Em 31 de julho, comemoramos o Dia da Mulher Africana, data criada na Conferência de Mulheres Africanas ocorrida na Tanzânia em 1962, como parte dos processos de luta por libertação anticolonial no continente. Hoje em dia, em todo o extenso território africano, as mulheres batalham por emancipação. Ao mesmo tempo em que se unem para sustentar a vida, constroem perspectivas feministas para lutar contra novas formas de colonialismo e contra o capitalismo, o racismo e o imperialismo.
Para rememorar e manter presentes os aprendizados e trajetórias de transformação de lutadoras africanas, publicamos hoje um perfil da militante feminista moçambicana Maria Adosinda de Almeida, falecida em 2017. Maria Adosinda foi militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) em Moçambique e fundadora da Associação das Mulheres Desfavorecidas da Indústria Açucareira (Amudeia), organização criada em 1996, a partir de uma greve de mulheres demitidas pela indústria açucareira Maragra.
Eu sou Maria Adosinda. Aqui na Amudeia eu acho que sou muito feliz. Desde quando eu sou trabalhadora lá na empresa de açúcar Maragra, sempre andei fazendo leis para melhorar para toda mulher trabalhadora. A Associação é assim mesmo: essas mulheres todas são deste núcleo todo, todas são o meu fruto e todas sabem falar e fazer. (…) Ali na nossa associação já não vou, apenas vou despedir agora, vou fazer minhas coisas porque essas mulheres todas já estão bem lá em Nampula, Beira, todas estão bem! Tenho muita experiência então levei para elas. Todas essas sabem, agora estou muito cansada. (Maria Adosinda, em entrevista à pesquisadora Vera Fátima Gasparetto, em 2017.)
Liderança feminista
Na luta pelos direitos das mulheres trabalhadoras de sua comunidade e contra a exploração da indústria açucareira na cidade de Manhiça, fundou a Amudeia. Construiu a Marcha Mundial das Mulheres em Moçambique desde o início da organização, nos anos 2000. Foi do Comitê de Coordenação da MMM em Moçambique. Segundo Graça Samo, ex-coordenadora internacional da MMM, Adosinda foi “a mulher que mais lutas liderou em todas as frentes, e foi a primeira a defender que Moçambique aceitasse o convite de receber o Secretariado Internacional da MMM”. Em 2016, a Amudeia foi uma das organizações que mobilizaram e acolheram o 10° Encontro Internacional da Marcha, que aconteceu em outubro daquele ano, em Maputo.
Adosinda era uma mulher batalhadora e mobilizadora. Todas as pessoas paravam para ouvir e ficavam atentas quando ela levantava a mão em algum encontro. “Quando eu cruzo com algumas mulheres que a conheciam, sempre dizem que perdemos uma mãe, uma líder. Ela lutava até o fim. Nenhum assunto ficava pendente. Ela desafiava os homens quando sentia que esses violavam o seu direito. As pessoas, aqui em Manhiça, a consideravam uma mulher de oposição, que vinha para abalar as políticas conservadoras”, nos contou Dulce Catarina, filha de Adosinda e diretora-executiva da Amudeia. Essa oposição significava, na prática, a luta revolucionária de Adosinda contra a cultura e o tradicionalismo conservador moçambicano. Dulce explica que “na mente dos homens, ela colocava minhocas nas cabeças das mulheres, incutia coisas erradas. Na verdade, o que ela fazia era ensinar mulheres a falarem por si”.
Maria Adosinda lutou para mostrar às pessoas que as opressões não eram algo natural, e que seu desejo era que as mulheres fossem livres, pudessem viver livres de violência, que conhecessem seus direitos e ocupassem espaços políticos nas comunidades. Queria que também os homens conhecessem os direitos das mulheres e os respeitassem. Sobre o tema do casamento, por exemplo, Dulce Catarina explicou que “em Moçambique os casamentos são monogâmicos, mas mesmo assim os homens querem ter várias mulheres. Com a educação e informação que Adosinda e a organização davam às mulheres, elas não aceitavam homens que queriam duas ou três esposas. Então eles diziam: ‘Adosinda está a trazer maus conceitos’”.
