#DiaDosLivrosVermelhos | Flora Tristán: escrever para emancipar as mulheres e os povos do mundo

21/02/2022 |

Por Capire

Leia um trecho do livro “A união operária”, publicado em 1843, quatro anos antes de Manifesto Comunista.

Neste 21 de fevereiro, editoras independentes e organizações de esquerda que fazem parte da Assembleia Internacional dos Povos (AIP) articulam o Dia dos Livros Vermelhos. A atividade internacional é uma forma de celebrar a data em que foi publicado o Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848. Em dezenas de países, as pessoas se reúnem para ler o Manifesto em suas várias traduções, além de realizar outras atividades de encontro, debate e cultura. Nas redes, as pessoas são convidadas a postar fotos de suas leituras vermelhas, com a hashtag #RedBooksDay2022.

Ao celebrar a atualidade e a força do Manifesto, o Dia dos Livros Vermelhos coloca também a reflexão sobre o papel transformador e coletivo dos livros. Um livro não se faz sozinho: além de ter sempre muitas mãos envolvidas em seu processo de produção, ele reúne os acúmulos e as apostas compartilhadas por inúmeras pessoas.

Os livros podem ser ferramentas para a transformação. Podem fortalecer nossas inquietações e desejos de ampliar horizontes, e também podem solidificar e aprofundar nossa visão crítica, necessária para olhar o mundo. Temos uma ideia de que o livro é um objeto para ser lido e entendido sozinho, em voz baixa. Mas o processo da leitura não precisa ser isolado. Quando lemos coletivamente, quando debatemos as ideias e propostas de um livro, criamos também novas formulações sobre o mundo em que vivemos e sobre como queremos viver.

O Dia dos Livros Vermelhos aconteceu pela primeira vez em 2020, por um chamado de militantes da Índia. O dia também homenageia o escritor e militante indiano Govind Pansare, assassinado em 20 de fevereiro de 2015. É uma homenagem, então, a todas e todos os ativistas que perderam suas vidas por se posicionarem politicamente. Para Celina della Croce, uma das organizadoras da atividade, “não temos a opção de ficarmos calados. Um ataque contra companheiros em qualquer lugar, é um ataque contra todos nós. O caráter internacionalista do Dia dos Livros Vermelhos é uma forma de dizermos que nossos companheiros não estão sozinhos”.

Amelia Kraigher, da União Internacional de Editoras de Esquerda [International Union of Left Publishers], defende que o evento parte de uma necessidade de “unir nossos esforços e construir um mundo melhor: conseguir fazer as publicações, conectarmos com as editoras que pensam da mesma maneira… Assim nós conseguimos traduzir livros que eram, até então, desconhecidos em algumas regiões”. Para ela, o Dia dos Livros Vermelhos é uma oportunidade de “compartilhar nossos esforços em uma escala global, ampliando a nossa visão de um mundo que pode ser melhor para todos e para os muitos trabalhadores precarizados”.

Red Books Day, 2020

Livros vermelhos, livros roxos

Os livros vermelhos, produzidos pela classe trabalhadora para a classe trabalhadora, são fundamentais para organizar a memória e os desejos de quem resiste ao redor do mundo. Também chamamos a atenção para a importância dos livros “roxos”, ou seja, os livros feministas, produzidos pelas mulheres para criticar o patriarcado e suas relações de opressão, exploração e controle.

Há séculos, as mulheres escrevem textos vermelhos-roxos que questionam as hierarquias e a opressão das mulheres. Esse é um esforço coletivo para integrar a emancipação das mulheres nos objetivos da luta socialista da classe trabalhadora.

Por isso, no marco do Dia dos Livros Vermelhos, compartilhamos abaixo uma tradução de um trecho do livro A união operária, de Flora Tristán. “Compreendi que, publicado meu livro, eu teria outra tarefa a cumprir, ir eu mesma, meu projeto de união em mãos, de cidade em cidade, de um lado a outro da França falar aos operários que não sabem ler e àqueles que não têm tempo de ler”, escreveu Tristán.

