“Nós recusamos, nos unimos, nos movimentamos”: Lutas LGBT+ no Líbano

19/10/2022 |

Por Zahra Awaly com apoio de Jana Nakhal e Loren al Khatib

Conheça a construção cuidadosa da mobilização LGBT+, feminista e antineoliberal que tomou as ruas de Beirute em julho de 2022

No sábado, dia 31 de julho, feministas e pessoas queer saíram às ruas de Beirute em protesto contra a situação que nos reprime desde o final do levante de 2019. A manifestação era inevitável e irrompeu um discurso radical contra a violência, a exclusão e o poder do capital que domina a(s) cena(s) feminista/queer no Líbano. Isso não quer dizer que “demos uma lição no sistema” nem que erradicamos a cooptação neoliberal do movimento feminista, ainda mais em um país ainda muito colonizado que, por acaso, está localizado logo ao norte da Palestina e a oeste da Síria, passando por um imenso colapso econômico. Mas a manifestação — a forma como foi organizada, como nos unimos — pareceu crucial na época e, agora olhando para atrás, ainda é uma experiência que traz um aprendizado e que deve ser mantida viva. Foi início de algo e uma prova de grandes valores feministas e de uma abordagem popular e interseccional que se construíram na cena.

Panorama do contexto libanês

Como é de se esperar, no sistema libanês — no sentido social, político e econômico —, questões queer e de gênero são motivos que levam à exclusão e a práticas violentas. Ao mesmo tempo, o racismo é estrutural e prospera durante a crise. Alguns incidentes provocaram especial reação antes da manifestação. Desde a guerra civil libanesa (1975-1990), “movimentos de oposição” se dividiram entre organizações/partidos politizados e ONGs. Como grupos de esquerda não apoiaram a luta das mulheres e até hoje se recusam a adotar uma abordagem interseccional de fato para os direitos de trabalhadores e trabalhadoras, a arena ficou livre para ONGs e organizações neoliberais. Mesmo com as modestas tentativas recentes de partidos de esquerda e movimentos de juventude para incluir algum feminismo no discurso, a população LGBTQ+ foi excluída. O pretexto foram as prioridades. No entanto, a homofobia, a transfobia, o conservadorismo patriarcal e talvez o medo da reação da direita a essas demandas estavam por trás da incorporação tardia desse discurso. A deficiência da nossa chamada esquerda fica mais evidente quanto mais percebemos sua inação diante dos direitos de pessoas refugiadas e imigrantes.

Contra a violência, contra o neoliberalismo

O protesto aconteceu após um longo período de recuperação da tentativa fracassada de revolução (2019-2020). Além disso, vínhamos ouvindo falar de uma série de assassinatos e abusos cometidos contra mulheres, pessoas desconhecidas, amigas e conhecidas. Outras foram vítimas de práticas permitidas por lei que negaram a elas o direito à maternidade, entre outros. Depois, cristãos extremistas conservadores organizaram ataques violentos contra diversos eventos em Beirute que debatiam ou tratavam da questão queer. O Ministério do Interior achou que a solução para acabar com a violência seria divulgar uma declaração proibindo qualquer tipo de encontro ou evento que “promovesse aberrações”, em suas palavras.

Em reação, algumas ONGs conhecidas convocaram um protesto em apoio à “visibilidade e ao orgulho” LGBT+ em frente ao prédio do Ministério do Interior em um domingo, ignorando o contexto inseguro em que organizavam o ato. Além disso, um dia antes dessa convocação, soubemos que trabalhadores rurais sírios no Vale do Beca haviam sido espancados e torturados pelo proprietário da terra — ou, se preferir, pelo senhor deles — para coagi-los a serem explorados por lucro. As mesmas ONGs que ficaram tão exasperadas pela agenda LGBT+ não fizeram qualquer menção a esse incidente de raízes sistêmicas.

A revolta diante desses episódios foi moldada com a revolta diante da forma como eles foram tratados e os terríveis dois pesos e duas medidas demonstrados pelas ONGs, considerando que este último é um padrão político. Muitas lideranças de ONGs, sobretudo aquelas que residem fora do país, não conhecem as lutas cotidianas nem sabem como é temer constantemente pela própria vida. Além disso, as decisões são tomadas com base no que querem os financiadores, principalmente “orgulho”, não nas necessidades das pessoas. Ademais, até alguns serviços que oferecem sofrem com falta de continuidade, confiabilidade e decência básica ao falar com as pessoas, como prometer recursos a uma pessoa trans sem-teto e depois não retornar mais as ligações dela.

O que aconteceu com o protesto tão repentino foi que apenas pessoas cis e héteros libanesas participariam, pois o resto de nós estava com medo do assédio. Nós — incluindo pessoas que integram e trabalham nessas ONGs — votamos contra o ato e instamos pelo seu cancelamento, para organizar algo que dialogasse com nossa realidade.

