Em todo o mundo, atravessamos uma crise do modelo de desenvolvimento capitalista. Sua dimensão ambiental tem um grande potencial destrutivo para a reprodução da vida na Terra, ameaçando, principalmente, as mulheres e as populações em situação mais precária.
Esse modelo se baseia em megaprojetos destruidores da natureza, como a mineração, o agronegócio, a venda de madeira ilegal e o monocultivo de plantas para produção de energia (cana-de-açúcar e soja, entre outros), que ameaçam as pessoas que vivem nos territórios explorados, seja no campo ou nas cidades. Eles afetam principalmente as pessoas negras e os povos e comunidades tradicionais, que sentem os efeitos da destruição de seus territórios e da contaminação da água e do ar e acabam por ser expulsas de suas terras em uma dinâmica que chamamos de racismo ambiental.
A crise climática, por mais que seja uma realidade urgente, tem sido pautada como único problema ambiental que enfrentamos, em detrimento de outros, como a perda da biodiversidade. Esse olhar reducionista favorece a apresentação de respostas simplistas para o problema, como é o mercado de créditos de carbono, no qual quem polui paga para, em teoria, compensar a emissão de gases do aquecimento global produzidas em sua atividade. Trata-se do que chamamos de falsa solução: além de criar outros problemas e aprofundar desigualdades sociais, os mecanismos de compensação não se detêm sobre a questão principal que é a necessidade de mudanças nos modos de produção, circulação e consumo.
Os créditos de carbono têm seu “lastro” em florestas (as responsáveis por absorverem o carbono da atmosfera, fazendo o papel de sumidouro), e o controle destas florestas envolve vigilância e expulsão de comunidades de seus territórios. Além disso, cada vez mais esferas da natureza – por exemplo, a própria terra – são vistas como sumidouros que absorvem carbono, o que aumenta a corrida das corporações por esses lugares, que se tornam essenciais para que seu modelo de negócios possa continuar funcionando.
Em nome de solucionar a crise climática, também são feitos diversos megaempreendimentos que destroem a natureza, como é o caso da extração de alguns minérios e terras raras, que avança pelo mundo sendo justificada pela necessidade de produzir placas e baterias para geração e armazenamento de energia renovável.
Crise energética e reforço do colonialismo
O caso da indústria energética também elucida bem o grau de hipocrisia do poder corporativo. Com os obstáculos para a União Europeia obter petróleo no contexto da guerra na Ucrânia, as empresas expandiram a exploração de petróleo e gás no norte da África e no Oriente Médio. Assim, em vez de se investir na diversificação da matriz energética e na produção de energia renovável – dando peso à transição energética –, optou-se pelo aprofundamento da exploração de combustíveis fósseis não-renováveis e pelo reforço da relação colonialista de países da Europa com países daquelas regiões.
Isso demonstra que a decisão sobre em quais fontes energéticas investir é, para as empresas, baseada antes no lucro fácil e no reforço do colonialismo do que em preocupações ambientais. No longo prazo, é possível que realmente haja uma “transição” nas formas de produção, visto que o esgotamento dos recursos é uma realidade cada vez mais próxima. Porém, se ela continuar sendo capitaneada pelo poder corporativo, não será nunca uma transição justa.
Economia marrom e economia verde: duas faces do mesmo poder corporativo
Vivemos um momento em que se ampliam tanto a exploração das energias fósseis e da “economia marrom”, quanto um aumento dos projetos “verdes” (de energia renovável por exemplo). O poder corporativo investe nos dois lados para suprir a demanda energética crescente no mundo e para garantir seus lucros.
A economia marrom pode ser descrita como uma forma de desenvolvimento econômico que não considera seus impactos sobre o meio ambiente e tem como base a extração incessante de recursos da natureza para seus processos produtivos. A mineração, o agronegócio, o desmatamento e os megaprojetos que causam grandes impactos ambientais se inserem nesse tipo de economia.
A economia verde foi criada como uma tentativa das corporações construírem seu lado “verde”, uma vez que as críticas dos movimentos sociais à economia marrom ganhavam cada vez mais força dentro da sociedade. Na prática, a economia verde não questiona os fundamentos da economia capitalista – o que realmente é o cerne da destruição da natureza – e insere mais elementos da natureza no circuito da mercadoria. O carbono, o ciclo da água e a polinização, por exemplo, são processos naturais que se transformam em mercadoria. A partir desta criação de um “capital natural” se criaram mecanismos de circulação deste capital, como o mercado de carbono.
Por exemplo, no encontro Estocolmo +50, que ocorreu em junho de 2022 como preparação para a Cúpula do Clima (COP27), nada de realmente importante e efetivo foi decidido: não se falou sobre aumentar as metas dos países ricos no corte de emissões de gases de efeito estufa e também não se definiu nada sobre a responsabilidade dos países mais ricos em contribuir para um fundo de combate e mitigação dos desastres climáticos nos países do sul. Junta-se a isso o fato de que, na última COP, a maior “delegação” presente na conferência foi a da indústria de petróleo e gás, com uma representação maior do que a de qualquer país. Estes fatos simbolizam como os espaços “oficiais” de decisão sobre o tema são, sobretudo, cúpulas de maquiagem verde e lilás das empresas e um espaço para fazer negócios.
