Ana Betancourt: a história de uma cubana irreverente

24/02/2022 |

Por Laritza Perez Rodriguez

Leia a história de Ana Betancourt nas lutas pela independência de Cuba

Ana Betancourt

Para contar a história de nossa nação, é preciso citar os nomes de muitas mulheres. Mas, para falar de emancipação feminina, tanto em Cuba como em toda a América Latina, é preciso evocar Ana Betancourt.

Ana María de la Soledad Betancourt nasceu em 14 de fevereiro de 1832 em Porto Príncipe, Camagüey. Sua família pertencia a uma rica classe crioula[1], o que lhe permitiu estudar disciplinas como música, religião, bordado, costura e economia doméstica. A dominação de uma metrópole como a Espanha, considerada uma das mais severas da época em termos de aplicação de códigos de conduta, acentuou a cultura patriarcal.

Mulheres como Ana foram preparadas, desde a mais tenra infância, para serem boas esposas. Elas estavam proibidas de andar na rua, pois era considerado um indicador de sua situação moral e sexual, assim como dançar ou fumar. No imaginário normativo burguês, essas atividades eram reservadas aos homens.

Por outro lado, as mulheres afro-cubanas obtiveram maior liberdade no espaço urbano devido ao seu papel ativo na esfera econômica. Escravas e mulheres livres participavam do mercado, realizando vários ofícios, como vendedoras, artesãs e empresárias. Elas também podiam ser parteiras ou professoras da educação primária.

Embora as restrições a que foram submetidas fossem diferentes, a verdade é que todas as mulheres estavam em posição de inferioridade em relação aos homens. Enquanto a honra deles era negociada na esfera pública (no campo de batalha ou no trabalho), a das mulheres era depositada inteiramente em seus corpos. A mulher branca de classe média ou alta tinha que casar “virgem” para, assim, assumir seu papel de esposa “decente”. No caso das mulheres negras, das prostitutas e das pobres, pensava-se que, dada a sua condição, tinham nascido sem honra.

Mesmo com as amarras sociais – ou talvez pela existência deles –, um grande número delas se recusou a ficar à margem e aderiu à luta pela independência, que começou em 10 de outubro de 1868.

“Damas, esfinges y mambisas. Mujeres en la fotografía cubana 1840-1902”. Colección Biblioteca Nacional de Cuba José Martí

A Guerra dos Dez Anos foi a primeira de três que aconteceram na ilha contra as forças coloniais espanholas, e teve um carácter antiescravagista, anticolonial e de libertação nacional. Embora algumas mulheres tenham se envolvido por causa de seus ideais políticos e sociais, outras o fizeram seguindo os homens de sua família, pois quando eles iam para o campo de batalha, elas ficavam desprotegidas perante os maus tratos do exército espanhol.

Quaisquer que fossem suas motivações, todas deram mostras inquestionáveis de comprometimento e coragem. Por essa razão, várias obtiveram patentes militares. Cerca de uma dúzia de mulheres foram nomeadas capitãs: Luz Palomares García, Ana Cruz Agüero, Adela Azcuy, Rosa María Castellanos Castellanos, María Hidalgo Santana, Trinidad Lagomasino Álvarez, Catalina Valdés, Isabel Rubio Díaz y María de la Luz Noriega Hernández. Da mesma forma, Mercedes Sirvén Pérez-Puelles, graduada em Farmácia, alcançou o posto mais alto entre as e os mambises [guerrilheiros que lutaram pela independência cubana], sendo promovida a comandante em 1897.

“Damas, esfinges y mambisas. Mujeres en la fotografía cubana 1840-1902”. Colección Biblioteca Nacional de Cuba José Martí

A participação de Ana Betancourt nas batalhas

Quando a guerra estourou, Ana Betancourt estava casada há 14 anos com Ignacio Mora de la Pera. Indo no sentido oposto às formalidades de seu tempo, o marido a incentivou a ampliar seus conhecimentos e a participar ativamente dos encontros organizados em sua casa. Assim, ela aprendeu, de forma autodidata, inglês e francês, bem como gramática e história. Nessas reuniões, os participantes davam forma à ideia de uma independência cubana.

Ignacio marchou para o campo de batalha alguns dias após o início da insurreição libertadora. Por sua vez, o compromisso de Ana com a causa revolucionária se materializou em múltiplas ações. Ela ofereceu sua casa como refúgio para os perseguidos, onde também armazenou alimentos, armas e suprimentos de guerra. Além disso, valendo-se do conhecimento adquirido nos últimos anos, Ana criou palavras de ordem que circularam tanto na cidade quanto entre os mambises.

