As relações entre a economia feminista e a justiça ambiental são bastante conectadas. Ambas tecem críticas contundentes às falsas soluções do capitalismo à crise por ele mesmo criada. Ambas propõem lutas populares que apontam para uma reorganização da sociedade, dos modos de vida e da relação entre os seres humanos e a natureza. Ainda assim, a articulação dessas agendas nos movimentos, organizações e territórios é algo que precisa ser fortalecido permanentemente.
Nesse sentido, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) do Brasil foi convidada pela federação Amigos da Terra Internacional (ATI) para organizar um ciclo de formação sobre economia feminista, em colaboração com o grupo de Justiça de Gênero e Desmantelamento do Patriarcado da organização. “Amigos da Terra Internacional trabalha em conjunto com aliados estratégicos, e parte desse trabalho conjunto inclui a união de nossas alianças nesses esforços de treinamento político”, explica Natalia Carrau, moderadora do grupo.
“A economia feminista é um tema transversal e uma perspectiva que se insere nos caminhos para a mudança de sistema que propomos como federação. Pareceu-nos muito natural abordar esta temática a partir das diferentes perspectivas políticas trazidas pelos programas internacionais”, compartilhou Natalia. Realizado de maneira virtual, esse ciclo de atividades reúne representantes de diferentes regiões e organismos internos de Amigos da Terra para propor reflexões e debates sobre os usos da economia feminista como ferramenta dentro da federação.
Capire e Rádio Mundo Real publicarão sínteses das discussões ocorridas nesse processo, como forma de registrar a memória dos aprendizados e de compartilhar as ideias com um público mais amplo, fortalecendo alianças.
No módulo 1, a militante brasileira Natália Lobo fez uma introdução à economia feminista, que não deve ser entendida apenas como linha teórica, mas como agenda e instrumento de luta, orientando processos de resistência e propostas de transformação. Natália expôs a crítica feminista ao androcentrismo da economia dominante, destacando que o homem branco não deve ser encarado como o sujeito universal. Nessa oposição, é preciso reconhecer e incorporar as experiências econômicas das mulheres, visibilizando os trabalhos necessários para sustentar a vida, que vão muito além do que o mercado considera como trabalho por estar na esfera monetária.
Por isso, também as soluções não devem passar pelo mercado. Contratar um serviço de trabalho doméstico, por exemplo, não soluciona o problema da sobrecarga das mulheres – na realidade, o agrava, concentrando-o em uma parcela específica das mulheres, marcada por classe e raça. A proposta é desmercantilizar e reorganizar o trabalho, responsabilizando o Estado e o conjunto da sociedade. Cuidado é algo a ser compartilhado entre pessoas, famílias em sua diversidade, comunidades e Estado. As experiências políticas e econômicas construídas pelas mulheres em todo o continente são parte essencial desse acúmulo, se contrapondo à lógica do capital com a construção cotidiana de auto-organização, agroecologia, comunicação, economia solidária e de estratégias para garantir as condições de sobrevivência e para construir autonomia sobre os corpos e sexualidades.
No módulo 2, as sessões foram divididas por regiões do mundo, para se adequar aos muitos fusos horários das pessoas participantes. Tica Moreno, do Brasil, fez a fala principal para um dos grupos, e Sophie Ogutu, do Quênia, para o outro. “Elaboramos a partir das práticas e das lutas. Os conceitos não são coisas abstratas, que simplesmente reproduzimos, mas sim ganham vida no âmbito da nossa estratégia de mudança a partir dos movimentos. Os encontros e convergências entre nossas organizações fazem parte desse processo de acúmulos e de elaboração”, disse Tica sobre a importância das alianças políticas, no início de sua fala.
Assim, Tica recordou momentos importantes da construção em aliança da economia feminista: enfrentamentos ao neoliberalismo, a acordos de livre comércio e ao poder corporativo das empresas transnacionais, elaborações conjuntas sobre a digitalização e o capitalismo verde, entre outros. Uma das contribuições da economia feminista é o alargamento do conceito de conflito capital-trabalho, propondo que se trata de um conflito capital-vida. Assim, considera-se outras esferas da vida humana que são afetadas pelo capitalismo racista e patriarcal para além do trabalho remunerado, assim como os impactos na vida não humana, ou seja, na natureza. “Existe um conjunto de relações e práticas, mesmo em nossa relação com a natureza, que sustenta e nos permite gerar as condições de possibilidade da vida”, explica Tica.
Na sessão do grupo 02, com participantes da região Ásia-Pacífico, a convidada Sophie Ogutu reiterou a importância de construir um sujeito político feminista que se expresse nas lutas dos movimentos populares e nos territórios: “Não é possível falar sobre sujeitos políticos sem falar sobre poder coletivo”. Para ela, “ao levar nossos debates, nós tiramos isso do plano teórico e levamos para as comunidades, levamos isso, reunimos isso, mas também criamos um efeito cascata. É assim que vamos construir esse poder coletivo, e isso vai nos ajudar muito em termos de destacar como as economias feministas promovem sujeitos políticos que resistem à despossessão e à exploração”.
É preciso, segundo Sophie, forjar uma crítica feminista antissistêmica, porque “não é possível esmagar o patriarcado se não pudermos mencionar o patriarcado. Não é possível derrubar o capitalismo se temos medo de mencionar quem está por trás dele, quem alimenta o capitalismo. Não é possível enfrentar nada se tivermos todo esse medo”. A estratégia para a transformação feminista “está em construir esse poder coletivo, em voltar para as nossas comunidades e engajá-las”, afirma.
“A partir do questionamento que a economia feminista levanta sobre o conflito capital-vida, temos que olhar como os sistemas de opressão também surgem da divisão internacional do trabalho e o que isso implica para os povos do Sul global”, observa Natalia Carrau. As pessoas participantes da formação participaram do debate compartilhando perspectivas que partiam de seus territórios e regiões, criando conexões para uma visão internacionalista. Refletiram sobre os aportes da economia feminista para as lutas por justiça ambiental, que se entrecruzam principalmente na crítica ao mercado e na resistência aos impactos das empresas transnacionais nos territórios. Também se cruzam na proposição de alternativas feministas, antissistêmicas, que desafiam a lógica de mercado e mostram que outra economia é possível já no tempo presente. Um exemplo é o das cadernetas agroecológicas, usadas em diversos lugares do Brasil por agricultoras, para registrar relações de venda, compra e troca de alimentos produzidos por elas, sendo uma ferramenta de visibilização de seu trabalho.
“Quais são os espaços ou redes que podemos ter e tecer para nos cuidar e para poder pensar no futuro, como compartilhar as ferramentas para além deste grupo, num contexto em que tudo é cada vez mais violento e a vida nos territórios é cada vez mais complexa?”, pergunta uma das participantes, apontando para os debates futuros, que se seguirão no módulo 3 do ciclo de formação, voltado aos próximos passos da construção da economia feminista em Amigos da Terra Internacional.