Entrevista: o que está em jogo para a vida das mulheres no Afeganistão?

20/08/2021 |

Por Capire

Leia entrevista com militante dos direitos das mulheres do Afeganistão sobre as consequências de 20 anos de ocupação dos EUA e a volta do Talibã ao poder.

REUTERS/Stringer, 19/08/2021

Com a tomada de poder pelo Talibã no Afeganistão, vieram à tona os reais impactos da ocupação militar dos Estados Unidos no país. Foram 20 anos de discursos sobre liberdade, democracia e guerra ao terrorismo que na verdade escondem trilhões de dólares e incontáveis mortes da população afegã. Nesse período, se constituiu um governo fantoche, imerso em lógicas de corrupção e aumento exponencial da exportação de ópio, acompanhado da dependência de drogas no país. Enquanto houve algum avanço nas possibilidades de vida, estudo e profissão para as mulheres em uma pequena parte do país, em outras seguiam vigentes as restrições, a violência e os açoitamentos. O Talibã seguiu se organizando sob a ocupação. As tecnologias de vigilância experimentadas pelos EUA agora são instrumentos para o exercício do poder pelo Talibã.

As intervenções militares são uma estratégia imperialista dos EUA para impor sua política e interesses de suas corporações. Retomamos o posicionamento da Marcha Mundial das Mulheres em 2001, antevendo os efeitos da ocupação estadunidense que se instalou naquele ano. A guerra “não faz nada para resolver os problemas que estão na raiz da violência. Pelo contrário, acentua o estado de pobreza e humilhação das populações diretamente afetadas por tais intervenções. (…) Muitos governos usarão a guerra para justificar a escalada da xenofobia; o estreitamento de suas fronteiras, erguendo fortalezas contra imigrantes e refugiados; o risco e mesmo a supressão dos direitos civis e liberdades fundamentais, particularmente os das mulheres; e a criminalização de qualquer oposição ao atual estado de globalização neoliberal e sexista.” Essa recuperação nos localiza nos tempos da política e nos permite olhar para a alarmante situação atual do Afeganistão à luz da conjuntura regional e internacional. Os perigos para a vida das mulheres são centrais, mas não podem ser vistos como uma questão isolada.

Em 17 de agosto de 2021, dois dias após a tomada de Cabul pelo Talibã, Capire conversou com uma afegã que milita pelos direitos das mulheres, cuja identidade será mantida em sigilo por questões de segurança e pela delicadeza das atuais circunstâncias. Ela passou dois anos refugiada no Paquistão e voltou para casa no Afeganistão em 2003, onde continuou os estudos até 2018. Atualmente, mora na Alemanha. A entrevista abaixo é uma contribuição para entender a situação pela perspectiva das mulheres afegãs. Nosso objetivo é construir solidariedade feminista e internacionalista permanente às mulheres e ao povo afegão, com soberania e autodeterminação de todos os povos.

Gostaríamos de divulgar o que está acontecendo no Afeganistão hoje a partir da perspectiva e da experiência das mulheres do país. Qual é sua visão sobre a atual conjuntura afegã?

A situação no meu país está um pesadelo para a população, principalmente para as mulheres. Tudo desmoronou em questão de horas: o trabalho árduo das mulheres que vinham lutando por direitos e pelo pouco de visibilidade que começavam a ter na vida pública, conquistando participação nas instituições governamentais e acesso à universidade e à escola. Aos poucos, elas foram confiando na democracia e na possibilidade de ter direitos e de pensar em um futuro melhor.

A situação está terrível. Hoje eu moro no Ocidente, na Europa, então só posso imaginar como as mulheres estão vivendo no meu país. Infelizmente, familiares minhas que estavam frequentando a universidade não estão podendo continuar os estudos no momento. Embora o Talibã tenha anunciado que não há restrições, ninguém confia nisso, considerando o que eles faziam 20 anos atrás. Os crimes que eles cometeram naquele período ainda estão vivos na memória das pessoas.

As pessoas dizem que não sabem o que esperar do futuro. Todo mundo está com medo  de se tornar alvo. Todo mundo sofre, mas o alvo mais fácil são sempre as mulheres. As pessoas têm medo de sair para trabalhar e serem seguidas na volta para casa, temendo que façam alguma coisa com a família delas. O silêncio em Cabul é apavorante. Não se ouve ninguém, nem crianças brincando na rua.

