Pra mudar a sociedade
Do jeito que a gente quer
Participando sem medo de ser mulher!
(Música do cancioneiro popular feminista)
No clima político de resistência e transformação social que perpassou pela América Latina nas décadas de 1970 e 1980, se formaram no Brasil diversos instrumentos políticos da classe trabalhadora, dentre eles o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). E, assim como é impossível olhar para essa resistência revolucionária sem olhar para a importante participação das mulheres nas diversas frentes da luta, também é impossível pensar os 40 anos do MST sem considerar essa participação como uma construção que se dá em diferentes espaços, desde às ocupações, na organização dos acampamentos e assentamentos, na formação, até as instâncias de direção.
Pensar o processo organizativo do MST é pensar o significativo protagonismo das mulheres e como estas conseguiram incidir a partir da materialidade da reprodução da vida. Como afirmou Djacira Araújo em seu artigo Mulheres Sem Terra rompendo cercas fazendo história: 40 anos de MST, “já nas primeiras ocupações de terra a presença das mulheres e das crianças impactou no sentido de sensibilizar a sociedade quanto ao problema da exclusão e desterritorialização das famílias sem terra e ao mesmo tempo tensionou o governo a agir por conta da dimensão da violência a que os ruralistas poderiam chegar”.
O cotidiano nos acampamentos, embora cheio de vida e esperança, mostra a sua precariedade e amplia a demanda do trabalho de cuidados, historicamente atribuído às mulheres. É preciso alimentar a todas as pessoas, é preciso cuidar e educar as crianças, cuidar das pessoas doentes, animar a resistência. Essas demandas cotidianas de cuidado com a vida vão conformando a organização dos setores e possibilitando a formação de grupos e coletivos, constituindo espaços de diálogo, de partilhar o cotidiano, a vida privada, a ausência e a presença das violências, a importância de estar juntas.
Essa luta é combinada a uma intensa jornada de trabalho doméstico e produtivo, com dor e esperança, além do amor e da tarefa de linha de frente, da qual as mulheres usam seus corpos como ferramenta na contenção dos conflitos. Ainda assim, as reuniões e demais espaços de tomadas de decisões ainda são lugares que poucas conseguem participar. Na participação política das mulheres ao longo da história, tomar a palavra pode ser um grande desafio. A calça e a blusa larga nem sempre eram de suas escolhas, mas uma espécie de senha necessária para serem ouvidas e respeitadas como militantes e não assediadas e desejadas como objeto sexual. Assim, as mulheres vão construindo sua inserção nos espaços formativos e decisórios do Movimento. Como explicamos no caderno de formação A conspiração do gênero, “o processo de inserção das mulheres nas tarefas dirigentes da organização, assim como o de se fazer reconhecer como sujeitos políticos da luta pela terra e pela reforma agrária, não foi nada fácil e exigiram das companheiras muita persistência e conspiração”.
Ao mesmo tempo que atuavam internamente, as mulheres construíram articulação com as mulheres de outras organizações da classe trabalhadora do campo e da cidade, como a Articulação Nacional de Mulheres Rurais, desenvolvendo diversas lutas pela ampliação dos direitos previdenciários, saúde pública, um novo projeto popular de agricultura, reforma agrária, campanha de documentação e outros. Construíram também uma formação política e ideológica feminista direcionada aos diferentes níveis da militância e da base.
Nos anos 2000, como resultado dessa construção, houve a constituição do Setor de Gênero, que trouxe a importância de envolver o conjunto do movimento no debate das relações humanas, pautando o papel da violência patriarcal na manutenção do latifúndio e o desafio da construção de novas relações de gênero, vinculadas às relações de poder. Essa construção colocou na pauta coletiva o debate da autonomia financeira das mulheres, o enfrentamento à violência doméstica, o cuidado com as crianças. Esse debate é muito importante, e possibilitou que, em 2006, fosse conquistada a paridade de gênero nas instâncias do MST. A efetiva participação nas instâncias nacionais e estaduais ampliou o horizonte político de participação das mulheres do movimento.
Os anos 2000 também marcaram a retomada do sentido de luta do 08 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, como construção de resistência das mulheres trabalhadoras, entendendo a relação entre a dominação de classe e patriarcal. Como explica Djacira, “a consciência adquirida nas experiências da organização leva as Sem Terra a se sentirem parte de um projeto mais amplo que envolve a classe trabalhadora e que ainda precisa ser concretizado; a perceberem que os acontecimentos considerados ‘coisas miúdas’ fazem parte da luta mais ampla contra o capital”.
A construção e a participação nas jornadas de luta, principalmente as de março, trouxeram a compreensão da importância da auto-organização feminina. Mais especialmente a jornada de 2006, quando mulheres se uniram na luta contra enfrentando o deserto verde do monocultivo de eucalipto da Aracruz Celulose, trouxe o feminismo como prática concreta de enfrentamento ao capital, e o feminismo camponês popular como estratégia de construção de novas subjetividades e sociabilidades em uma perspectiva internacional.
Como uma organização que é fruto das experiencias históricas dos povos em resistência, o MST muito cedo assumiu a construção da solidariedade internacional. Essa construção se deu tanto a partir dos instrumentos para a luta camponesa, com a formação da Coordenação Latino-Americana de Organizações Camponesas (CLOC) e da Via Campesina, como também na organização da formação, do intercâmbio de experiências e das brigadas de solidariedade. A vivência dos processos internacionalistas contribui para a apreensão da relação orgânica existente entre o capital, o patriarcado e o racismo, que é profunda e internacionalizada. A organização internacional é necessária para enfrentar e denunciar as mazelas desse sistema contra os povos do campo.
Com os acúmulos das mulheres camponesas, indígenas, das águas e das florestas no debate sobre o feminismo camponês popular, avançamos também na compreensão das especificidades desse impacto para as mulheres na interrelação entre corpo-território. O feminismo camponês popular amplia a nossa estratégia política, pois pautamos as relações igualitárias e os processos de emancipação humana. Além disso, apostamos na agroecologia como uma produção em equilíbrio com a natureza e uma reconstrução da nossa humanidade. Nessa aposta política, é central a retomada dos comuns e da defesa dos bens comuns, buscando a construção de territórios livres de violência em seus sentidos amplos.
A luta das mulheres pelo direito a participação política ajudou a moldar o MST, como afirmou Djacira ao explicar que “a organicidade do MST só é o que é devido o olhar feminino pautando temas profundos da existência humana, como educação, saúde, cuidado com a infância, combate às opressões de gênero, construindo a agroecologia, a soberania alimentar. Em grande medida estes temas trouxeram a necessidade de repensar a estrutura política da organização, ressaltando na criação de novos coletivos, setores, frentes, e novas práticas formativas”.
A participação das mulheres possibilitou compreender que faz parte da luta do MST e da classe trabalhadora combater o patriarcado, o racismo e o capitalismo em todas as suas expressões políticas e culturais. Por isso, se faz necessário ser vigilante e combatente aos desvios éticos e morais do sexismo, do racismo, do fascismo e da exploração de classe; ser vigilante no sentido de criar subjetividades reorientadas segundo os princípios humanistas, feministas, antirracistas e socialistas.
Lucineia Miranda de Freitas é dirigente do setor de gênero do MST.