Estelí Capote: “nem o Estado nem a Igreja podem se sobrepor aos direitos das mulheres em Porto Rico”

17/08/2022 |

Por Capire

A ativista porto-riquenha fala sobre a relação entre o feminismo e as lutas pela independência em seu país

Aborto Libre Puerto Rico

Estelí Capote Maldonado participa do Movimento 29 e da Frente Socialista, organizações dedicadas a promover a independência de Porto Rico. Para ela, a luta feminista é fundamental porque, “apesar de todo o progresso que se fez em Porto Rico nas últimas décadas, ainda vivenciamos formas de desigualdades muito tácitas e, ao mesmo tempo, muito fortes e enraizadas na cultura, por exemplo, a desigualdade na remuneração do trabalho e a violência de gênero, que também está bastante presente em outras partes da América Latina e do Caribe”.

Junto com uma articulação entre organizações feministas, Estelí participou este ano da convocação da “Maré Verde”, protesto contra um projeto de lei que estabelece limitações adicionais às mulheres na hora de abortar. O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados e, neste momento, ainda está tramitando até que seja assinado ou vetado pelo governador Pedro Pierluisi. Em Porto Rico, o direito ao aborto existe desde 1973, permitindo abortar até o segundo trimestre. Mas, explica ela, “esse projeto, quase religioso, estabelece definições mais ambíguas do que é a vida e do que é um feto, e viola a lei do direito, que era radical e de vanguarda em sua época”.

Temos a necessidade de proteger esses direitos alcançados. Aqui nada foi dado, tudo foi conquistado pela luta.

Estelí Capote

*

Desde 1973, o aborto é legal apenas com a condição do tempo ou há permissões legais específicas?

A lei não impõe limites. O que define o limite sobre o aborto é a regulamentação. Tem a ver principalmente com questões de saúde. No terceiro trimestre, as mulheres têm a alternativa do programa de adoção ao invés de fazer um aborto que, naquele trimestre em particular, pode ser desastroso para a saúde da mulher. É importante dizer que em Porto Rico 97% dos abortos ocorrem no primeiro trimestre. Apenas 3% dos abortos ocorrem fora do primeiro trimestre e geralmente acontecem devido a uma condição médica que pode colocar em risco a vida da mãe ou do feto.

O que levou à legalização do aborto em 1973? Você sabe como foi o processo?

Bem, eu ainda não tinha nascido, mas pelo que soube, durante as décadas de 1960 e 1970, o Partido Socialista de Porto Rico era muito forte e abrangente. Havia movimentos amplamente organizados que, entre seus setores, contavam com grupos feministas. Uma das mulheres representativas desse movimento é Yosi Pantoja, entre outras. Inclusive a minha mãe era da Organização Porto-riquenha de Mulheres Trabalhadoras. Elas perceberam que os principais problemas enfrentados pelas mulheres estavam relacionados ao acesso à saúde, sendo um deles a morte por causa do aborto ilegal. Como parte dos direitos das mulheres, elas lutaram muito, não apenas pelo direito de decidir sobre seus corpos, mas também pelo direito à maternidade. Naquela época, no curto prazo, o desafio era buscar a equidade de gênero por meio de medidas que não apenas proporcionassem equidade salarial através dos sindicatos, mas também por meio de seus direitos como mulheres, o direito sobre as decisões que tomamos sobre nossos corpos.

Voltando agora aos dias de hoje, como as mulheres porto-riquenhas estão se organizando e lutando? Quais são as suas agendas?

Em Porto Rico existem várias organizações. Temos um guarda-chuva chamado Coalizão 8 de Março, um grupo em que nos organizamos ao longo do ano para participar das comemorações mundiais do 8 de março. Dentro da Coalizão, há setores que estão fazendo trabalho de serviço público, substituindo o Estado. Posso citar a Oficina de Saúde [Taller Salud] e o Centro Mulheres Ajudando Mães (Centro MAM).

Também está sendo feito um trabalho muito forte na questão da violência de gênero, que aumentou exponencialmente desde a pandemia, não apenas contra mulheres, mas também homossexuais e principalmente comunidades trans. Em Porto Rico, durante a pandemia, três pessoas trans já morreram em casos não esclarecidos, mas que foram de uma violência macabra, em que se supõe ter sido por questões de gênero.