Chamamos de maquiagem verde as ações que as empresas fazem para parecerem sustentáveis perante o público. É comum que grandes empresas que têm atividades com grande impacto ambiental façam peças de propaganda ou campanhas de “responsabilidade ambiental” que afirmam uma preocupação com a redução de seus impactos. Na realidade, essas ações têm nenhum ou pouco impacto ambiental positivo frente à destruição causada por essa mesma empresa.
Já a maquiagem lilás consiste em ações com caráter publicitário que têm a intenção de transmitir a ideia de que a empresa pratica a justiça de gênero. Elas incluem desde a promoção de cursos de profissionalização para mulheres até o uso de imagem das que ocupam cargo de poder nas empresas. Na prática, são iniciativas que não mudam a vida das mulheres, que são o grupo social mais afetado pelos projetos dessas mesmas empresas.
Corporações, mercantilização e financeirização da natureza
A concentração de gases que provocam o aumento da temperatura global se agravou muito nos últimos anos, mesmo diante das inúmeras cúpulas e acordos mundiais sobre as mudanças climáticas. Afirmamos que não haverá saída para a crise climática enquanto as corporações continuarem com tanto poder. Até o momento, as empresas e os Estados só apresentaram respostas de mercado ao problema climático, tendo como base os mecanismos de compensação e a precificação da natureza. Essas falsas soluções partem da ideia de que as pessoas somente valorizam e cuidam do que é pago.
Chamamos de mercantilização da natureza o processo de transformação de partes da natureza em mercadoria, como a terra, a água e as florestas, que até então eram tratadas como bens comuns. Já a financeirização da natureza é o processo de transformar partes da natureza em ativos passíveis de serem negociados no mercado financeiro, onde seus rendimentos representam uma fonte permanente de receita para quem detém este ativo. A financeirização da natureza tem se expandido nos últimos anos, acompanhando a mudança na lógica do capitalismo, que tem no rentismo – geração de renda que não vem do processo produtivo e sim da especulação no mercado financeiro – uma parte importante do processo de acumulação de capital.
Na prática, os bilionários continuam produzindo o que querem, comprando licenças para poluir, e o problema segue crescendo. Por outro lado, quem historicamente cuidou da natureza – os povos e comunidades tradicionais, a agricultura familiar agroecológica, as pessoas envolvidas com o cuidado da reprodução da vida em suas comunidades – sempre o fez lutando para que ela continuasse sendo um bem comum, fora do mercado e não submetida a sua lógica.
Centralidade do território no debate ambiental
Por tudo o que mencionamos antes, é fundamental pautar a centralidade dos territórios no debate ambiental e climático. Primeiro, porque é o local onde os efeitos tanto dos projetos de destruição quanto dos projetos de compensação são de fato sentidos. Na Marcha Mundial das Mulheres observamos que o avanço dos megaprojetos, das iniciativas de compensação e da digitalização em todo o mundo não ocorrem de maneira solta: eles se materializam em um avanço e exploração concreta sobre terras e territórios.
Segundo, é importante pautar o território porque é nele que os processos de luta e as respostas concretas ao poder corporativo estão se desenhando. Quando as mulheres colocam seu corpo em defesa do território, em ações de enfrentamento às empresas ou se recusando a trabalhar na roça em que o marido está aplicando veneno, elas realizam um enfrentamento cotidiano a este modelo. Também são elas que continuam se relacionando com a natureza a partir do comum.
O comum é um princípio político anticapitalista que se refere tanto a um conjunto de coisas que são geridas de forma comum como também à própria prática de gerar compartilhamento. Ou seja, ele é, ao mesmo tempo, os bens que são de uso comum entre as pessoas e a própria ação de fazer com que esses bens sejam compartilhados naquela comunidade. Muitos movimentos sociais contra o neoliberalismo e a globalização aderiram a esse princípio, que se expressa na frase: “Não existe comum sem comunidade!”. A partir do feminismo, afirmamos as práticas coletivas de cuidado com as pessoas e com a natureza como lutas políticas vinculadas ao comum.
Na Marcha Mundial das Mulheres, pensamos que os modos de produção e consumo têm que atender às necessidades reais das pessoas, e não do mercado. Nesse sentido, não é possível discutir sobre crescimento econômico como um valor em si, sem fazer as perguntas “produção para quê, como e para quem?” que muitas vezes é acompanhada da pergunta adicional “contra quem?”. Também pautamos a importância de planejar a escala (o tamanho e a concepção dos empreendimentos) e a centralização ou descentralização da produção, aspectos que na maior parte das vezes estão intimamente ligados aos impactos que esta produção tem sobre as pessoas, seus territórios e modos de vida.
Pautamos a soberania como uma condição inegociável da produção alimentar, energética e tecnológica. Ao falar de soberania, falamos não só da soberania nacional e regional, mas também da soberania popular e dos povos que se materializa, por exemplo, no direito à autodeterminação, a ter terra para produzir seu próprio alimento, a escolher como e o que produzir e no direito das pessoas sobre seus dados. A democracia é uma dimensão fundamental e totalmente incontornável desta soberania e só é possível se a participação popular estiver no centro. Por fim, acreditamos que a construção de verdadeiras soluções para a crise ambiental só será possível com menos poder corporativo e mais poder para as esferas públicas e comunitárias.
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Natália Lobo é agroecóloga, militante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da SOF Sempreviva Organização Feminista. Este artigo é um extrato do texto “Em luta contra a mercantilização e a financeirização da natureza: crítica feminista e o caso do Vale do Ribeira”, a ser publicado pela SOF Sempreviva Organização Feminista em português em novembro de 2022.