Publicado quatro anos antes do Manifesto Comunista, em 1843, A união operária já elabora sobre a necessidade de união internacional entre operários e operárias para sua auto-emancipação, e também sobre o papel das mulheres na revolta contra as hierarquias sociais. Na obra, Tristán denuncia que as mulheres são tratadas pela sociedade como párias, sofrendo por isso discriminações e exclusões políticas.

Leia o trecho abaixo, um excerto do capítulo “Porque eu menciono as mulheres”:

*

Até o momento a mulher não contou para nada nas sociedades humanas. – Do que isto resulta? Que o padre, o legislador, o filósofo a trataram como uma verdadeira pária. A mulher (é a metade da humanidade) foi colocada fora da Igreja, fora da lei, fora da sociedade. Para ela nada de representação frente à lei, nada de funções no Estado. (…)

Vejam, há seis mil anos desde que o mundo existe, como os sábios dos sábios julgaram a raça mulher. Tal terrível condenação, repetida por seis mil anos, naturalmente sensibiliza as massas, porque a sanção do tempo tem muita autoridade sobre as massas. – Entretanto, o que nos dá esperança para que possamos questionar este julgamento, é que também durante seis mil anos os sábios dos sábios emitiram um juízo não menos terrível sobre outra raça da humanidade: os PROLETÁRIOS. – Antes de 1789, o que era o proletário na sociedade francesa? Um vilão, um aldeão considerado uma besta de carga que podia ser controlado e posto a trabalhar. – Depois, vem a revolução de 1789 e de uma hora para outra os sábios dos sábios proclamam que a plebe agora se chama povo, que os vilões e aldeões se chamam cidadãos. – Por fim, proclamam em plena assembleia nacional os direitos do homem.

(…)

Reclamo direitos para a mulher porque estou convencida de que todas as desgraças do mundo são resultado deste esquecimento e desprezo que existe até agora dos direitos naturais e imprescritíveis do ser mulher. – Reclamo direitos para a mulher porque esta é a única forma de nos ocuparmos de sua educação e da educação da mulher depende a do homem em geral e particularmente a do homem do povo. – Reclamo direitos para a mulher porque este é o único meio de conseguir sua reabilitação frente à Igreja, à lei e à sociedade, e esta reabilitação prévia é necessária para que todos os operários sejam eles próprios reabilitados. – Todos os males da classe operária se resumem nestas duas palavras: miséria e ignorância, ignorância e miséria. Então, para sair deste labirinto só vejo uma maneira: começar por instruir as mulheres porque as mulheres são encarregadas de instruir meninos e meninas.

(…)

Olhemos rapidamente para o que se passa hoje em dia nos lares operários; examinemos agora o que se passaria nestes mesmos lares se a mulher fosse igual ao homem.

O marido, sabendo que sua mulher tem direitos iguais aos seus não a trataria mais com desdém, com o desprezo com que se dirige aos inferiores; ao contrário, ele iria tratá-la com o respeito e a deferência que dirigimos aos iguais. Então não haveria mais motivo de irritação para a mulher, e uma vez destruída a causa de sua irritação, ela não se mostraria mais rude, nem ardilosa, nem briguenta, nem colérica, nem exasperada, nem maldosa. – Não sendo mais vista em casa como serva do marido, mas sim como associada, amiga, companheira do homem, naturalmente ela se interessará pela associação e fará tudo o que puder para frutificar o pequeno lar. – Tendo conhecimentos teóricos e práticos, a mulher utilizará toda sua inteligência para conduzir sua casa com ordem, economia e entendimento. – Instruída e conhecendo a utilidade da instrução, ela colocará toda sua ambição em educar bem seus filhos, e em instruí-los com amor, e supervisionar seus trabalhos de escola, ela os colocará para o trabalho de aprendiz em bons patrões; enfim ela o dirigirá em todas as coisas com solicitude, ternura e discernimento. – Qual seria então o contentamento no coração, a segurança de espírito, a felicidade de alma do homem, do marido, do operário que possuirá tal mulher! – Encontrando em sua mulher inteligência, bom senso, visões elevadas, o homem poderá conversar com ela assuntos sérios, comunicar-lhe seus projetos e trabalhar em formas para melhorar ainda mais sua posição. – Lisonjeada pela confiança, a mulher ajudará em seus empreendimentos e negócios, seja por seus bons conselhos, seja por sua atividade. – O operário, sendo ele próprio instruído e bem-educado, vai adorar instruir e desenvolver seus jovens filhos. (…)