Há um projeto muito interessante que incide sobre o problema econômico enfrentado pelas mulheres após o furacão Maria, em 2017, e agora devido à pandemia. A economia agudizou seu processo de decrescimento. As mulheres foram impactadas porque perderam o emprego, ou tiveram que sacrificar o trabalho remunerado para poder assumir a responsabilidade de cuidar dos filhos, ficar em casa com eles, ser professora, faxineira… Como consequência, elas perderam sua capacidade de gerar renda. Foi criado um conceito chamado “janta feminista”: acontece em setores marginalizados, em determinados dias da semana, para que mulheres em condições precárias possam vir e ter acesso a suprimentos mínimos para sua família, como arroz, feijão, leite, água sanitária, itens essenciais.

Outro assunto que está sendo trabalhado é justamente o modo como o projeto de lei para restringir o aborto criou níveis de insegurança nos centros de planejamento familiar ou nos centros onde são realizados abortos. Estamos realizando protestos em frente a esses centros para impedir que organizações religiosas ou conservadoras bloqueiem o caminho para as mulheres que vão receber atendimento lá. Os centros de planejamento familiar oferecem serviços ginecológicos e psicológicos como qualquer outra entidade, são centros de saúde integral. Com esse tipo de ação conservadora, as organizações religiosas assumiram seu dever de proteger o que chamam de vida do nascituro acima da vida das mulheres.

Você acha que, por ser uma colônia, há coisas que acontecem de maneira diferente com as mulheres?

Uma das condições que temos como colônia dos Estados Unidos é justamente importar os papéis. Existem grupos anexionistas dogmáticos que imitam os modelos dos Estados Unidos. Um exemplo é o caso do aborto, que está em disputa nos Estados Unidos. Não é por acaso que se aproveitem dessa situação em que estão reavaliando o Roe vs. Wade para fazer a mesma coisa, de modo atropelado, em Porto Rico. Esses projetos são subterfúgios para promover ou dizer que são anexionistas, que fazem parte dos Estados Unidos, ainda que os Estados Unidos nos neguem repetidamente. O que se promove é uma assimilação cultural e política.

Somos uma colônia, mas as mulheres têm sido historicamente empoderadas e muito ativas na luta política progressista e de esquerda. Independentemente do status colonial, as mulheres assumiram a tarefa de continuar promovendo melhores condições e melhores direitos para as mulheres. Então, se por um lado estão os grupos que querem promover uma assimilação contra os direitos conquistados; por outro lado, há os grupos feministas que estão constantemente lutando, que não pararam de lutar, e que se sobrepõem a aqueles.

Sabemos que há muitos desafios em fazer parte de processos mistos, mas que as mulheres têm um papel muito importante nas organizações. Como é a participação das mulheres na luta pela independência e autodeterminação? Você acha que houve mudanças nos últimos anos?

Observei com muito cuidado, e digo isso como um exercício de autocrítica, uma figura feminina em Porto Rico chamada María de Lourdes Santiago. Ela vem de um partido independentista que representou, em algum momento, interesses burgueses, apesar de seu presidente, Ruben Berríos, afirmar-se socialista. Na estrutura política partidária, María de Lourdes representava uma minoria, um grupo muito pequeno de mulheres com pouquíssima exposição. Através de uma luta consistente e de seu próprio exercício de autocrítica, María de Lourdes foi assumindo uma política mais independente, mas sempre leal ao seu partido, que é o que eu acho que acrescenta firmeza e agrega valor ao Partido Independentista Puertorriqueño. Ao mesmo tempo, ela tem se colocado muito nas ocasiões em que teve que se expressar para mostrar oposição ou mostrar que o partido deveria tomar outras atitudes.

Gostaria de mencionar também Tati Fernós, uma advogada que faleceu recentemente, que chegou a ser Procuradora da Mulher e foi essencial para que muitas leis aprovadas desde 1973 tivessem finalmente um protocolo para que pudessem ser implementadas e fiscalizadas. Tati Fernós era uma mulher diplomada e foi membro do Partido Socialista. Em algum momento, ela entendeu que preferia se concentrar nas organizações feministas, porque o trabalho que teria que fazer nas organizações políticas socialistas seria tão forte que ela sentia que estava perdendo uma oportunidade. Então ela se distanciou um pouco dessas organizações independentistas para fazer um trabalho feminista concreto sobre os direitos das mulheres e dos grupos LGBT.

