para a creche, babá ou escola.
Há famílias que têm mais de três filhos e não podem se dar ao luxo de ter três dispositivos eletrônicos para a aula on-line. As escolas não forneceram os materiais para manter o aprendizado. Não houve treinamento sobre como utilizar a tecnologia e nem todos têm acesso à Internet em casa. Além disso, as mulheres também têm que cuidar das tarefas domésticas.
Dentro da organização, não podíamos nos reunir muito com a base porque participar das reuniões on-line era difícil para muitos. No entanto, já temos o desafio da participação das mulheres devido à situação de cuidado das crianças e das tarefas domésticas, algo que se torna ainda mais difícil com tudo que a pandemia acrescenta.
Alternativas a partir da organização popular
As organizações de base e comunitárias foram afetadas durante esses tempos. Diante das dificuldades de emprego, criamos um fundo de solidariedade no CATA para a comunidade imigrante em situação ilegal. Obviamente, não podíamos ajudar a todos e o que estávamos dando não era suficiente. Também sentimos a necessidade de produzir mais alimentos nesse período, tanto pelas razões descritas acima quanto porque, embora houvesse vários esforços de distribuição de alimentos, muito do que estava sendo distribuído era comida enlatada e processada.
Expandimos uma de nossas hortas comunitárias, fizemos parcerias com aqueles que distribuíam alimentos e fornecíamos produtos frescos. Iniciamos os dias de feira, distribuímos cerca de 10 mil máscaras, pois os empregadores não eram obrigados a seguir recomendações sanitárias. Muitas vidas foram perdidas devido à negligência dos empregadores e ao consumismo. É por isso que aderimos à luta internacional pela justiça de e para nossas comunidades a partir de uma agenda feminista.
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Kathia Ramirez é coordenadora de Justiça Alimentar do Comitê de Apoio aos Trabalhadores Agrícolas (CATA) no sul de Nova Jersey. O CATA é uma organização membro da Aliança Popular pela Justiça Global [Grassroots Global Justice Alliance – GGJ].