Cabul está no coração do Afeganistão, e a maioria dos ativistas moravam lá. Algumas jornalistas voltaram a atuar hoje. Vi vídeos de Cabul mostrando que algumas mulheres âncoras voltaram aparecer em canais de TV privados. Ao mesmo tempo, as pessoas não conseguem confiar na situação toda. As coisas podem mudar depois de 31 de agosto, porque será o último dia para os estadunidenses concluírem a evacuação.

Talvez o Talibã só esteja mostrando um lado mais moderado no momento, mas, depois que formarem o governo, as coisas vão mudar. Tem um vídeo em que perguntam a um soldado do Talibã especificamente sobre as mulheres e ele responde que eles querem “implantar o que a sharia[1] versa sobre as mulheres”, apontando que elas terão de seguir o código de vestimenta da sharia. Ele deixou escapar que acredita que as mulheres devem ficar em casa. Ao mesmo tempo, os líderes deles afirmam que as mulheres poderão ter acesso a suas estruturas e que elas são necessárias e fazem parte dessa sociedade. De alguma forma, estão mostrando isso, mas os soldados nos territórios dizem outra coisa.

Há quem diga que os EUA fracassaram no Afeganistão, enquanto outras pessoas afirmam que era esse o objetivo. O que significaram os últimos 20 anos de ocupação estadunidense no país?

Quando os EUA ocuparam o Afeganistão, as expectativas que os afegãos tinham na época era de que haveria uma mudança. Mas nada fundamental aconteceu. Eles voltaram ao governo afegão e, ao mesmo tempo, tinham algum envolvimento com o Talibã, no sentido de não pressioná-lo, embora mostrassem que estavam combatendo o grupo. De modo geral, a população dos povoados começou a se voltar contra os EUA, e um dos maiores motivos para isso eram os bombardeios que aconteciam. Civis estavam sendo mortos.

As pessoas começaram a ter esses sentimentos contra os estadunidenses, mas isso não significa que elas queriam o Talibã no poder. A população já tinha vivenciado o período de controle do Talibã e sabia o que isso significava. Nos últimos 15 anos, meu povoado ficou de certa forma sob o controle deles. As meninas só podiam estudar até a sexta série, nada mais. As pessoas sabiam que o Talibã não daria nada a elas. Elas queriam o apoio do governo, queriam que o governo se fortalecesse. Acreditavam naquele pouco de democracia que o governo oferecia.

Não estamos pedindo para os EUA ficarem. Não queremos a ocupação. O problema é a forma como eles deixaram tudo, é o vácuo que eles promoveram. Eles literalmente atiraram os afegãos aos leões. É isso que eles fazem: pegam o que querem e deixam você lá. Neste momento, os afegãos estão vivendo um sentimento terrível de pânico.

A questão não é que as pessoas estejam sentindo falta dos estadunidenses. Elas querem um governo democrático, com representantes e eleições, onde as mulheres possam ter direitos. Mesmo com 20 anos de ocupação, os EUA não fizeram nada. Era só uma exibição para o mundo.

Os afegãos tinham um parlamento e as meninas frequentavam a escola – essa é a única imagem que os EUA querem mostrar para o mundo. Quem deveria receber crédito por isso são as famílias afegãs. Eram elas que mandavam suas filhas à escola, à universidade. E elas podiam trabalhar. Durante esse tempo, como as mulheres eram alvo de ataques, havia sequestros e atentados suicidas. No entanto, quem deve receber o crédito pela nossa segurança são as pessoas, não os EUA nem o governo fantoche que não nos ajudava.

Agora a população está muito revoltada, principalmente as mulheres. Elas acreditam que os estadunidenses deveriam ter deixado o país de forma adequada, pelos canais adequados. As pessoas não pediram a vinda dos EUA. Bin Laden foi morto no Paquistão, não aqui. Eles vieram e agora estão nos deixando de novo com um grupo medieval que vai passar a dominar o país.

O que essa situação significa para a conjuntura regional e internacional? 

Neste momento, estão todos confusos, inclusive o Talibã. Eles não têm uma agenda, não sabem como formar um governo agora. Está tudo meio confuso para todo mundo. Hoje, a China afirmou que vai reconhecer o Talibã, e a Turquia já expressou apoio. Isso dá legitimidade a eles.