Nas condições que acabo de traçar, um lar, em vez de ser motivo de ruína para o operário, seria motivo de bem-estar. Quem não sabe o quanto o amor e o contentamento do coração triplica, quadruplica as forças do homem? Já vimos isso em alguns raros exemplos. Aconteceu de um operário, adorando sua família e buscando de todos os modos assegurar a educação de seus filhos, fez o trabalho que três homens solteiros não podiam fazer, para conseguir este nobre objetivo. Depois, o capítulo das privações. Os solteiros gastam muito; eles não recusam nada. – O que nos importa, dizem, afinal podemos beber e viver despreocupadamente, porque não temos ninguém para sustentar. Enquanto que o homem casado que ama sua família fica feliz de se privar por ela e vive com uma frugalidade exemplar.

Operários, este quadro aqui esboçado sobre a situação que gozaria a classe operária se a mulher fosse reconhecida igual ao homem lhes permite refletir sobre o mal que existe e sobre o bem que poderia ser. Isto poderia lhes dar uma grande determinação.

Operários, vocês não têm o poder de revogar antigas leis e fazer novas – não, sem dúvida – mas vocês têm o poder de protestar contra a iniquidade e o absurdo das leis que entravam o progresso da humanidade e fazem vocês sofrerem, particularmente vocês. Vocês podem, é até mesmo um dever sagrado, protestar energicamente em pensamentos, palavras, escritos contra todas as leis que oprimem a vocês. – Então, compreendam bem que: a lei que submete a mulher e a priva de instrução oprime a vocês, homens proletários.

Para educar, instruir e lhe ensinar a ciência do mundo, o filho do rico tem governantas e professoras sábias, preceptoras hábeis e por fim belas marquesas, mulheres elegantes, espirituosas, cujas funções na alta sociedade consistem em se encarregar de educar os filhos de família que saem do colégio. (…) – Por menos que um jovem tenha capacidade, se tiver a felicidade de estar sob a proteção de uma destas mulheres amáveis, sua sorte está ganha. Aos 35 anos seguramente será embaixador ou ministro. – Enquanto que vocês, pobres operários, para educá-los, instruí-los, só têm sua mãe; para fazer de vocês homens que sabem viver, só tem mulheres de sua classe, suas companheiras de ignorância e de miséria.

Não é, portanto, em nome da superioridade da mulher (como não faltará quem me acuse) que reclamo direitos para a mulher; com certeza não. Logo, antes de discutir sobre sua superioridade, é preciso que sua individualidade social seja reconhecida. Eu me apoio sobre uma base mais sólida. Homens, é em nome de seu próprio interesse, de seu aprimoramento, por fim é em nome do bem-estar universal de todos e todas que vos convido a reclamar direitos para a mulher e, espero, que os reconheçam ao menos em princípio.

(…)

Cabe a vocês dar um grande exemplo ao mundo, exemplo que provará a seus opressores que é pelo direito que vocês triunfarão e não pela força brutal, vocês são sete, dez, quinze milhões de proletários e poderiam, portanto, dispor desta força brutal!

Provem que são justos e igualitários reivindicando justiça; homens fortes, homens com os braços nus, proclamem que vocês reconhecem a mulher como seu igual e que por esta razão vocês reconhecem que ela tem igual direito aos benefícios da UNIÃO UNIVERSAL DOS OPERÁRIOS E DAS OPERÁRIAS.

Redação por Helena Zelic
Tradução de “A união operária” por Miriam Nobre (Fundação Perseu Abramo, 2015)

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