Quando uma mulher quilombola tomba, o quilombo se levanta com ela

25/07/2022 |

Por Coletivo de mulheres da CONAQ

Mulheres quilombolas relatam sua experiência de organização e prioridades de luta no Brasil

Renata Reis

Em 2011, no IV Encontro Nacional da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), no Rio de Janeiro, foi decidida a realização do I Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas, que veio a ocorrer em 2014, em Brasília. Desde este primeiro evento, o coletivo tem trabalhado ativamente nas deliberações políticas e tomadas de decisões pertinentes para as mulheres quilombolas dentro do movimento. Em 2015, o movimento de mulheres quilombolas foi fortalecido em suas alianças com a participação na coordenação executiva da Marcha das Mulheres Negras, ocorrida em 18 de novembro de 2015. De 2016 a 2018 foram realizadas seis oficinas nacionais de mulheres quilombolas contra o racismo, a violência e pelo bem-viver; mais de mil mulheres participaram diretamente das oficinas. Desde então, o coletivo de mulheres da Conaq tem colaborado e reforçado encontros e atividades de mulheres negras em diferentes localidades em todo o País.

As mulheres quilombolas têm assumido a tarefa de estabelecer um intenso diálogo contra a violência nos quilombos do Brasil, pautando suas especificidades e a conjuntura atual, que torna essa violência mais frequente e evidente. Nossa busca é apontar desafios dessa luta, focando sobretudo nas mulheres quilombolas.

Não é de hoje que os direitos das mulheres, que lutam com seu corpo em defesa de seus territórios, são invisibilizados. Atualmente vemos a formação de um cenário preocupante de retrocesso dos direitos dos povos quilombolas, dentro de uma ideologia conservadora e fascista que tem encontrado ecos em nível mundial. Essa crise, que além de tudo é econômica, implica ainda maior exploração e violação da vida das mulheres quilombolas. Nos últimos anos, temos observado o aumento de várias formas de violências contra elas: feminicídio, sobrecarga de trabalho, retirada de direitos sexuais e reprodutivos, aumento da informalidade do trabalho. Esse contexto tende a piorar com a crise social reforçada pela pandemia do coronavírus e o pacote de reformas que vem sendo promovido pelo Estado. Pesarão de forma injusta e desproporcional sobre as mulheres negras, em especial as do campo, não só as consequências da crise, mas também as soluções que serão implementadas pelo Estado para superação dos problemas e recuperação da economia.

Infelizmente, as violências sofridas pelas mulheres quilombolas não têm diminuído, muito pelo contrário, elas seguem se multiplicando e se diversificando. A luta pelo território cumpre um papel central na reivindicação de direitos dos povos quilombolas, pois do território depende o exercício de diversos direitos fundamentais, como o acesso à educação escolar quilombola, livre uso e preservação da sociobiodiversidade, o direito à produção agrícola tradicional e o direito à cultura.

A liderança das mulheres quilombolas, por sua vez, é central na luta política pelo território, na medida em que sustenta, protege e desenvolve o principal elemento de sustentação do quilombo: a coletividade.

É no contexto da luta pelo território que a violência contra as defensoras quilombolas se produz, na forma de ameaças explícitas, calúnia e difamação, além de intimidações aos familiares. Essas práticas de violência impactam não só essas mulheres, individualmente, mas também a coletividade do quilombo, uma vez que pretendem desestabilizar a liderança, a comunidade e, consequentemente, a luta por direitos.

No Brasil, vigora uma estratégia institucional velada de prolongar indefinidamente os processos de titulação dos territórios, associada à restrição de recursos orçamentários. Assim, além de impedir o exercício de diversos direitos diretamente relacionados aos territórios, a morosidade injustificada do processo de titulação perpetua o contexto de violência a que são submetidos os quilombos e suas defensoras.

É, por isso, urgente e necessário que os quilombos sejam ouvidos, que suas pautas sejam acolhidas e que medidas sejam tomadas para que se respeitem os processos de titulação e os direitos territoriais dos povos quilombolas, sob pena de alimentarmos um ciclo extenso de violências e vulnerabilidades sociais.

Os crimes cometidos contra quilombolas são ainda marcados pela impunidade. São alarmantes, sobretudo, os casos de feminicídio. Casos em que mulheres quilombolas vítimas de violência tiveram suas vidas ceifadas, como Francisca Chagas, quilombola de Joaquim Maria, no Maranhão, assassinada em 2016, e de Maria Trindade, do Quilombo Moju, no Pará, assassinada em 2017, necessitam de resposta eficaz e célere do Estado para se estancar o ciclo de violência. Mulheres quilombolas em posição de liderança têm vivido sob perseguição política, ameaças de morte e processos criminais ilegítimos com o objetivo de intimidar sua luta. Trata-se de um contexto acirrado de violência com consequências graves para a saúde física e emocional das defensoras de direitos humanos quilombolas.

