REDD+ é a sigla para “redução de emissões por desmatamento e degradação florestal”, uma estratégia que tem dominado as políticas florestais internacionais desde que foi introduzida, em 2007. É uma forma de manutenção da destruição, na qual empresas e governos poluidores podem apenas comprar licenças que as permitem continuar poluindo. Fazem isso pagando recompensas financeiras a comunidades que devem realizar trabalhos de reflorestamento ou cuidado com a floresta. Mesmo que boa parte dessas empresas estejam sediadas no Norte global, o trabalho de compensação é realizado principalmente em territórios do Sul global.
O sistema de compensações do REDD+ é uma falsa solução. Em sua lógica, as empresas não precisariam se preocupar em diminuir as emissões, o que implicaria em diminuir seus lucros, e sim em “compensar”. Mas essa conta não fecha, pois fontes diferentes de emissão geram uma quantidade de gases diferentes, com impactos também diferentes no clima. Além disso, tratar a natureza como uma equação matemática esconde que a destruição não tem apenas impactos globais, mas também impactos diretos, e gera violências e conflitos sobre comunidades e territórios – e, para isso, não há compensação. A experiência acumulada mostra como a existência de mecanismos de REDD+ foram ineficientes para enfrentar o desmatamento e as mudanças climáticas.
No marco dos 15 anos de enfrentamento ao REDD+, o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, sigla em inglês) publicou o livro 15 Anos de REDD: um esquema corrompido em sua essência. A publicação conta com 11 artigos de diferentes autores com análises sobre as políticas de REDD+ ao longo dos anos e os seus impactos nos territórios e nas vidas das pessoas. Em Moçambique, Gabão, República Democrática do Congo, Indonésia, Brasil e Colômbia, os países mencionados nos artigos, a mercantilização da natureza coloca em risco os modos de vidas de comunidades inteiras com falsas soluções perigosas para as pessoas e para o clima.
Para ampliar a circulação das perspectivas críticas a essa política, compartilhamos um dos artigos disponíveis na publicação. “Todo o carbono é igual? Carbono fóssil, violência e poder” foi escrito por Joanna Cabello, do Secretariado Internacional do WRM. Em seu artigo, Joanna desvela um argumento falacioso sobre o qual as políticas de REDD+ se baseiam: o de que os impactos do carbono liberado pela vegetação são equivalentes ao liberado a partir da queima de combustíveis fósseis. “Ao promover a falsa premissa de que todo o carbono é o mesmo, cientistas e formuladores de políticas também estão minimizando radicalmente a contribuição da indústria de combustíveis fósseis como principal causa do caos climático”, afirma.
Os movimentos sociais em defesa da vida e da justiça ambiental se colocam contra a financeirização da natureza e contra a economia verde promovida por políticas como o REDD+. Esses movimentos defendem uma transformação mais profunda no modelo de produção, ou seja, defendem que ela não esteja submetida à lógica corporativa de expansão de lucros à custa da natureza, da vida e do trabalho das comunidades. A partir das realidades de luta, os movimentos pautam, assim, uma reorganização da produção, da distribuição e do consumo que coloque a vida no centro, a partir da construção da soberania alimentar, energética e tecnológica.
Confira o texto de Joanna Cabello:
Todo carbono é igual? Carbono fóssil, violência e poder
O pressuposto por trás do REDD é uma mentira perigosa: a de que o impacto climático de todo o carbono é igual – seja ele liberado pela vegetação (“Carbono Biótico”) ou a partir da queima de petróleo, gás ou carvão (“Carbono Fóssil”). Esse pressuposto ofusca o fato de que a queima de “carbono fóssil” está impulsionando as mudanças climáticas. Também oculta a violência, a destruição e os abusos que estão na raiz dos impérios dos combustíveis fósseis. Então, quais são exatamente as diferenças e por que elas são tão importantes?
