Em muitos níveis, as leis do estatuto pessoal do Iraque estavam entre as mais justas da região. No entanto, com a Guerra do Golfo em 1991, as mulheres começaram a ter seus direitos legais retirados. Isso se refletiu em práticas sociais encorajadas pelo regime, pois Saddam Hussein considerava que adotar as tradições islâmicas e algumas normas tribais reacionárias garantiria a ele o controle do país durante um período difícil. Desde então, as mulheres do Iraque passaram a enfrentar uma jornada de aumento de discriminação, violência sistêmica e opressão social, sem uma cobertura adequada da mídia. Neste texto, apresentaremos algumas leis e mudanças recentes, que o regime aprovou ou tentou implementar para prejudicar os direitos das mulheres no Iraque. Além disso, apresentaremos um breve panorama da resposta do movimento feminista a essas ofensivas.
A ocupação dos EUA e as guerras sectárias subsequentes exacerbaram formas de exploração, violência e insegurança no Iraque. Esses eventos militares levaram a uma deterioração da situação das mulheres. Em 2003, a Human Rights Watch documentou uma onda de violência sexual e sequestros em Bagdá. Na época, o relatório apontou que a insegurança e o medo de ser vítima desses crimes mantinham as mulheres presas dentro de casa, longe da escola, da universidade e do trabalho. Embora também houvesse rapto de homens, as mulheres que passaram por isso eram depois estigmatizadas pela família por causa do conceito de honra. As mulheres do sul do Iraque estavam sujeitas a ataques brutais cometidos por milícias em Basra, antes do governo iraquiano tomar controle da região rica em petróleo em 2008.
Em 2011, em outro relatório, a Human Rights Watch destacou as adversidades das mulheres jovens “viúvas, traficadas, obrigadas a casar cedo, espancadas em casa e assediadas sexualmente se saem de casa”. O relatório revelou o envolvimento de forças do governo nos abusos, incluindo na violência sexual contra mulheres que atuam como militantes políticas ou são familiares de homens dissidentes. Até hoje, quem comete violência contra mulheres é protegido pela lei iraquiana – o código penal considera que “crimes motivados pela honra” são um fator atenuante, mesmo no caso de assassinato, e dá ao marido o direito de castigar a esposa. Segundo Ali al-Rabi’i, especialista em direito, o Artigo 308 do estatuto, que impõe o casamento entre o estuprador e a sobrevivente do estupro, “destrói a punição contra o crime de estupro”, descriminalizando-o.
Muitos problemas enfrentados no Iraque após 2003 levantaram questões, sobretudo relacionadas à situação das mulheres e ao que foi feito de seus direitos, pois a maioria deles foi alvo de ataques durante as guerras e crises. Para as mulheres e o movimento feminista iraquiano, o episódio mais estranho e difícil foi a tentativa de abolir a Lei do Estatuto Pessoal N.º 188 de 1959, que dá um caráter laico ao casamento e ao divórcio e respeita os direitos das mulheres nesses casos. As primeiras tentativas nesse sentido vieram de Paul Bremer, administrador civil estadunidense da Autoridade Provisória da Coalizão – por meio da Resolução N.º 137 de 2003 – em conluio com figuras religiosas que se opuseram à lei de 1959, com base em uma concepção patriarcal das relações sociais.
Ao anular essa lei, Bremer tentou fazer da religião e suas vertentes a primeira referência para os indivíduos em seu estatuto jurídico pessoal. Ele fez isso ao abolir o conceito de um Estado civil e de igualdade entre mulheres e homens iraquianos perante a lei, ao mesmo tempo eliminando todos os direitos conquistados pelas mulheres iraquianas e estabelecidos na Lei do Estatuto Pessoal N.º 188. No entanto, militantes feministas reagiram a essa mudança retrógrada, pressionando pela manutenção da Lei N.º 188 e pela abolição da Resolução N.º 137 de 2003 (proposta por Bremer) editada pelo Conselho de Governo – primeiro órgão nacional a assumir o poder depois da autoridade da ocupação.
Não obstante, a batalha não terminou aí. O conteúdo dessa resolução infame foi estabelecido como artigo constitucional (Artigo 41), que dá aos iraquianos o direito de se referir a sua vertente religiosa na organização de seu estatuto pessoal. Mais uma vez, as militantes feministas conclamaram a opinião pública por meio de campanhas de incidência política – experiência singular na história da luta feminista iraquiana – com o objetivo de abolir o Artigo 41. De fato, o artigo foi congelado e está hoje entre os artigos constitucionais controversos que precisam ser ajustados.
Em 2014, o Conselho de Ministros revisou o estatuto legal de Jaafari proposto pelo Ministério da Justiça, gabinete encabeçado por um representante de um partido político islâmico. O objetivo do projeto era regular as condições de quem segue a doutrina sunita, de modo que não estejam vinculadas às leis do Estado, mas sim às leis religiosas. Não entraremos nos detalhes dessa lei, que inclui 253 artigos, mas mencionaremos alguns de seus artigos que mostram até que ponto o projeto controla a vida das mulheres no Iraque.
