Larissa Packer: capitalismo verde, agronegócio e crise ambiental

03/05/2024 |

Por MST

A advogada socioambiental discute como a economia verde serve aos interesses financeiros, transformando bens comuns em ativos financeiros

Foto: Selma Farias

A crise ambiental deste século está diretamente ligada ao modelo de agronegócio, baseado em grandes latifúndios e de monocultura de commodities. A produção intensiva e predatória que avança no campo está praticamente ancorada no desmatamento da Amazônia e do Cerrado brasileiro, duas das regiões mais biodiversas do planeta. Na era da crescente preocupação com as mudanças climáticas e a sustentabilidade, a economia verde, o capital verde e o mercado de carbono emergem como ‘conceitos’ na busca por soluções ambientalmente responsáveis e ‘viáveis’.

A página do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST) entrevistou Larissa Ambrosano Packer para tratar desta dinâmica entre agronegócio e meio ambiente, trazendo aspectos referentes às novas tecnologias capitalistas na organização da agropecuária e as expressões da financeirização da economia na dinâmica agrária e ambiental. Packer é advogada socioambiental, mestre em Filosofia do Direito e integrante da equipe da Grain para América Latina.

A economia verde, que hoje parece “estar na moda”, traz soluções para o problema da crise ambiental global?

Essa relação entre mercado de capitais, agronegócio e meio ambiente se insere nessa tendência de busca dos investidores institucionais que gerem bilhões de dólares no mundo, buscando a maior rentabilidade possível para as “elites rentistas”, tanto pessoas físicas como jurídicas. Eu estou falando de BlackRock, Vanguard, State Street, Global Advisors, que gestionam trilhões de dólares, às vezes muito maiores que o PIB dos Estados Unidos e da China. Esses investidores institucionais profissionais, diante de oscilações do mercado de capitais e movimentos inflacionários e queda de juros, buscam ativos físicos, bens físicos tangíveis, como imóveis, infraestruturas de transporte, portos, aeroportos e metais preciosos como o ouro, as terras agrícolas e os recursos naturais no geral. 

Essa aliança de investidores institucionais no mercado de capitais e esses ativos físicos e tangíveis se inserem muito em momentos de crise, tanto como estratégia de proteção do dinheiro contra a inflação, como para colocar essa superacumulação de dinheiro em alguma base física que garanta uma rentabilidade de longo prazo mais segura do que os ativos financeiros tradicionais, como as ações, os títulos públicos. Isso se insere nesse momento de corrida por ouro, por terras, por imóveis, que vem sendo intensificado nos últimos 15 anos, desde a crise das hipotecas em 2008 nos Estados Unidos, que também gerou um enorme volume de capital financeiro sem lastro para aterrissar e que acabou levando a mais ou menos três grandes movimentos.

E quais são esses movimentos?

O Grain documentou que houve um aumento dos negócios internacionais com terras, de 2008 para 2009, de 4 milhões de hectares para 45 milhões de hectares. Isso foi denominado pela literatura como land grabbing, essa corrida por terras agrícolas que em 2011 também o Banco Mundial acaba referendando. 

Em 2012, por exemplo, havia vários investidores institucionais buscando empresas que gerenciam terras agrícolas nos Estados Unidos para adquirir e para colocar essa super acumulação de capital em um mercado limitado de terras. E isso levou a preços estratosféricos nos valores das terras, chegando a pagar até 67 mil dólares por hectare em Wisconsin. Para você ter uma ideia, esses chamados ativos reais – que na verdade são o mercado imobiliário, comercial e residencial – em 2021 correspondiam a 51% do total de ativos circulantes no mundo, representando 290 trilhões de dólares.

O segundo maior mercado é o de instrumentos de dívida, e que não chega a metade desse valor (123 trilhões de dólares) e o terceiro maior mercado é o do ouro. Também é um ativo muito procurado em momentos de crise, que dá maior segurança e proteção contra a corrosão do dinheiro em momentos inflacionários, e é um mercado de 12 trilhões.

