Andaiye (1942-2019) foi uma pensadora e militante política da Guiana que dedicou a vida a transformar o mundo a partir da organização das mulheres na base da sociedade. A coletânea “O importante é transformar o mundo”, publicada no Brasil pela editora Funilaria (2022), dá conta dessa trajetória. Os textos que abrem a coletânea permitem compreender o alcance e profundidade do pensamento e militância de Andaiye, assim como sua prática pessoal-política de cuidado mútuo e de questionamento a todas as relações de poder que estruturam essa sociedade. Exemplo disso são suas reflexões críticas ao poder médico e seus escritos sobre as redes de afetos e cuidados que lhe foram necessárias em sua própria batalha contra o câncer, desde que foi diagnosticada com a doença em 1989.
Andaiye foi o nome que adotou depois de adulta, influenciada pelo movimento negro. A palavra de origem suaíli significa “a filha que retorna a casa” e é uma afirmação de orgulho de sua ancestralidade africana, como conta Cleem Seecharam. De 1978 até meados de 1990, ela integrou a Working People’s Alliance (WPA), onde militou contra o autoritarismo e na construção de uma força revolucionária e de massas na Guiana. Ao fazer um balanço da organização, Andaiye reflete criticamente sobre o fato de que a dissolução das organizações afro-guianense e indo-guianense para a construção nacional unitária da WPA enfraqueceu a dimensão antirracista da luta socialista no país.
Há uma coerência entre esse balanço histórico e seu texto de 2009, onde aborda gênero, raça e classe na perspectiva da luta caribenha contemporânea. Destaca-se a permanência da crítica às experiências de esquerda que ignoram ou secundarizam lutas “antirracista, antissexista, anti-homofóbica, antitransfóbica e contra todas as formas de exploração, subordinação e discriminação” em nome de uma visão estreita de classe como contradição principal, e a insistência na necessidade de auto-organização para fazer com que essas reivindicações tenham voz e peso. Isso não significa, para Andaiye, uma fragmentação das lutas, mas a construção de unidade na ação política a partir dos sujeitos coletivos organizados. Ela insiste, ainda, em um critério para que essa unidade seja possível: que essas lutas sejam anti-imperialistas e anti-capitalistas. Ela diz: “Não vou fazer de conta que sei como reconstruiremos o movimento para mudar o mundo (caribenho), e mudá-lo para melhor do que nunca, mas tenho certeza de que a divisão na ação não está nos levando nessa direção.”
Em 1986, Andaiye foi uma das fundadoras da Red Thread, organização de mulheres na Guiana. Atuou em diferentes esferas regionais e internacionais colocando ênfase no trabalho de reprodução social – o trabalho doméstico e de cuidados não remunerado e mal remunerado – como ponto de partida para organização das mulheres na base da sociedade, e como fundamental para uma revolução anticapitalista. Essa foi a lente feminista e antirracista através da qual analisou e questionou os efeitos do neoliberalismo e dos programas de ajuste estrutural do FMI na região. Defendendo a centralidade da liderança e mobilização coletiva das mulheres pobres, questionou a “onguização” do feminismo que acompanhou a implementação do neoliberalismo.
São muitos os textos inspiradores que encontramos na seleção organizada por Alissa Trotz, nesse livro que deve ser incontornável para conhecer imaginação política radical das lutas anti-imperialistas, negras e das mulheres no Caribe. A seguir, Capire publica “Mulheres da base aprendendo a contabilizar seu trabalho não remunerado”. Trata-se de uma relato apresentado em 2009 sobre uma experiência coletiva que teve início como um processo inédito de pesquisa de usos do tempo na Guiana, e que se desdobrou na capacidade de ação e cuidado das mulheres organizadas para sustentar a vida diante das enchentes que atingiram o país em 2005.
Mulheres da base aprendendo a contabilizar seu trabalho não remunerado: relatório sobre um ensaio de 2001-2002
Em um processo de preparação de dois anos para a Conferência sobre Mulheres de Pequim de 1995, pesquisadores e ativistas no Caribe de língua inglesa procuraram explicar, em termos materiais, por que as mulheres continuam tão concentradas na base da pirâmide econômica, apesar de avanços na educação: meninas e mulheres estão até agora “superando” meninos e homens na educação secundária e terciária, o que alimentou a tese da marginalização masculina. Desde 1995, a análise permanece a mesma, particularmente quanto ao peso extraordinário e crescente da responsabilidade das mulheres pelo trabalho de cuidado não remunerado no Caribe. Os fatores que explicam isso incluem o nível de pobreza e subdesenvolvimento em alguns países e áreas de países, o que aumenta o trabalho de garantia da sobrevivência.