Segundo a pesquisadora Ilham Hammadi, o Artigo 50, sobre casamento de crianças, estipula que: “O pai e o avô paterno muçulmano sadio têm o direito exclusivo de obrigar o casamento de um menino ou menina ou de uma pessoa com doenças mentais cuja insanidade esteja ligada à puberdade.”
O Artigo 62, sobre casamento polígino: “O casamento de uma quinta mulher não será válido enquanto as quatro continuem sendo esposas do homem.” Assim, permite-se que um homem case com mais de uma esposa, até quatro mulheres, e pode casar com outra desde que não tenha quatro mulheres ao mesmo tempo.
O Artigo 63, sobre casamento com pessoa não muçulmana: “É estritamente proibido o casamento de uma mulher muçulmana com um homem não muçulmano, assim como o casamento permanente de um homem muçulmano com uma mulher não muçulmana apóstata da reigião islâmica.” Não é permitido a uma mulher ou a um homem muçulmano casar com alguém de fora da religião islâmica de modo permanente. No entanto, a lei permite que o homem se case com uma mulher não muçulmana em um casamento temporário.
Artigo 101, sobre os dois direitos do marido sobre a mulher: “Primeiro – que ela se permita a ele, seja para abordá-la, seja para ter qualquer outro divertimento estabelecido por ele segundo o contrato, sempre que ele desejar, e que ela não o impeça, exceto se houver uma justificativa legítima, desde que não aja de modo algum para contrariar o direito dele ao divertimento. Segundo – que ela não deixe o lar marital sem a permissão dele.”
Artigo 108, sobre a mulher desobediente: “Se a mulher desobedecer, negando ao marido o direito de desfrutar dela em sua totalidade, ela perderá o direito a pensão alimentícia, a abrigo e a relações sexuais. Caso ela recuse algumas vezes e saia de casa sem a permissão do marido, não há perda de pensão.” No entanto, os mesmos motivos não configuram um marido desobediente, a menos que ele se abstenha de relações sexuais com a esposa por mais de quatro meses (mesmo artigo).
Artigo 118, sobre a guarda dos filhos: “Se os pais se separarem e a mulher casar com outra pessoa, seu direito à guarda dos filhos é perdido e passa a ser reservado exclusivamente ao pai, mesmo que ela se separe do segundo marido.”
Artigo 126, sobre pensão alimentícia: “O marido não é obrigado a sustentar a esposa se ela for jovem demais para o marido desfrutar dela.”
Artigo 147, sobre divórcio: “O divórcio irrevogável, no qual o marido não tem direito de voltar à mulher divorciada, tenha ela respeitado o iddah (período, estabelecido no Corão, que a mulher precisa respeitar após morte do marido ou divórcio) ou não, é dividido em: A- Divórcio de menor de idade que não atingiu 9 (nove) anos de idade, mesmo que o casamento tenha sido consumado de forma intencional ou que haja suspeita…”
Esses são alguns dos dispositivos incluídos na nova lei Jaafari, e estão muito distantes do conteúdo da Lei do Estatuto Pessoal N.º 188 e dos direitos humanos e da criança em particular. Hammadi considera que, entre essas regras, as piores e mais perigosas são aquelas relacionadas ao casamento de meninas, sobretudo porque o legislador não definiu um limite de idade mínimo para o casamento. Isso significa que o responsável legal da criança pode fazê-la se casar a partir do momento em que ela nasce. Além disso, os dispositivos citados transformaram o problema da “imaturidade do sistema reprodutivo da menina” em “motivo para o desenvolvimento de legislação islâmica”. A criança é culpada por seu corpo não estar pronto para o ato sexual e tratada como jurídica e economicamente responsável.
Quando aprovou a Lei do Estatuto Pessoal N.º 188, o Estado iraquiano tomou um passo no sentido de modernizar sua legislação civil por meio de uma abordagem sobre os direitos das mulheres, mas há uma destruição contínua e sustentada desses esforços. O projeto de lei do estatuto Jaafari está congelado, graças a campanhas de pressão realizadas por feministas e pelo movimento civil iraquiano, mas a vontade política por trás dele segue presente e efetiva. Portanto, não sabemos quando o projeto será apresentado novamente e com ainda mais urgência. Ao mesmo tempo, as feministas enfrentam muitos desafios, o que torna seu trabalho e esforço contra esse sistema muito difícil e quase inaceitável socialmente. Assim, há uma marginalização da presença de mulheres, de seu trabalho político e de suas atividades sociais e econômicas. Sua presença na política como um todo é reduzida, resultado de casos perigosos de violência contra as mulheres, além do domínio de um pensamento patriarcal sistemático que subestima suas atividaes e questões e atua para objetificá-las.
É possível ver isso pelo domínio do islã político sobre a perspectiva social e jurídica geral sobre a mulher, que tem consequências opressivas e destrutivas para elas. No entanto, nada disso evitou o crescimento de um movimento feminista iraquiano forte e ativo, que se manifestou no Movimento Iraquiano de 2019 (um movimento progressista que se catalisou por meio de atos e protestos pacíficos na maioria das cidades iraquianas, exigindo direitos políticos, civis e econômicos para todas as pessoas, a libertação do controle do islã político e a rejeição de tabus sociais e políticos).
Teeba Saad é integrante da Marcha Mundial das Mulheres no Iraque e do Movimento do Levante Feminista Iraquiano.