Nos últimos 15 anos ou mais, cientistas tradicionais e responsáveis por decisões endossaram amplamente a ideia de que o impacto climático de todo o carbono é igual… seja aquele armazenado na vegetação ou o que é liberado na extração de petróleo, gás e carvão. Esse é um pressuposto fundamental por trás dos mercados de carbono, do REDD+, da “emissão líquida zero”, do “desmatamento líquido zero” e agora, também, das chamadas “soluções baseadas na natureza”. Essencialmente, sem a premissa de que o carbono de diferentes fontes tem o mesmo impacto sobre o clima, as compensações não poderiam ser estabelecidas.
Independentemente de sua fonte, ao entrar em contato com o oxigênio, o carbono se transforma em moléculas de dióxido de carbono. Também é verdade que o excesso de dióxido de carbono acumulado na atmosfera é um problema que desequilibra o clima. Para além do impacto climático, esse excesso também está ligado a histórias de violência, poder e espoliação.
Por que tanta gente, inclusive cientistas como os membros do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), continuam insistindo em que não há diferença entre o impacto climático do carbono que está acima do solo e o que é liberado quando o petróleo, o carvão e o gás são extraídos?
Claro que é mais fácil e conveniente supor que o impacto climático de qualquer carbono é igual. Essa afirmação serve de base para se afirmar que gases de efeito estufa oriundos de diferentes fontes (fábricas, refinarias, uso do solo, transporte, produção de cimento, geração de energia etc.) e mesmo diferentes gases de efeito estufa (monóxido de carbono, metano e outros ligados à produção industrial) têm o mesmo impacto sobre o clima e que, portanto, os danos causados pelas emissões de uma fonte podem ser compensados pela redução das emissões de outra. É por isso que os cientistas que assessoram as negociações climáticas da ONU converteram diferentes gases que causam mudanças climáticas em unidades equivalentes de dióxido de carbono, ou CO2 e. Essa equivalência é uma condição prévia para a compensação. Mas o carbono de diferentes fontes não é o mesmo, e dizer que é esconde as histórias violentas, os conflitos e a opressão relacionados à extração de carbono na maior parte do mundo.
É fundamental reconhecer que o impacto climático da liberação do carbono que ficou preso no subsolo por milhões de anos e que agora é queimado na forma de petróleo, gás ou carvão em grandes quantidades, em um curto período, é diferente do impacto causado quando se libera algum carbono de ciclo rápido, que foi temporariamente armazenado acima do solo, em árvores, por exemplo.
E por que essa diferença é tão importante?
O carbono que circula no ar, nos oceanos, na vegetação e acima do solo costuma ser chamado de Carbono Biótico. Ele pode ser armazenado temporariamente em qualquer um desses locais, inclusive na vegetação, por exemplo, nas árvores. A partir daí, esse Carbono Biótico pode ser liberado facilmente de forma natural, por meio de incêndios, tempestades ou surtos de insetos, para citar alguns exemplos importantes. No entanto, a histórica destruição de florestas em grande escala, principalmente em países industrializados e para a expansão da agricultura industrial, resultou na acumulação, na atmosfera, de muito carbono que poderia ser armazenado nas florestas. O desmatamento criou um desequilíbrio no ciclo do Carbono Biótico: uma grande quantidade na atmosfera na forma dele está se acumulando de dióxido de carbono, acumulou como resultado da juntando-se ao que se queima de combustíveis fósseis.
Para queimar combustíveis fósseis, os antigos depósitos de Carbono Fóssil que ficaram trancados no subsolo por milhões de anos precisam ser destruídos. Esses depósitos subterrâneos são compostos de restos de plantas que cresceram milhões de anos atrás. O processo que transformou a vegetação em Carbono Fóssil envolveu enormes quantidades de tempo, pressão e calor, e resultou na concentração extrema do carbono. Essa alta concentração nos depósitos subterrâneos de Carbono Fóssil faz dele um poderoso transportador de energia. Pequenas quantidades de Carbono Fóssil contêm muita energia, em comparação com aquela contida na madeira ou no carvão vegetal.
Para transformar o Carbono Fóssil em gasolina, diesel e carvão, os seres humanos precisam de grandes máquinas para desenterrar e extrair o carbono desses depósitos subterrâneos. Quando for queimado como combustível fóssil, esse Carbono Fóssil que ficou bloqueado fora da atmosfera por milhões de anos permanecerá acima do solo por um tempo consideravelmente longo.