Os resultados de uma pesquisa de uso do tempo de 2001-2002 na Guiana feita pela Red Thread, a primeira desse tipo que conhecemos, confirmaram o peso do trabalho não remunerado feito por mulheres, mostrando que, em todos os grupos raciais/étnicos, um dia típico de trabalho para a maioria das mulheres variou de 14 a 18 horas, com pouca ajuda de alguém, frequentemente com tecnologia mínima ou pouco confiável, acesso limitado a comodidades e com muito pouco lazer ou tempo livre para elas. Várias mulheres tinham dias mais longos – até 21 horas. A maioria das mulheres se ocupa às 6 horas, com um número significativo em todos os grupos étnicos iniciando mais cedo, já às 3 horas ou às 3h30. Por exemplo, uma mulher indo-guianense levantou-se às 3h30 para preparar o café da manhã e a marmita do marido antes de ele sair para trabalhar como cortador de cana por volta das 5h30, enquanto seus três filhos pequenos, menores de 3 anos, dormiam1. Muitas mulheres em todos os setores não tinham uma pausa num dia. Isso chegava a 50% entre as indígenas – uma das quais lamentou que era seu dia de folga!
A falta de tecnologia tinha um grande impacto no dia delas. Em algumas comunidades indígenas, a ausência de luz elétrica obrigava as mulheres a encaixar seu trabalho durante o dia, enquanto a falta de água encanada nas proximidades fazia com que as mulheres fossem ao riacho várias vezes ao dia para lavar roupas, dar banho a si mesmas e a seus filhos ou buscar água para beber e cozinhar. Para diversas mulheres em qualquer setor, especialmente aquelas com filhos pequenos que ficavam a seu lado o dia todo, uma “pausa” representava não uma interrupção do trabalho, mas uma redução em sua intensidade; ou seja, elas paravam de lidar com mais de um trabalho ao mesmo tempo.
Para muitas mulheres em todos os setores, o único momento em que podiam chamar de seu eram alguns minutos de oração ou devoção no início e ao final do dia. Doença e gravidez às vezes atrasavam as mulheres, mas claramente não as impediam de fazer um dia inteiro de trabalho, incluindo atividades pesadas, como cortar lenha. E qualquer dia de trabalho poderia ser estendido inesperadamente para 24 horas, por exemplo, quando uma criança estava doente e precisava de atenção durante a noite, como uma mãe registrou, o que acontece com todas as mães de uma criança pequena.
No processo de compilar os usos de tempo diários, quer escrevendo, quer ditando a uma mulher da Red Thread, as mulheres revelaram seu trabalho a si mesmas e, em alguns casos, desenvolveram a confiança de que esse trabalho lhes conferia o direito aos recursos de que precisavam para reduzir seu fardo. Essa consciência foi a base da organização da Red Thread com centenas de mulheres de base para exigir apoio após a pior enchente da história da Guiana em janeiro/fevereiro de 2005. Naquela época, da população total da Guiana de pouco mais de três quartos de milhão, trezentas mil pessoas em 110 vilarejos, ou quase 40% da população, foram afetadas:
Comunidades inteiras viviam sob água estagnada e contaminada (mais de um metro de profundidade em alguns lugares), acessível por barco ou por embarcações – geladeiras viradas, tábuas amarradas a tambores de óleo – improvisadas pelos residentes. Os abrigos que o governo abriu ofereceram alívio temporário a menos de seis mil pessoas, levando muitos a fugirem para a estrada principal costeira em busca de terra seca, comida e água potável. As famílias sofreram grandes perdas que incluíram móveis e objetos pessoais, hortas, fazendas, aves, gado e equipamentos para atividades ao ar livre. Das 34 mortes, sete foram por afogamento; o resto foi resultado de doenças relacionadas a enchentes, com centenas de internados em hospitais. (Trotz, 2010, p.112-124)
A militante da Red Thread, Wintress White contou como o grupo respondeu:
Entramos nas comunidades do litoral que foram duramente atingidas pela enchente. Fomos lá para descobrir como as pessoas estavam lidando com a situação e para ver se crianças e pessoas com doenças crônicas estavam doentes e, se sim, quem poderíamos abordar para obter ajuda para elas (mais precisamente nossa participação na entrega de ajuda humanitária direcionada a ‘idosos, grávidas e mães lactantes, pessoas com deficiência e mulheres com filhos pequenos’).Logo se espalhou a notícia de que a Red Thread era o lugar para ir em busca de ajuda, e as mulheres indo-guianenses e afro-guianenses – até mesmo homens – vieram para ver que ajuda poderiam obter. Dissemos-lhes que, mesmo se estivéssemos em posição de lhes dar comida, e não estivávamos, quando a comida acabasse, o que aconteceria? Dissemos-lhes que deveriam se organizar juntos e fazer algumas reivindicações ao governo, pois não eram os responsáveis pela enchente. Começamos a organizar reuniões para que eles se preparassem […]. Em uma reunião em nosso pequeno centro, havia cerca de 220 mulheres de catorze comunidades – indo-guianenses e afro-guianenses.
