Na atual conjuntura, o império estadunidense, reagindo à sua própria decadência, impulsiona as guerras e conflitos atuais enquanto prepara condições para novos embates. As guerras, os conflitos e a militarização se expressam de novas maneiras: são as guerras por recursos naturais, guerras híbridas e guerras assimétricas, marcadas pela violência extrema e aprofundamento das desigualdades. Exemplos disso são o genocídio palestino, os conflitos que envolvem territórios vizinhos como o Irã e Líbano, os deslocamentos forçados no Sudão, as crises provocadas por sanções em Cuba e na Venezuela e o fortalecimento de entidades de guerra, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Como define a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), essas são “expressões de violência que foram naturalizadas dentro do sistema capitalista patriarcal, assim como são as ferramentas utilizadas por esse sistema para manter a sua dominação”. Essa visão compreende as muitas formas de ocupação e exploração militarizada dos territórios, corpos e trabalho das mulheres, e faz parte da leitura feminista da Marcha Mundial das Mulheres na luta contra as guerras. Expressa-se, inclusive, no lema da 6ª Ação Internacional realizada pelo movimento ao longo deste ano de 2025: “Marchamos contra as guerras e o capitalismo, defendemos a soberania dos povos e o bem viver”.
A atividade virtual “Visão feminista para a paz na região Ásia-Pacifico”, organizada pela Marcha Mundial das Mulheres e a Mulheres em Luta por Empoderamento [Women in Struggle for Empowerment – WISE], foi parte do calendário da 6ª Ação. Durante a atividade, Ana Maria Nemenzo, da MMM Filipinas, compartilhou um relato sobre como os Estados Unidos permanecem sendo o principal inimigo na região, ameaçando a soberania do país e construindo cenários de conflito com a China:“As Filipinas se viram inseridas nessa rivalidade político-econômica contínua entre os EUA e o poder emergente da China. Mas não apenas na região, os EUA têm sido muito agressivos, interferindo em todos os assuntos internos nacionais de países ao redor do mundo, seja na Europa, Oriente Médio, Ásia e assim por diante”.
A ocupação de território asiático por bases militares estadunidenses coloca muitas mulheres da região sob o risco de abusos e violência sexual. Em resposta, elas vêm formando coalizões internacionais, como a Rede Internacional Mulheres Contra o Militarismo [International Women’s Network Against Militarism] e a Coalizão Parem a Guerra [Stop the War Coalition], para denunciar essas violências e submetê-las ao sistema judiciário.
Gayani Gomes, da MMM no Sri Lanka, compartilhou como o feminismo é a principal ferramenta das mulheres na construção da paz. Ainda assim, segundo ela, a ausência de guerras não significa necessariamente a paz para as mulheres: “Para muitas mulheres no Sri Lanka, o fim da guerra em 2009 não trouxe uma paz real. Marcou o início de um novo capítulo para as sobreviventes. Especialmente nas regiões norte e leste, milhares de mulheres se tornaram viúvas, passaram a chefiar famílias e foram forçadas a se deslocar. Muitas enfrentaram violências, particularmente violências sexuais, e mesmo assim suas histórias foram marginalizadas — essas mulheres não foram representadas nas discussões de paz”.
Mesmo os processos de negociação para o estabelecimento da paz não levaram em consideração as reivindicações das mulheres que buscavam cura, justiça e dignidade, para além de um acordo de cessar-fogo.
Bangladesh também é palco de uma militarização contínua desde a guerra de independência em 1971. Salima Sultana, da MMM no país, explica que, durante essa guerra, cerca de 200 mil mulheres foram vítimas de violência sexual. Embora tenham sido consideradas birangona, ou seja, heroínas, essas mulheres foram marginalizadas ao fim do conflito. “A guerra alterou temporariamente os papéis de gênero tradicionais, pois muitas mulheres assumiram responsabilidades normalmente atribuídas aos homens — cuidando das famílias, participando da resistência e administrando os recursos domésticos em meio à crise. Após a guerra, seu poder nos processos de tomada de decisão foi limitado pela estrutura patriarcal do pós-guerra, e as mulheres foram forçadas a retornar aos papéis tradicionais de cuidadoras”, explica.
Uma marca do pós-guerra em Bangladesh foi a crise na gestão dos recursos que culminou na Grande Fome de 1974, no qual 1,5 milhão de pessoas morreu. A militarização e ocupação de terras também faz parte da realidade desse país, assim como de outros da região da Ásia-Pacífico. Especialmente nas Colinas de Chittagong, em Bangladesh, as mulheres indígenas perderam suas terras, afetando também a produção de alimentos na região.
A paz das mulheres
Os desafios enfrentados pelas mulheres nos processos de paz são a exclusão sistemática, o patriarcado institucional e o medo da retaliação e da repressão. A partir da organização e mobilização, as mulheres defendem construir uma paz com foco em justiça social, acesso à terra e soberania alimentar. Para a paz ser duradoura, as mulheres e suas demandas por justiça e reparação devem estar no centro das negociações.
