Memória e mística, palavras vitais para a construção de futuros feministas

18/05/2023 |

Alejandra Laprea

O texto traz uma visão sobre a importância da mística e da memória feminista, que recuperam um passado de lutas e apontam um presente de possibilidades de mudança

A antropóloga feminista venezuelana Iraida Vargas disse certa vez em uma entrevista: “a primeira coisa que o capitalismo tira de nós é a nossa história, a nossa memória”. Com isso, o capitalismo também expropria um pouco da nossa alma, acrescento toda vez que a cito.

A expropriação da memória é um mecanismo que funciona e que faz parte da opressão simbólica e cultural. Essa é uma base do sistema de opressão múltipla: capitalista, colonialista, patriarcal e racista.

Com a expropriação de nossa memória e da nossa história, nossa identidade e nossa autonomia são atacadas para criar certos tipos de subjetividade e, dessa forma, criar determinadas formas de ordenar o mundo e a vida. A usurpação da memória nos priva de nossas próprias referências que encarnam nossos valores, lutas e princípios.

A suposta ausência de uma história e de uma memória próprias impede que nos identifiquemos como povos que criam seu próprio destino. Isso legitima o racismo, o colonialismo, o capitalismo, o machismo. Legitima nossa própria opressão.

A história oficial amplamente contada é uma história dominada por homens brancos, heterossexuais, economicamente ricos e que agem de forma inidividualista. Essa história, por sua vez, é sustentada por um deus branco, heterossexual e masculino, e legitima constantemente o direito daqueles que nos oprimem e o dever da nossa submissão.

Não me esqueço do que diz o cantor argentino Juan Carlos Baglietto na música “Quien quiera oír, que oiga” [Quem quiser ouvir, que ouça]: “Se a história é escrita por aqueles que vencem, isso significa que há outra história, a verdadeira história, quem quiser ouvir, que ouça”. A nossa história não é uma história de derrotados e derrotadas, é uma história de resistência.

Nós resistimos ao roubo de nossas vitórias, de nossos heróis e heroínas, de nossa rebeldia. Para isso, fazemos uso de relatos orais e escritos, de poemas, canções, de expressões espirituais, bordados e de nossas comidas. Tudo isso faz parte do que os movimentos populares chamam de mística.

Buscar e valorizar as histórias das lutadoras

Um exemplo de expropriação e de resistência é a participação das mulheres na luta pela independência da Venezuela. Esse fato permaneceu oculto até a revisão convocada pela Revolução Bolivariana. Os primeiros indícios dessa participação estavam presentes nas histórias populares, em frases, ditados, poemas e até mesmo em mitos que preservavam a imagem de uma tal de Juana “La Avanzadora” [aquela que avança]. Um dos mitos diz que a sepultura de Juana permaneceu oculta para que não fosse profanada.

A partir desses indícios, uma pesquisa começou a ser realizada. Hoje sabemos que havia unidades militares compostas por mulheres naquele período. Uma delas era a Bateria de Mulheres do Oriente, composta por 40 combatentes e liderada por Juana Ramírez, “La Avanzadora”, assim chamada por ter sido uma das primeiras a avançar respondendo ao toque de carga.

Memória, um assunto do futuro

A preservação da memória é um ato de rebeldia. É uma construção coletiva da nossa subjetividade, que reflete nossos princípios, valores, emoções e orgulho, que nos faz reivindicar a nós mesmas como pessoas dignas e merecedoras. É uma força para os nossos movimentos saber de onde viemos, quem somos e quais foram nossas ações históricas como povos e como mulheres trabalhadoras.

Construímos a memória sistematizando nossa caminhada, nossas propostas e nossas lutas. E fazemos isso não só por meio da palavra escrita, mas também com fotografias, grafites, poemas, contos, lendas, expressões culturais diversas e linguagens da comunicação popular. Construímos a memória com mecanismos como a oralidade e as criações populares, que valorizamos como fontes legítimas.

Mantemos nossa memória e nossa história vivas em nosso cotidiano, fazendo referência constante às mulheres que nos antecederam, reconhecendo e divulgando suas lutas, princípios, contribuições e ensinamentos. Fazendo com que elas sejam parte de nossa reflexão política.

Devemos ampliar a compreensão de que a memória é um processo de construção que não diz respeito apenas ao passado, mas também ao presente e que é, fundamentalmente, uma questão de futuro.

Compartilho uma palavra de ordem que é um exercício de memória e que sempre escutamos nos nossos atos de rua: “Somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”. Somos também as netas das mulheres negras que vocês não conseguiram matar. Somos as netas das mulheres indígenas que vocês não conseguiram estuprar.

Mística

A mística é um espaço que nos ajuda a estar presentes no aqui e agora ao iniciarmos uma atividade política coletiva. Ela nos sintoniza com as emoções e a força de estarmos unidas.

É uma prática política que reivindica as dimensões lúdica, estética, espiritual, cultural e subjetiva como parte fundamental daquilo que fazemos como movimento, desafiando a falsa divisão patriarcal e capitalista entre razão e emoção. É um espaço de coerência, onde unimos o pessoal e o político, isso é, unimos nossas emoções, sensações e sentimentos às nossas ações políticas. É um espaço de busca e construção de identidade, de subjetividade e de significados comuns nos nossos coletivos e movimentos. As místicas são espaços de reflexão.

Não existe uma única forma de fazer mística. Mas é essencial que a mística se adapte aos territórios, às necessidades culturais e políticas das organizações, aos objetivos de cada encontro.

A mística, assim como a memória, ajuda a consolidar o “nós”, isso é, a consolidar o senso de pertencimento a um coletivo que compartilha sonhos e uma visão de mundo.

Alejandra Laprea vive em Caracas, na Venezuela, e é suplente no Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, representando as Américas. Ela fez parte do grupo de trabalho pedagógico da Escola Feminista Berta Cáceres da Marcha Mundial das Mulheres das Américas. Este artigo é fruto de suas contribuições nesse processo.

Edição: Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Luiza Mançano
Revisão da tradução por Tica Moreno
Idioma original: espanhol

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