Em 17 de dezembro de 2018, a Declaração dos Direitos dos Camponeses foi aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa conquista foi uma grande vitória para os movimentos do campo, que realizaram um longo processo para construir as bases políticas fundamentais da Declaração, redigi-la e propô-la como instrumento jurídico internacional. Agora, exatamente quatro anos depois, já começam a ser testadas algumas experiências de uso da Declaração para reivindicar direitos e propor políticas públicas.
“Quatro anos depois da Declaração, é hora de olhar um pouco para trás e dizer que avançamos no reconhecimento de nossa identidade cultural, territorial e profissional como camponeses e camponesas no mundo”, sugere a militante camponesa Perla Álvarez, e continua: “nessa diversidade, formamos o campesinato. Que eles nos tenham reconhecido através desta Declaração é um passo muito importante.” Perla Álvarez integra a Coordenação Nacional de Organizações de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Indígenas (Conamuri) e o Coletivo de Direitos das e dos Camponeses da Via Campesina.
“Somos muito gratas por toda a luta desses quatro anos”, diz Martha Elena Huertas Moya, que faz parte do Coletivo de Direitos Humanos da Coordenação Latino-americana de Organizações Rurais (CLOC-Via Campesina) e também integra a Federação Nacional de Cooperativas Agrícolas (Fenacoa). “A Via Campesina tem realizado um plano muito importante de incidência, pressão e diplomacia diante das Nações Unidas, dos diferentes governos e dos espaços institucionais pelo reconhecimento dos direitos das e dos camponeses”.
Isso só foi possível, segundo Perla, devido a uma estratégia de formação de alianças políticas, que deve continuar sendo articulada e fortalecida. Garantir que a Declaração seja amplamente considerada e utilizada depende também, segundo ela, “que nós, como organizações, tenhamos uma compreensão profunda da Declaração, que a tomemos como nosso instrumento de luta e difundamos nossos desafios”.
Martha explica que o processo de instalar a Declaração dos Direitos dos Camponeses na região da América Latina e Caribe teve várias etapas, e a primeira foi justamente divulgá-la internamente nas organizações membros da CLOC, com encontros, seminários, entre outras atividades de formação e debate que têm sido de grande importância para o fortalecimento da própria organização e suas propostas. “O reconhecimento da Declaração sempre fez parte da linha política que tínhamos nas organizações da CLOC na Colômbia, posicionando o discurso nos direitos que reconheceria, como faria e qual era o caminho que deveria ser percorrido para para que pudéssemos concretizá-la”, explica Martha.
“Um de nossos desafios é a implementação da Declaração em políticas públicas”, resume Perla. “Queremos que as políticas relacionadas com a terra e o território partam dos conceitos aplicados na Declaração: partam do sujeito camponês, do direito à terra, ao território, aos bens naturais para a produção, ao direito à organização e ao respeito pelas liberdades fundamentais”. Há também o desafio de avançar na criação de um mecanismo institucional que garanta, no âmbito dos organismos internacionais, o acompanhamento da Declaração, “para que ela possa ser utilizada para falar de juventude do campo, de mulheres, de desenvolvimento, de produção de sementes”, defende ela.
Em cada lugar, a forma como os usos da Declaração são propostos é diferente de acordo com o nível de disputas políticas em jogo. “Na Colômbia, sabíamos que tínhamos que começar divulgando a Declaração no Legislativo, além de pedir ao Ministério de Relações Internacionais e ao Ministério da Agricultura que a incorporassem em sua pasta.” As organizações camponesas puderam ter mais espaço de proposição política com a recente vitória dos governos de Gustavo Petro e Francia Márquez, sob o projeto “Colômbia Potência Mundial da Vida”.
A partir desse novo momento político, foi realizada a primeira Convenção Nacional Camponesa, com a presença de 2.500 camponeses e camponesas. Segundo Martha, “o governo conversou com o campesinato sobre como fazer política pública agrária e rural, e a base de tudo isso é a Declaração”. As negociações estão lançando as bases de três elementos importantes: reforma rural integral, restituição de terras e a criação de uma jurisdição especial agrária e rural. “Falar em restituição é importante porque a desapropriação foi uma das denúncias fundamentais dos atos vitimizadores neste país”, lamenta a militante.
Na Convenção Nacional Camponesa, colocou-se como elemento chave a criação da Assembleia do Campesinato, no qual serão definidas as políticas públicas para a estrutura administrativa da Colômbia, em nível de departamentos, municípios e localidades. “Em suma, a Declaração que a Via Campesina criou, concebeu, lutou e posicionou na Colômbia, hoje é uma realidade que dá esperança de uma nova condição do campesinato colombiano”, diz Martha.
Já são várias as experiências de uso concreto da Declaração ao redor do mundo. Na América Latina, há também o caso do Paraguai: a Declaração tem sido usada como argumento válido para sancionar o país como violador dos direitos dos camponeses no caso de morte por envenenamento de agrotóxicos. Na Argentina, também serviu de argumento para devolver territórios a comunidades camponesas e indígenas. Enquanto isso, em Cuba, foi aprovada a Lei de Soberania Alimentar e Segurança Alimentar e Nutricional, que entrou em vigor em 28 de outubro de 2022 e foi inspirada na Declaração dos Direitos dos Camponeses, segundo afirmou Adilen Roque, porta-voz da Associação Nacional de Pequenos Agricultores (ANAP), membro da Via Campesina.
Outros países estão utilizando a Declaração para o reconhecimento do sujeito camponês, historicamente bastante esquecido na legislação. Também em países asiáticos, como a Indonésia e a Índia, a Declaração começa a ser utilizada para garantir os direitos do campesinato em termos de produção, de garantia de mercado e de reconhecimento como sujeitos de direitos. Para Perla, essas experiências tão concretas “demonstram a validade de um instrumento de direitos humanos em nível internacional tal como é a Declaração”.
Viver essas mudanças aprofunda a luta e aumenta a vontade de se organizar. Para as mulheres, a esperança também as move na construção do feminismo camponês e popular e no seu fortalecimento em espaços de liderança, enfrentando o machismo e a sobrecarga de trabalho. Martha explica isso muito bem: “a experiência de estar em organizações camponesas lideradas por mulheres abriu lindas possibilidades para nós de sermos ouvidas, sermos atendidas, reconhecidas, admiradas, apoiadas, sermos verdadeiramente valorizadas. São outras linguagens, outros valores, outros princípios, onde não queremos brilhar individualmente, pois somos um coletivo de mulheres que fazem a liderança acontecer. O reconhecimento dos direitos camponeses nos dá a possibilidade de reivindicar, a partir de um novo lugar, o fim do feminicídio, da violência, da hierarquia patriarcal”.
A Via Campesina está comemorando 30 anos de lutas, esperanças e organização com a tag #LVC30Anos. Em novembro de 2023, celebrará sua VIII Conferência Internacional e sua VI Assembleia de Mulheres do Campo. Serão espaços de debate, avaliação e construção coletiva do movimento camponês na Nicarágua, sobre os quais haverá um amplo processo de cobertura de comunicação colaborativa e militante.