As mulheres estavam na vanguarda de todas as atividades em suas comunidades após a enchente. A ministra do Trabalho, Serviços Humanos e Previdência Social reconheceu isso quando disse, em uma reunião em 9 de março de 2005, organizada pelo Escritório de Assuntos da Mulher e grupos de mulheres para marcar o Dia Internacional da Mulher: “São as mulheres da Guiana que defenderam seus filhos das doenças e da morte durante a enchente”.
Mas as militantes da Red Thread queriam mais do que esse reconhecimento. Elas estavam determinadas a fazer com que essa defesa das mulheres em relação a suas famílias e comunidades fosse considerada um trabalho e que todo esse espectro de habilidades, criatividade e dedicação à vida fosse visto.
Assim, a linguagem que usaram foi “as mulheres de todas as raças que enfrentaram águas de enchente até a cintura ou mesmo até o peito […] para inventar maneiras de alimentar, vestir, abrigar, ensinar, cuidar, se preocupar e fornecer segurança e um senso de segurança para seus filhos em primeiro lugar” (Red Thread, 2005).
Contabilizar o trabalho, por sua vez, abriu caminho para exigir que as mulheres tivessem direito a recursos para realizar a enorme quantidade de trabalho para restaurar vidas e meios de subsistência.
Isso levou a Red Thread à decisão de fazer um discurso no qual as mulheres falariam o que pensavam sobre sua experiência, necessidades e demandas aos representantes da mídia, Parlamento, sindicatos, unidades governamentais, ONGs locais e agências doadoras internacionais. As mulheres escreveram listas de bens domésticos, estoques, animais e hortas que haviam perdido, a carga de trabalho extra que carregavam e quais eram suas demandas para o governo e outras agências (Red Thread, 2005).
“Mulheres comuns falam: contando nosso trabalho para a sobrevivência da Guiana das enchentes” foi realizado em Georgetown em 13 de março de 2005, com representantes de todas as instituições e agências ouvindo o testemunho e as demandas de mais de duzentas indo-guianenses, afro-guianenses, mestiças e indígenas que se reuniram. Em uma declaração escrita posteriormente publicada na mídia, as mulheres prefaciaram essas reivindicações descrevendo-se como aquelas cujos trabalhos que normalmente faziam eram não remunerados, de subsistência ou mal remunerados, além de relatar a forma como os produtos e ferramentas de seu trabalho foram danificados ou destruídos:
“Somos mães, avós, tias, filhas e irmãs que cuidamos de nossas famílias em tempo integral sem receber nenhum salário, ou que cuidamos de nossas famílias e também trabalhamos fora de casa por baixos salários. Somos mulheres com deficiências e mulheres que cuidam de crianças com deficiências.
“Somos produtoras de cana-de-açúcar que perderam safras e não podemos replantar nem pagar os arrendamentos de terras agrícolas. Somos operárias de confecções, seguranças, empregadas domésticas, vendedoras de jornais e outras mulheres com empregos fora de casa que não conseguem ganhar nem mesmo salários normalmente baixos durante a enchente.
“Somos vendedoras em mercados, vendedoras de peixe, lanches e outros bens cujos estoques se perderam com a enchente e que não podem ser reabastecidos porque não temos dinheiro e ninguém está disposto a confiar em nós. Somos agricultoras, comerciantes e outras pequenas empresárias que deviam prestações de pagamento de empréstimos. Somos donas de casa e cuidadoras que sofreram perdas enormes de bens domésticos, hortas, aves e pequenos animais.
“Não estamos pedindo esmolas a ninguém; mas queremos aquilo a que temos direito – as ações que precisamos que todos vocês tomem para que possamos continuar a garantir a sobrevivência de nossas crianças, famílias e comunidades sem o fardo impossível que temos carregado desde o início da enchente.” (Red Thread, 2005)
Em termos materiais, a organização das mulheres as ajudou a ganhar uma pequena indenização, substituição por pequenos animais e plantas perdidas e assistência do Ministério da Agricultura a vilarejos que não tinha visitado. Mas elas ganharam muito mais do que isso: ganharam a experiência inestimável de se mobilizar e se organizar para vencer, e vencer.
Referências:
Red Thread. “Organizing for Survival: Grassroots Women and The Flood”. Georgetown, 2005
Trotz, Alissa. “Shifting the Ground Beneath Us: Social Reproduction, Grassroots Women and the 2005 Floods in Guyana”. Interventions: Journal in Postcolonial Studies, v. 12, n. 1, p. 112-124, 2010.
- Muitas mulheres incorporam atividades com as quais podem ganhar algum dinheiro em casa em um dia de trabalho prolongado; por exemplo, uma mulher afro-guianense acordou por volta das 3 horas da manhã para cozinhar uma variedade de lanches antes que o resto da família se levantasse e fizesse exigências, e para começar a vendê-los às 8 da manhã. [↩]