Nossa manifestação: como nos unimos e como foi

Convidamos pessoas de confiança por meio de nossas conexões: a mensagem inicial se espalhou rápido de um círculo a outro, pois o país é pequeno. Foi um convite ao mesmo tempo aberto e não público. Fizemos reuniões sigilosas, porque os conservadores estavam à espreita e a polícia ainda estava atuando com base naquela declaração. Os primeiros dois encontros foram dedicados apenas à discussão do conceito de “segurança acima da visibilidade” em todas as suas facetas, estabelecendo-o como nossa prioridade.

Apesar dos desafios, foram feitos esforços substanciais para envolver o máximo possível de pessoas nos diálogos e processos de tomada de decisão durante o mês de julho, utilizando uma variedade de métodos de comunicação (presencialmente, pela internet, por WhatsApp), fazendo novas reuniões quando necessário. Chamamos as páginas das redes sociais de Taharok Nasawi (movimento feminista em árabe) e o evento de “nós recusamos, nos unimos, nos movimentamos”.

Fizemos um esforço para ser o mais horizontal possível. Por exemplo, fizemos diversas votações para chegar à declaração de posicionamento oficial do movimento. A definição de papéis e responsabilidades ao longo dessas reuniões foi feita com atenção e as pessoas empenharam toda a dedicação na produção de textos, infográficos, coordenação e na garantia da cobertura pelas redes sociais. E pela forma como debatemos, com respeito, crítica construtiva e gentileza, quase não parecia trabalho. Uma companheira que milita desde 2013 afirmou que essas reuniões foram as menos tensas e mais produtivas de que ela já participou, e esse é um aspecto que vale ser mencionado em um artigo político feminista.

A discussão sobre a segurança de manifestantes era séria. Temíamos que a política poderia prender e realizar exames toxicológicos em pessoas que não tivessem documentos, refugiadas, imigrantes e LGBT+.

Criamos um comitê de segurança e elaboramos táticas: se você tem privilégios e a polícia atacar, jogue-se à frente de companheiras e companheires com menos privilégios. Essa é a regra. A ideia era que pessoas que estivessem carregando bandeiras ou sofressem com o risco de assédio pudessem estar no centro do protesto cercadas por aquelas que não estivessem nessa situação, e haveria planos de contingência caso atendimento médico ou assistência jurídica fossem necessários. Houve tentativas sérias de decentralizar o protesto, mas não tínhamos ferramentas e a infraestrutura social e econômica para isso.

As questões discutidas foram definidas com cuidado e abarcavam muito mais do que simplesmente uma objeção à declaração emitida pelo ministério. Uma das questões foi correlacionar economia e gênero, assim como rechaçar o discurso de violência do Estado e afirmar que todas as pessoas, incluindo refugiadas, queer e trabalhadoras, são prioridade (em oposição às vozes de direita que negam o direito a alimentos para refugiados e refugiadas na crise). Destacamos que atos de violência são sistêmicos, não individuais, e que o tecido social abre esse caminho. Também afirmamos a inclusão de demandas queer na luta feminista de forma indissociável. Além disso, tivemos imenso cuidado de incluir a presença das pessoas que não puderam estar presentes no protesto por questões de custo do transporte ou porque a elas foi negada a liberdade de movimento. Uma de nossas palavras de ordem era que estávamos protestando pelas pessoas que não podiam estar conosco.

A manifestação em si começou na Ponte Ring e atravessou o centro de Beirute, reunindo um grande número de participantes (mais do que o esperado). O ato expressou, em bandeiras e cantos, uma maravilhosa gama de demandas radicais, inclusivas e detalhadas, garantindo ainda a segurança de todas as pessoas.

Imagens e vídeos da manifestação garantiram a segurança e o anonimato de quem optou por não se expor e ainda conseguiram mandar um recado para quem vem sentindo solidão, exclusão e estigmatização no último período no Líbano. Esperamos que isso ajude não só a construir uma coalizão entre diferentes grupos marginalizados, mas também a romper o domínio do discurso hegemônico sobre as vidas de quem sente a rejeição e a marginalização.

A Marcha Mundial das Mulheres na manifestação

Companheiras da Marcha Mundial das Mulheres estavam entre as primeiras participantes da organização; fizemos parte dos grandes círculos que entenderam o recado e o difundiram. Empenhamos todo o nosso esforço na cobertura nas redes. Além disso, é importante ter em mente que esses movimentos não acontecem da noite para o dia — ao contrário, são consequência de anos de esforço e acúmulo, e não podemos alegar responsabilidade exclusiva por isso.

Próximos passos

Para nós, era importante garantir a continuidade desse novo movimento. Discutimos conceitos e mantivemos os grupos de comunicação e as páginas nas redes. Voltamos a nos reunir para planejar um segundo protesto que aconteceu no dia 2 de outubro, em solidariedade com as mulheres iranianas. E há muitos outros por vir.

Editado por Bianca Pessoa e Tica Moreno
Traduzido do inglês por Aline Scátola

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