Histórias de luta
Dulce Catarina compartilhou uma memória de quando sua mãe lutava, junto com suas companheiras, por políticas de enfrentamento à violência doméstica. Apesar de perseguições e entraves, as feministas unidas e resistentes elaboram novas formas de organização para defender a vida das mulheres. “As estratégias que Adosinda usava eram muitas e de muita criatividade. Ela realmente fazia de tudo para que as mulheres conseguissem lutar e usufruir dos seus direitos”, diz Dulce.
“Quando abrimos o gabinete de atendimento às vítimas de violência doméstica, um grupo de mulheres começou a ser atendido. Na altura, o presidente do município queria construir um supermercado em um local onde estavam a habitar pessoas que fugiam da guerra. Inicialmente, ele não queria reassentar essa população, que em sua maioria era de mulheres que perderam seus maridos nos conflitos. As mulheres resistiram à saída e o governo fez uma proposta de levar as famílias para outro lugar. A zona para a qual essas pessoas seriam levadas não tinha energia ou água potável e era de difícil acesso. Um grupo de mulheres que parecia estar a marchar veio até a Amudeia para reivindicar que não as tirassem de suas terras e moradias. Enquanto marchavam, Adosinda recebeu ameaças caso acolhesse essas mulheres.
Nós reunimos as pessoas e encaminhamos todos os casos para uma outra organização. As mulheres não podiam ficar sem serem atendidas. Nossa estratégia era usar a cara dessa terceira organização que não podia ser ameaçada, pois era de outro lugar, enquanto nós mesmas realizamos o apoio que essas mulheres necessitavam. Todas as exigências foram feitas, como a construção de uma estrada que desse acesso ao novo lugar para onde as mulheres estavam sendo levadas, que houvesse energia elétrica, água e tratamento de esgoto, e que as casas construídas fossem de melhor qualidade. Conseguimos conquistar boa parte das reivindicações e além disso foi construída uma escola para que as crianças pudessem continuar as aulas.”
A Amudeia
A organização foi fundada para apoiar as mulheres que haviam sido demitidas de seus trabalhos na indústria açucareira em Moçambique. As mulheres trabalhadoras não tinham direito ao descanso. Precisavam levar suas crianças ao trabalho, mas não podiam cuidar delas e, quando não produziam o que a indústria considerasse necessário, eram demitidas sem indenização.
Além da organização de mobilizações e greves pela garantia de direitos trabalhistas, ao longo dos anos a associação foi criando e fortalecendo alianças, em uma rede de colaboração e cooperação com o movimento feminista e organizações de mulheres urbanas e rurais. Assim, tornou-se também um espaço de acolhimento e aprendizado para mulheres vítimas de violência e de luta antipatriarcal. Em aliança com o Fórum Mulher, organização moçambicana que também participa da Marcha Mundial das Mulheres, as mulheres se mobilizaram pela aprovação de uma lei contra a violência doméstica, que foi conquistada e está em vigor desde 2009.
A Amudeia também trabalha com educação de crianças e de mulheres jovens e adultas. Para a comunidade, a associação é uma rede de solidariedade e debate, com atenção especial aos temas do corpo, dos direitos sexuais e reprodutivos e da construção do feminismo. Na visão das militantes, a formação é um dos caminhos a serem trilhados pelas mulheres na busca pela autonomia e pela libertação da opressão patriarcal.
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Além das informações cedidas por Dulce Catarina em entrevista, utilizamos neste texto informações extraídas da tese de doutorado de Vera Fátima Gasparetto, “Corredor de saberes: vavasati vatinhenha (mulheres heroínas) e redes de mulheres e feministas em Moçambique”, da Universidade Federal de Santa Catarina, 2019.