Amel Zanoune Zouani vive: carta denuncia a violência fundamentalista na Argélia

22/03/2022 |

Por Capire

Em carta emocionante, mãe de Amel, jovem assassinada por resistir aos ditames de setores islâmicos, denuncia o terrorismo vivido pelas mulheres argelinas

Argélia 360

Por mais de 10 anos, o islamismo político e a ideologia da morte inflamaram e fizeram sangrar a Argélia. O sangue dos argelinos escorreu em abundância. As mulheres pagaram um preço alto. Consideradas despojos de guerra, os terroristas islâmicos as sequestraram, estupraram e assassinaram, usando métodos indescritíveis em termos de selvageria. Eles as decapitaram, estriparam as mulheres grávidas, e as queimaram vivas.

Amel é um exemplo. Ela foi assassinada 25 anos atrás por resistir ao decreto que determinava que as meninas deviam se cobrir com o véu e parar de trabalhar e de estudar. Amel resistiu e pagou com a própria vida. Assim como seu próprio nome, ela também carregava esperança, e eles decidiram acabar com essa esperança. Antes de Amel, Katia Bengana, estudante do ensino médio, foi assassinada por se recusar a usar o hijab. Karima Belhadj foi assassinada com um tiro porque era secretária da Polícia Nacional. Ela foi a primeira mulher assassinada, quando tinha 19 anos. Aicha Djelid foi decapitada na presença de suas três filhas em condições atrozes. Os assassinos ordenaram que as filhas recolhessem a cabeça de sua mãe…

Quantas elas eram, anônimas, a terem sido sequestradas, terem sofrido estupros coletivos, terem sido decapitadas e jogadas em poços, entre outras coisas. O islamismo político é o inimigo da vida. Não esqueceremos, falaremos sobre isso enquanto vivermos, para que isso nunca mais aconteça aqui, nem em nenhum outro lugar.

*

Amel, asirem[1], esperança… Minha filha, minha ferida.

Minha filha, minha querida, minha pequena, meu amor… você era minha luz, minha saúde, minha felicidade, minha alegria de viver, você era minha vida. Eu vou te amar até o final dos meus dias, não posso esquecer da noite fatídica em que ouvi a má notícia trazida por uns quinze policiais, me dizendo que Amel tinha acabado de ser assassinada por terroristas… esses terroristas que eu, pessoalmente, classifico como criminosos covardes, assassinos, monstros… Eles tiraram sua vida quando você estava a caminho da educação e do conhecimento.

Oh, Amel, ainda hoje, mais de uma década depois, é difícil aceitar sua ausência, seu assassinato. Eles te decapitaram com uma faca, sua doçura, inocência. Você amava a vida, nunca pensou que iria morrer assim, em seu país, aos 22 anos e alguns dias.

Sempre me lembro das frases tranquilizadoras que você costumava me dizer sorrindo: “Eu te amo, mãe. Em alguns meses vou terminar meus estudos, conseguir um emprego, comprar um carro e levar você para passear onde quiser!”. Pensativa antes de voltar a falar: “Mãe, você sofreu muito na vida, mas eu vou te fazer feliz…”. Infelizmente, o destino decidiu de outra forma. Você morreu como uma heroína, e os heróis nunca morrem.

Amel, minha querida, nunca perdoei nem esqueci. Era você quem me dizia também: “Mãe, os terroristas não me assustam. Eles proíbem as meninas de irem para a escola, mas vou continuar meus estudos até o fim”. Lembro-me que quando você era pequena, eu costumava te bater por qualquer besteira, mas você nunca chorava. Além disso, desde aquele dia de inverno do macabro ano de 1997, você dorme com seu pai Mokrane, que também te amava muito. Sem dúvida, você herdou a coragem dele. Você era realmente corajosa.

Não pegamos em armas para te vingar, mas os nossos testemunhos, as nossas marchas, a nossa dignidade e, acima de tudo, os nossos escritos, são mais fortes do que os seus algozes que tremem e sofrem. Nossa dor e nossa causa são apenas Verdade, e esse regime que nos impõe a amnésia, e também seus lacaios, sua pseudo-oposição e os terroristas islâmicos, todos têm medo da verdade. A verdade sobreviverá a eles porque nos recusamos a esquecer, nos recusamos a perdoar, me recuso a esquecer minha filha Amel.

Vocês que levantam suas vozes para virar a página sobre a história da Argélia ensanguentada pelo terrorismo islâmico, vocês que protegiam seus filhos quando o nossos caíam sob as balas dos assassinos, eu lhes digo: parem de estender suas mãos para os assassinos da minha querida filha Amel, parem de suplicar por aqueles que fizeram de mim uma vítima do terrorismo e uma doente crônica, parem de mentir para as gerações futuras, parem de falsificar a história. Que vergonhoso é ouvir sobre essa “reconciliação” decretada. Não, recuso-me a colocar terroristas, seus pais, seus filhos no mesmo nível que eu e meus filhos. Nunca aceitarei que o estado justifique e inocente os assassinos, esses fundamentalistas islâmicos que têm as mãos manchadas com o sangue de Amel e de 200.000 vítimas inocentes. Eles nunca conseguirão impor a mim a palavra “perdão”, nunca esquecerei ou ficarei em silêncio até que me enterrem ao lado da minha filha Amel. Os terroristas nos enlutaram quando queríamos viver. Não escolhemos ser vítimas do terrorismo, mas o terrorista escolheu matar.