As coisas mudaram muito nos últimos 20 anos, em termos de as mulheres terem conhecimento de seus direitos e acesso à mídia e à internet. Então o Talibã está mostrando uma faceta mais moderada para conquistar algum reconhecimento, pelo menos, entre os países da região. É um momento confuso, mas vamos entender tudo melhor depois do dia 31 de agosto. Foi tudo muito de repente.

Qual é a saída possível para o Afeganistão e qual pode ser o apoio internacional, considerando o aumento no número de pessoas do país que se tornarão refugiadas?

Quando o resto do país caiu nas mãos do Talibã, uma província atrás da outra, as pessoas se refugiaram em Cabul. No período de três ou quatro dias, mais de 20 mil pessoas fugiram para a capital. Quando o Talibã chegou a Cabul, as pessoas começaram a tentar sair do Afeganistão. Essa é uma das coisas que se deve mostrar para o mundo: as pessoas não apoiam o Talibã – elas querem deixar o país a qualquer custo. As três pessoas que morreram quando tentaram se esconder no avião que estava decolando… Esse episódio terrível mostra como as pessoas querem ir embora.

O entorno do aeroporto de Cabul está lotado, porque as pessoas acham que vão conseguir ir embora. A própria Organização das Nações Unidas fez um apelo para que os países vizinhos aceitem a entrada de refugiados. As pessoas não querem viver sob o controle do Talibã, porque não sabem qual será o futuro de seus filhos.

Em uma situação muito ideal, o Talibã pode ter realmente mudado e pode permitir que as mulheres trabalhem, pode não interferir na educação de meninas, pode deixar que as mulheres acessem a universidade. Mas temos exemplos de países como Irã e Arábia Saudita em que as mulheres foram reprimidas e se tornaram alvos fáceis. Intelectuais não têm liberdade para trabalhar, pessoas que defendem os direitos humanos não podem atuar.

O Talibã não vai ficar para trás. Isso é lamentável, porque muitas pessoas começavam a ter uma vida. Se você tinha um pedacinho de terra no seu povoado, sabia que poderia usá-la para si. As pessoas em Cabul começavam a ter suas próprias casas. Alguns anos atrás, os afegãos também quiseram deixar o país, mas não em números tão grandes. Nessa época, por causa dos assassinatos direcionados à população hazara[2], por causa da pobreza. Agora serão milhões nos próximos meses.

Que ações de solidariedade internacional movimentos sociais e feministas podem fazer neste momento?

O maior apoio é erguer a voz do povo afegão e das mulheres afegãs. Essa é a maior ação de solidariedade, apoio e assistência que o povo afegão pode receber. Não esqueçam de nosso país. Hoje estamos no noticiário, mas, em algumas semanas, quando o Talibã anunciar o governo, a situação vai se acalmar e ninguém mais vai perguntar o que está acontecendo no país.

Depois que o assunto sair das manchetes, é aí que o trabalho árduo vai começar. É aí que nossas mulheres vão precisar de suas companheiras internacionais para erguer sua voz.

Tenho medo de que, em algum momento, a internet seja cortada. Isso pode acontecer, porque o Talibã pode não querer que seus crimes sejam documentados. Então essas vozes devem alcançar todos os cantos do mundo, para não deixar as mulheres afegãs sozinhas. Tem gente dizendo que, se o que está acontecendo for pacífico, como afirma o Talibã, tudo bem. Não é tudo bem, não. Um cemitério também pode ser pacífico. Não queremos que nosso país se torne um cemitério.


[1] A sharia é a lei islâmica, apoiada no Corão e nos hádices, textos complementares dessa fé. É adotada em diversos países de maioria muçulmana.

[2] O povo hazara, de maioria muçulmana xiita, já foi um dos maiores grupos étnicos do Afeganistão, representando cerca de 67% da população do país. Estima-se que mais da metade dessa comunidade tenha sido massacrada no final do século 19 e, até hoje, é um dos maiores alvos do Talibã.

Entrevista conduzida por Bianca Pessoa e Tica Moreno
Edição por Helena Zelic
Tradução do inglês por Aline Scátola
Idioma original: inglês

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