Ainda segundo a AGBI Real Assets, gestora de ativos reais, os imóveis rurais representam mais de 35 trilhões de dólares, o que dá mais ou menos 6% dos ativos da economia mundial. Nos últimos 20 anos, as terras agrícolas valorizaram em 300%.

Se combinados, esse fundos imobiliários que investem em imóveis comerciais, residenciais e rurais somam mais de 320 trilhões de dólares, que é mais ou menos quatro vezes o PIB mundial de 2020. Então, a aliança entre investidores financeiros e agronegócio e recursos naturais se insere nesse momento de intensificação de crises financeiras, buscando proteção contra a corrosão do dinheiro frente à inflação e também uma maior rentabilidade, distribuição de dividendos para os investidores e elites rentistas.

Como toda essa corrida por capital impacta sobre às terras e os bens comuns dos países?

Isso impacta principalmente os países que têm terras agrícolas, que têm recursos naturais. Há um deslocamento dessa superacumulação de capitais para essas outras geografias do sul global, que têm terras e recursos naturais em abundância. Muitos investidores institucionais perseguem uma supervalorização desses ativos, aumentando o preço das terras e de commodities agrícolas, o que acaba impactando o valor dos alimentos, o acesso à terra e aos bens comuns que são providos pela terra, como a água, a biodiversidade, a vegetação nativa e a qualidade e integridade ambiental, que são direitos humanos vinculados à dignidade da vida e da saúde, tanto dos humanos quanto de animais e do planeta. 

Num momento de crise financeira, esses investidores financeiros aproveitam esse ambiente de superconcentração e de escassez para realizar a introdução de bens até então comuns no regime jurídico da propriedade privada e, ainda pior, no regime financeiro. Aproximam esses bens comuns não só do regime jurídico da mercadoria, mas dos próprios ativos financeiros. Subordinam bens até então comuns, como as terras, a água e os recursos naturais, aos interesses de distribuição de dividendos dos investidores de fundos. Isso significa que, quanto maior a expansão do agronegócio, produzindo poucas commodities de baixa qualidade nutricional para a exportação, com mais desmatamento, apropriação de terras e águas, maior a precificação desses ativos reais que se tornam ativos financeiros, e maior a distribuição de dividendos para essas gestoras de ativos e para essas elites rentistas mundiais. Isso acaba subordinando bens comuns e o interesse da população à estratégia de ganhos financeiros de poucas famílias, de poucas e pessoas super ricas no mundo.

Essa é a chamada economia verde?

A economia verde é mais um slogan para legitimar ou popularizar um interesse que é de classe, restrito a uma reduzida elite rentista e àqueles agentes financeiros que trabalham para ela. Então, você envolve interesses de classe e os coloca como se fossem um interesse global, maior, de todos.

A narrativa hegemônica afirma querer uma economia verde em que esses investidores ajudem o planeta, ajudem todas as populações a levantar recursos para projetos ambientais de baixo impacto. Mas fala isso exatamente para encobrir que se trata de uma economia do rentista, do capitalista, do investidor financeiro, que quer cada vez mais uma maior rentabilidade baseada no aumento do valor da terra e do valor da commodities e dos alimentos.

O resultado é uma minoria de proprietários e maiorias de sem acesso, sem teto, sem terra, fazendo com que esse acesso passe cada vez mais à composição do valor desses bens, passe cada vez mais pelo interesse de maior rentabilidade desses investidores.

Por mais que seja dito que esses recursos vão ser usados para o bem do planeta’, é intrínseca à dinâmica dos investimentos financeiros a busca por uma maior rentabilidade. A maior rentabilidade está ligada a negócios com a compra de terras a baixo valor e a sua venda valorizada a um alto valor.

Não é à toa que há muitas denúncias de envolvimento dessas gestoras de ativos em terras, inclusive fundos de pensão, que compram terras muito baratas no Matopiba [acrônimo que denomina uma região brasileira incluindo os estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia], que são baratas exatamente porque têm toda a sua cadeia dominial contaminada de vícios e fraudes por grilagem de terras públicas e coletivas. Depois de alguns anos, deixa de ser uma terra de pasto degradado para o monocultivo de soja, degradado por outros motivos, para produzir commodities para exportação. Isso valoriza as terras e, na venda dessa terra, se distribui os lucros para poucos investidores financeiros.