O avanço de empreendimentos, obras, projetos de desenvolvimento (como portos e ferrovias), especulação imobiliária (construção de condomínios e resorts) sobre os territórios quilombolas e a presença de militares em determinados quilombos têm historicamente restringido o livre exercício de direitos.

São muitos os exemplos de empreendimentos que geram conflitos sobre a propriedade, o acesso à terra, o uso e a preservação dos territórios, comprometendo a autonomia dos quilombos e sua sobrevivência:

> a instalação da base espacial de Alcântara, a duplicação da Rodovia BR 135 e a construção de linhão de energia, afetando inúmeros quilombos no Maranhão;

> os projetos de construção das pequenas centrais hidrelétricas em diferentes territórios de quilombos como Kalunga, em Goiás, e Invernada Paiol de Telha, no Paraná;

> projetos de ferrovias e portos, ameaçando os quilombos Contente e Barro Velho, em Paulistana, no Piauí (construção da ferrovia Transnordestina) e os de Santarém no Pará (construção de portos no Lago do Maicá);

> projetos de construção de usina nuclear, em quilombos como Negros de Gilú, de Poço dos Cavalos e Ingazeira, em Itacuruba, Pernambuco;

> a expansão do agronegócio, impactando quilombos como Invernada dos Negros, em Campos, Santa Catarina; projetos de construção de empreendimentos imobiliários, como os que têm afetado o Quilombo de Mesquita.

É preciso também assinalar o impacto de crimes ambientais cometidos por empresas, como o sofrido por quilombolas da região de Brumadinho, em Minas Gerais, com o rompimento da barragem da Vale, em janeiro de 2019.

Essa ofensiva contra os direitos e a vida das mulheres quilombolas, seja por meio de iniciativas do Estado, seja pelo interesse de expansão econômica de atores privados, é orquestrada por dois conjuntos de violações fundamentais de direitos dos povos quilombolas. O primeiro decorre da denegação do direito ao título definitivo de propriedade do território. O segundo refere-se ao descumprimento do direito à consulta de povos quilombolas, em total desacordo com o compromisso assumido pelo Estado brasileiro na Convenção da Organização Internacional do Trabalho n° 169, de 1989. Nesse ponto, a violação de direitos é cúmplice da morosidade na titulação dos territórios quilombolas, dos cortes orçamentários e da baixa execução do orçamento para assegurar os processos de titulação, bem como dos rearranjos administrativos que atravancam as políticas de regularização dos quilombos. Ressalte-se aqui as mudanças operadas pela Medida Provisória n° 870/2019 e pela Instrução Normativa nº 1/2018 da Fundação Cultural Palmares, que trata de processos administrativos de licenciamento ambiental de obras em comunidades quilombolas.

São condições preliminares para que as instituições do Estado admitam as mulheres quilombolas como sujeitos de direito:

> medidas governamentais para garantir a proteção de mulheres quilombolas;

> medidas efetivas contra os crimes violentos cometidos contra quilombolas;

> uma política eficaz de defesa das mulheres quilombolas contra a violência doméstica e outras formas de violência de gênero;

> medidas efetivas para coibir o discurso racista, em especial das autoridades públicas, e o discurso de ódio contra quilombolas;

> garantia da continuidade e da celeridade na titulação dos territórios quilombolas e o direito de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé dos povos quilombolas, com transparência e acesso à informação.

Em defesa dos nossos territórios, da luta e da reivindicação por mais visibilidade e direitos, e em defesa das vidas de quilombolas, que têm sido ceifadas em todo o Brasil, as mulheres quilombolas têm atuado em diferentes contextos para afirmar: vidas quilombolas importam!


Esse texto foi publicado originalmente no livro “Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas”, organizado por Selma dos Santos Dealdina, publicado pela editora Jandaíra em 2020.

Fazem parte do coletivo de mulheres da Conaq: Ana Carolina Fernandes, Ana Maria Cruz, Andreia Nazareno, Célia Cristina da Silva, Edna da Paixão Santos, Érica Monteiro, Geisiane Paula Pacheco, Greice Martins, Ingrede Dantas, Isabela da Cruz, Kátia dos Santos Penha, Laura Ferreira, Maria Aparecida Sousa, Maria Rosalina dos Santos, Maria do Socorro Fernandes, Nilce Pontes, Rejane Maria de Oliveira, Sandra Maria da Silva Andrade, Sandra Pereira Braga, Selma dos Santos Dealdina, Vercilene Francisco Dias e Valéria Carneiro.

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