A vegetação, os oceanos e os solos do mundo só conseguem absorver uma quantidade limitada desse excesso, e certamente não são capazes de absorver o bastante, e com velocidade sufi ciente, para conter o desequilíbrio de CO2 na atmosfera da Terra. Como resultado, grande parte desse excesso de Carbono Fóssil se acumula na atmosfera, com impactos sobre o clima global.
A maioria dos cientistas atualmente reconhece que a queima de Carbono Fóssil está impulsionando as mudanças climáticas. No entanto, em suas conversas e recomendações de políticas, eles tratam o Carbono Fóssil e Biótico como se tivesse o mesmo impacto sobre o clima. A consequência é que o debate climático está focado nos gases de efeito estufa “equivalentes” na atmosfera, em vez de impedir que mais Carbono Fóssil seja liberado de seus depósitos subterrâneos.
Isso é muito problemático. Ao promover a falsa premissa de que todo o carbono é o mesmo, cientistas e formuladores de políticas também estão minimizando radicalmente a contribuição da indústria de combustíveis fósseis como principal causa do caos climático. E o estrago vai ainda mais longe. Afirmar que todo carbono é o mesmo também ajuda a ocultar a violência, a destruição ecológica e o abuso de poder que foram a base dos impérios empresariais dos combustíveis fósseis. Também espalha essa violência e esse abuso para onde os projetos de compensação supostamente armazenam uma quantidade equivalente do carbono liberado.
Essa conveniente narrativa de que “todo carbono é igual” permitiu que as empresas de combustíveis fósseis e todas as indústrias que dependem deles continuassem com suas atividades lucrativas como se nada estivesse acontecendo, apesar de quase três décadas de negociações climáticas da ONU. Também protegeu os lucros empresariais e financeiros, enquanto expressões como “neutro em carbono” ou “emissão líquida zero” estão legitimando a destruição continuada por parte das empresas.
Responsabilizando a indústria dos combustíveis fósseis!
O capitalismo depende da energia do Carbono Fóssil. Os combustíveis fósseis são o motor e o ingrediente em que o capitalismo globalizado de hoje está viciado.
Portanto, o caos climático é uma consequência direta da destruição constante dos depósitos subterrâneos de Carbono Fóssil e sua queima como combustíveis fósseis. A falsa narrativa da equivalência entre Carbono Biótico e Carbono Fóssil é claramente política. Ela permite que a indústria de combustíveis fósseis e seus aliados continuem com seus negócios muito lucrativos e destrutivos. Essa equivalência é mais um exemplo do poder da indústria de combustíveis fósseis, que, ao longo dos últimos dois séculos, destruiu e militarizou os territórios que ocupa para extrair, processar e transportar Carbono Fóssil ao longo de imensas redes de infraestrutura, dutos, estradas, portos e hidrovias, até chegar às refinarias poluentes e mortais e às áreas de poluição ao seu redor.
Quando, por exemplo, a companhia de petróleo Shell afirma falsamente que está compensando seu Carbono Fóssil com grandes plantações de árvores, pelo menos três mentiras estão sendo espalhadas. A primeira é que o Carbono Fóssil pode ser igualado ao Carbono Biótico acima do solo, e seu estrago, compensado com o armazenamento temporário deste. A segunda mentira é que o “problema da mudança climática” está sendo enfrentado, enquanto a realidade é que as compensações permitem a continuação da queima de combustíveis fósseis. E a terceira mentira é dizer que a “natureza” está lá, vazia, para que as empresas peguem e usem como seu reservatório de compensação de carbono. Nada pode estar mais longe da verdade.
É importante denunciar as mentiras e as falsas narrativas que estão por trás dessas premissas. Aceitar a falsa suposição de que o Carbono Fóssil e o Carbono Biótico afetam o clima da mesma maneira simplesmente fará com que o caos climático e a destruição contínua de territórios sejam acelerados ainda mais.