Há toda uma dinâmica de maior precificação ou valorização dessas terras e aqueles que não têm dinheiro são impelidos a vender as terras. Há uma concentração dessas terras, expulsão da população e de pequenos agricultores, povos e comunidades tradicionais, maior desmatamento e assim por diante. Quando você realmente acompanha o fenômeno do capital ligado ao que se chama de economia verde, o que vê é uma economia marrom, uma economia que leva a uma violência muito grande contra pessoas e o meio ambiente.

Em 2008, com a super acumulação de capital sem um lastro para aterrissar com a crise das hipotecas nos Estados Unidos, há uma fuga de capitais e uma busca por novas praças, novos ativos, mais seguros para esses trilhões de dólares aterrissarem. E houve mais ou menos três fenômenos: o land grabbing, com uma corrida global por terras no mundo, principalmente nos países do Sul global; a especulação financeira sobre as commodities agrícolas, com uma concentração por poucos fundos dos contratos futuros de compra e venda de soja e milho, etc, gerando um boom no índice de preços de alimentos; e a valorização econômica autônoma, referente ao valor da terra e valores ambientais.

Antes havia a qualidade ou integridade ambiental, que pertenceu ao regime jurídico dos bens comuns. Estes eram inapropriados por uma só pessoa e não poderiam ser negociados como qualquer outra mercadoria, justamente porque eram destinado a todos e todas, das presentes e das futuras gerações. Agora, há uma valorização econômica para o regime da propriedade privada, autorizando alguns atores a emitir um título de propriedade sobre o que eles começam a denominar serviços ambientais ou serviços ecossistêmicos.

Pode explicar mais como isso funciona?

Isso hoje já está como princípio de direito ambiental, mas, na realidade, se constrói todo um mercado de compra e venda a partir da precificação e autorização para contratos e circulação de novas mercadorias em torno de bens ambientais, que agora são tidos como ativos reais e podem integrar as trocas como qualquer outra mercadoria, principalmente no ambiente dos ativos financeiros.

No Brasil, a cota de reserva ambiental (CRA), que representa um hectare de vegetação nativa em qualquer estágio de regeneração, não precisa ser uma floresta primária ou secundária, pode ser uma área degradada ou que esteja ali se regenerando. Ela está prestando um serviço ambiental de sequestro de carbono com crescimento, deixando aquela área se regenerar e crescer. 

A partir desses territórios, você pode emitir títulos financeiros negociados na bolsa de valores e balcão organizado. Do mesmo jeito, a Nasdaq e a Bolsa de Valores da Califórnia também incluíram a água como um ativo financeiro, que também passa a ser negociado nas bolsas e precificado — a partir daí, fala-se em cotas de água. 

Estamos vendo bens comuns que pertenciam a todos transitarem para o regime da propriedade privada e, além disso, virarem um ativo financeiro. Isso pode ser indutor de desmatamento. Colocar a gestão ambiental dentro da lógica da oferta e da procura, dentro da lógica de precificação de mercado, pode gerar movimentos especulativos muito perigosos contra o meio ambiente. A lógica é: quanto maiores forem os focos de incêndio na Califórnia ou no Pantanal, e menor a quantidade de água disponível e mais escassa, maior vai ser o valor da cota na bolsa. E quem detém essas cotas vai ter maior rentabilidade, vai passar a comprar e vender essas cotas por um maior valor no mercado secundário. Do mesmo jeito, as cotas de reserva ambiental em locais de maior expansão da mineração, do agronegócio, com monocultivo de soja, algodão e milho, terão menor quantidade de florestas ou de vegetação nativa e protegida, e será maior o valor das cotas. Isso não tem nada a ver com proteção ambiental. Estamos falando de economia financeira, que não tem nada de verde.

Entrevista conduzida por Fernanda Alcântara com edição de Solange Engelmann
Revisão por Helena Zelic

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