Diante do recente conflito entre Índia e Paquistão, movimentos feministas desses e de outros países foram centrais na demonstração de solidariedade concreta, com organização de campanhas pelo cessar-fogo. Bushra Khalik, da MMM no Paquistão, compartilhou que as feministas condenam o conflito em Pahalgam e todas as formas de extremismo ao redor do mundo. “O papel das organizações da sociedade civil e do movimento feminista é divulgar nossas declarações. Nós, mulheres, como cidadãs do Paquistão, não queremos uma guerra nesta região ou nas fronteiras. Defendemos o início de diálogos entre os dois países em nível diplomático, estatal e também popular. Fomos às ruas, fizemos manifestações e participamos de uma marcha pacífica sob a bandeira da WISE e de outras organizações, exigindo paz — uma paz duradoura para o povo”, afirma.
As organizações feministas também tiveram papel central no Sri Lanka após a guerra de 2009, especialmente no trabalho de documentação dos acontecimentos e das violações sofridas pelas mulheres. Salima conta como essas organizações foram fundamentais nos processos de memória e verdade. Explica ela que “Grupos de mulheres como a Federação para o Desenvolvimento das Mulheres [Women’s Development Federation], a Rede de Ação das Mulheres [Women’s Action Network], o grupo Mães e Filhas de Lanka [Mothers and Daughters of Lanka] — que é uma rede coordenada pelo Centro das Mulheres [Women’s Center] — e também uma rede de mães de pessoas desaparecidas documentaram violências sexuais, expropriação de terras, desaparecimentos e outras táticas. Esses esforços deram visibilidade às experiências de comunidades especialmente marginalizadas no Sri Lanka, como os povos tâmil, muçulmano e cingalês. Essas mulheres não foram apagadas — na verdade, elas lançaram as bases para um processo de reconciliação centrado nas pessoas. Sem a verdade, não podemos alcançar uma paz genuína”.
A luta por paz no Sri Lanka passa por exigir uma maior representação de mulheres em espaços de participação política e de decisão e por denunciar a forte militarização ainda presente na sociedade. Em áreas de maioria tâmil, a presença militar é intensa e as mulheres enfrentam vigilância diária, intimidação e liberdade de movimento limitada. Salima conta como “Grupos feministas desafiam corajosamente essa realidade, argumentando que a desmilitarização não é uma questão secundária — ela também é central para a paz. Assim, paz significa libertação da violência, seja ela praticada por grupos armados ou por forças estatais”. As mulheres compreendem a importância da justiça econômica para uma paz sustentável, especialmente para as mulheres das regiões norte e leste que seguem trabalhando em setores precarizados. Nesse caminho, organizações como a Women’s Centre e a MMM dão apoio legal e atuam na mobilização por salários justos, em uma compreensão de que a paz também tem a ver com acesso a sustento, moradia, educação e segurança alimentar.
Nas Filipinas, Ana Maria enfatizou a importância da mobilização popular, das redes feministas e das denúncias públicas para resistir à militarização. Ela compartilhou a experiência inovadora da organização de comboios civis de barcos de pesca para defender soberania territorial e as condições de vida e trabalho dos pescadores nas ilhas no Mar do Sul da China, com crescente presença naval chinesa. “Essa é uma tarefa enorme, pois envolveram movimentos e artistas da Coreia, Taiwan e artistas locais para realizar um concerto no Mar da China Meridional, próximo às ilhas, em apoio às comunidades pesqueiras que têm usado essas águas”, conta.
A solidariedade internacional entre as mulheres é fundamental para resistir à normalização da guerra. A partir de alianças locais e internacionais, mulheres visibilizam o caráter capitalista, racista e patriarcal das origens dos conflitos e colocam as vozes feministas nos processos de paz. Yildiz Temürtürkan, coordenadora do Secretariado Internacional da MMM, ressalta a importância de conectar os movimentos feministas à nível internacional. Nesse sentido, a Marcha Mundial das Mulheres é um espaço poderoso para construir convergências e lutas comuns.
Desde o início, a Marcha Mundial das Mulheres tem atuado nesse campo [paz e desmilitarização]. Em 2000, logo depois de apresentarmos nossas demandas às Nações Unidas com uma grande campanha e ação global, foi adotada uma resolução chamada Resolução 1325 da ONU, que garante um status especial de participação das mulheres nos processos de paz. Fizemos uma manifestação muito importante durante a cúpula da OTAN em Quebec contra a invasão e ocupação do Afeganistão. Em 2005, organizamos manifestações em vários países onde havia conflitos nas fronteiras. Em 2010, realizamos uma importante ação na República Democrática do Congo. Em 2015, fizemos a caravana feminista na fronteira da Síria. Foi um momento muito importante na época, pois os jihadistas estavam atacando as mulheres e ameaçando seus direitos. E agora estamos realizando nossa ação global no Nepal.
Yildiz Temürtürkan
Nesse momento em que a luta pela paz é central em muitas partes do mundo, a MMM realizará o encerramento da sua 6ª Ação Internacional no Nepal. A escolha da região apresenta uma oportunidade de unir mulheres de movimentos pela paz internacionais para aprender e compartilhar experiências de luta. Como explicou Yildiz, “Este é um passo concreto dado dentro da nossa 6ª Ação Internacional, no Dia Internacional da Paz, em 21 de setembro, para construir uma aliança mais ampla pela paz na região e também em nível internacional”.