María de Lourdes, por outro lado, nesta geração, conseguiu transformar as normas de gênero dentro do seu partido, sendo provavelmente a primeira mulher do Partido Independentista a aspirar ao cargo de governadora por meio da participação da comunidade. A partir do seu partido, ela conseguiu transgredir o sistema e reestruturá-lo. E conseguiu isso por meio da participação cidadã, unindo-se às lutas da comunidade, como a luta contra a LUMA [empresa de energia] e as lutas ambientais, e encontrando aliados dentro de sua organização.

Para concluir, você poderia falar sobre as estratégias atuais da luta pela independência?

O processo de luta pela independência é um processo contínuo, árduo e constante. É um processo rítmico. Porto Rico teve seus altos e baixos. Nas décadas de 1930, 40 e 50, o Partido Nacionalista foi provavelmente um dos movimentos mais importantes do século XX. Vale ressaltar que Pedro Albizu Campos, seu dirigente máximo, estabeleceu, com as mulheres, um grande precedente para o trabalho de mulheres dentro do partido, como Blanca Canales. Chegou, inclusive, organizou solidariedade internacional na figura das mulheres estadunidenses, por exemplo Thelma Mielke. E nós demos continuidade a esse precedente.

Atualmente, o movimento independentista conta com três grandes polos de trabalho. Internamente, em Porto Rico, estamos fazendo um ótimo trabalho para tornar visível o que pode significar o desenvolvimento econômico de um país sustentável e independente. Dessa forma, quebramos o mito de que não se pode viver sem os Estados Unidos. Graças à crise econômica, os e as jovens e as mulheres empreendedoras viram a necessidade de se articularem em novas formas econômicas, de criarem elas próprias um modelo econômico de subsistência. Assim, nos ajudam a construir a visão sobre esse país soberano e independente que queremos.

Nossa responsabilidade como independentistas é demonstrar esses projetos, mostrar às pessoas como esses projetos nos ajudam a construir um país.

Também faz parte do nosso projeto político pela independência reconhecer o valor de nossos recursos naturais e protegê-los. Nossos recursos naturais estão sendo cooptados por estrangeiros, principalmente estadunidenses, especuladores e investidores que vêm a Porto Rico por meio de leis que os protegem. Temos o trabalho de conscientizar os cidadãos porto-riquenhos do valor dos recursos que têm em suas mãos: o valor da terra, o valor da água. Trabalhamos para impedi-los de vender suas terras e recursos a investidores e especuladores, para nos proteger de empresas que vêm fazer experiências em terras agrícolas, como é o caso da Monsanto, e para evitar a contaminação da terra, como o caso das cinzas em Peñuelas. A proteção da nossa terra também tem a ver com evitar a proliferação contínua de antenas de telecomunicações, que não só contaminam a terra, mas também prejudicam o corpo humano com radiação constante.

Temos mais um polo de trabalho relacionado à mobilização da solidariedade internacional. Trabalhamos intensamente com o Caribe através da Assembleia dos Povos do Caribe, trabalhamos com a ALBA Movimentos e participamos ativamente da 3ª Assembleia Continental que aconteceu na Argentina. Adorei participar, principalmente porque levamos o lema “sem Caribe não há América”, e a recepção que tivemos entre as companheiras e os companheiros latino-americanos foi reveladora. Acho que há um terreno sólido para ampliar nossos laços de trabalho na América do Sul.

Também temos grupos de solidariedade na Europa e nos Estados Unidos, particularmente grupos de diáspora. O trabalho mais forte que estamos fazendo lá é ajudar as cidadãs e os cidadãos porto-riquenhos que migraram para os Estados Unidos. Nós os ajudamos a se conscientizarem de como a necessidade de ter que se mudar para os Estados Unidos é uma política ativa dos próprios Estados Unidos para saquear nossos recursos humanos, que é o recurso mais importante que qualquer país possui. Esses e essas jovens que saem de Porto Rico são vítimas de um processo de extração, como se fossem coisas que são levadas para outros países – nesse caso, os Estados Unidos, por causa da cidadania que não pedimos, mas que eles nos deram, tirando nossa cidadania porto-riquenha.

Entrevista conduzida por Helena Zelic
Traduzido do espanhol por Aline Lopes Murillo com revisão de Helena Zelic

Artigos Relacionados