Tal foi sua dedicação que ela foi nomeada agente do Comitê Revolucionário de Camagüey. Em menos de dois meses, Ana Betancourt começou a ser considerada um perigo para a Espanha. O mandado de prisão expedido pelo governo não demorou a chegar. Felizmente, ela foi alertada e, em 4 de dezembro de 1868, fugiu para as montanhas, onde acabaria se encontrando com Ignacio e o restante das tropas.

De 10 a 12 de abril de 1869, foi realizada a Assembleia Constituinte de Guáimaro, um evento sem precedentes no nosso país, cujo principal resultado seria a redação da primeira Constituição cubana. Esse encontro também possibilitou a criação da Câmara dos Deputados.

Compreendendo a importância do momento, e sem saber que com isso ganhava um lugar na história, Ana apresentou uma petição à Câmara no dia 14 de abril. Nela, solicitava aos legisladores cubanos que, logo que a República fosse estabelecida, concedessem a nós, mulheres, os direitos que, por justiça, deveríamos ter. Infelizmente, essa demanda teve que ser lida por seu amigo Ignacio Agramonte – que mais tarde seria nomeado major-general do Exército de Libertação e chefe da divisão de Camagüey –, já que ela, por ser mulher, não era considerada cidadã.

Se essa ação pode parecer ousada, mais fascinante seria aquela noite, em que Ana, energicamente, se pronunciou em um comício que a consagrou como precursora da defesa dos direitos das mulheres:

Cidadãos, a mulher no canto escuro e sossegado do lar esperou paciente e resignadamente por esta bela hora em que uma nova revolução quebra o seu jugo e desamarra as suas asas. Aqui tudo era escravo; o berço, a cor e o sexo. Vocês querem destruir a escravidão do berço lutando até a morte. Vocês destruíram a escravidão da cor ao emancipar o servo. Chegou a hora de libertar a mulher.

Enfrentar a perseguição

Menos de um mês depois, Ignacio Mora criou o jornal El Mambí, uma ferramentapara que os insurgentes expusessem os motivos da luta. Ao lado de Ignacio estava Ana, corrigindo textos e redigindo manifestos. Mas, apenas três dias depois, eles tiveram que incendiar a cidade que habitavam diante do avanço das tropas espanholas e voltar a morar nos campos.

Em 9 de julho de 1871, Ana Betancourt foi capturada e feita prisioneira. Ela passou noventa dias amarrada sob uma paineira sendo assediada pelo chefe inimigo. Mesmo ameaçada de morte, ela se recusou a convencer o marido a se render. Finalmente, uma noite, ela conseguiu escapar.

Sendo uma perseguida política, sua única opção foi abandonar o país. Como muitos cubanos na emigração, Ana Betancourt tentou sobreviver em vários países, como Estados Unidos, México, El Salvador e Espanha. Ela estava na Jamaica quando foi informada da morte de seu marido, assassinado a golpes de facão. A notícia a deixou arrasada.

Os anos de luta, o exílio e a dor pela morte de Ignacio acabaram prejudicando sua saúde. Ela usou suas poucas energias para organizar e encorajar a Revolução, chegando até a entregar suas parcas economias que tinha disponível para a nova insurreição.

Em 1898, os Estados Unidos venceram os cubanos e um ano depois começou a ocupação militar. Essa reviravolta ofereceu-lhe a oportunidade de retornar, mas em 7 de fevereiro de 1901, justamente quando se preparava para isso, Ana morreu de uma broncopneumonia fulminante. Atualmente, seus restos mortais repousam em Guáimaro, onde um dia erguera sua voz apregoando os direitos de todas as mulheres cubanas.

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[1] Segundo o portal EcuRed, “o conceito de criollo foi aplicado aos nativos da ilha a partir do século XVI”. Portanto, eles foram identificados, definidos e reunidos para além dos fatores étnicos, raciais, religiosos ou de origem de seus pais”. [link em EcuRed ]


Laritza Perez Rodriguez é psicóloga, feminista e ativista pelos direitos das mulheres lésbicas e bissexuais. É integrante e facilitadora do grupo Labrys. Este texto é uma adaptação de “Ana Betancourt, la historia de una mujer irreverente”, texto original publicado na revista Muchacha em 7 de fevereiro de 2022.

Edição e revisão da tradução por Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Aline Lopes Murillo

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