Que reconciliação? Recuso-me a deixá-los libertar os assassinos islâmicos sem que as leis sejam aplicadas. Como é difícil para mim ver os pais dos assassinos de minha filha Amel esperando o retorno de seus filhos “terroristas” vivos, “vitoriosos”, indultados, anistiados, perdoados e absolvidos de seus crimes individuais e coletivos. Essa carta é vergonhosa. Quanto minha ferida ainda está viva sob o olhar das pessoas que acreditam nessa “paz”. Que paz? A paz dos cemitérios.

Amel não morreu por nada. Ela morreu por um Estado de justiça e de direito que ela esperava um dia conhecer. Ela morreu como os heróis de causas justas, como aqueles da grande revolução, como Abane, Si El Houas, Amirouche, Ben Mhidi… para que a Argélia democrática viva. Amel morreu como também morreram Katia Bengana e Nabila Jahnine, Matoub e Kamel Amzal, Yefsah, Tahar Djaout, Mekbel, Zinou e Saïd Tazrout… Que todos descansem em paz. Todos e todas vocês pagaram o preço da liberdade e da democracia com suas vidas. Graças a vocês, sempre manteremos a cabeça erguida. Por vocês, continuaremos a luta para que ninguém se esqueça, para que as vítimas do fundamentalismo islâmico nunca sejam esquecidas, para que a liberdade e a democracia triunfem. Continuaremos a dizer não ao esquecimento e à anistia, que são aflições que destroem nossas almas.

Estou orgulhosa de você, Amel. Você é um mártir. Sabe, eu plantei uma árvore frutífera e esperei que ela florescesse e me desse seus frutos. No dia em que os frutos amadureceram, os assassinos apareceram e destruíram tudo; meu sonho, minhas expectativas, meu futuro… Por sua memória, estou lutando uma luta diária. Esse Poder – assim como os outros traidores – não pode me olhar nos olhos porque ele cerrou as mãos sangrentas dos monstros que me fizeram cruelmente mal. Mas ainda estou aqui. Eu sou Houria; el houria, tilelli, “a liberdade” que nunca conhecemos.

Os anos passam rápido, tão rápido… Nawel, Anissa, Lamia e Amina ainda estão de luto por você, Amel. Você morreu por uma causa nobre, a liberdade, a democracia, a república, porque, querendo se educar, você reivindicava todos esses nobres ideais. Você morreu, mas não foi a única. Há milhares de mártires nesta Argélia que só conhece regressão, negação, arbitrariedade, massacres e ignorância. Lamento que a força seja mais poderosa do que a lei para permitir que os assassinos estejam livres, valorizados, consultados por altas autoridades e cortejados por pseudo-oponentes. Não importa. Chegará o dia em que essa “respeitabilidade” devida ao dinheiro acabará fedendo. Para você, Amel, e para todos que pagaram o alto preço que todos conhecem, nunca haverá um Estado Islâmico.

Amel ya lebniya, ya ayniya, ya el kabda taâi, minha vida se tornou inabitável. Já não sou a mesma mãe de antes. Não faço mais o trabalho doméstico. Não cozinho mais os pratos saborosos que você tanto amava. Não vou mais usar hena. Não vou mais comer tbikha, prato que você queria experimentar uma semana antes de ser assassinada. Eu não tenho mais vontade de viver, mas não tenho escolha. Resisto, apesar da minha doença, por você, pela sua memória, para que sua morte não seja em vão. Eu dei a você e suas irmãs uma boa educação e é disso que me orgulho.

Durma em paz, querida Amel “esperança”. Ninguém tem o direito de perdoar em meu lugar. Eu exijo a verdade e que a justiça seja feita, que seus assassinos e os responsáveis pelo “crime contra a humanidade” sejam levados à justiça e punidos.

Eu te amo, Amel, e também amo suas irmãs, que estão ao meu lado. Elas me mimam, mas meu coração ainda sangra, minha dor está viva e assim permanecerá. Eu chorei por você, eu choro por você e vou chorar por você toda a minha vida.

Glória aos nossos mártires, glória a todas as vítimas do terrorismo.

Houria Zouani Zanoune

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A introdução deste artigo foi escrita por Aouicha Bekhti, militante da Marcha Mundial das Mulheres na Argélia. A carta de Houria Zouani Zanoune está no livro Katia Bengana : la lycéenne qui a nargué l’islamisme [Katia Bengana: a estudante que desafiou o islamismo], escrito por Allas Di Tlelli e publicado em 2018.


[1] Asirem” é a palavra berbere para esperança. Optamos por manter o termo da carta original em francês.

Introdução por Aouicha Bekhti
Traduzido do francês por Andréia Manfrin Alves

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