Camponesas da Índia: um ano de luta intensa

28/03/2022 |

Por Capire

Chukki Nanjundaswamy, da Via Campesina, conversou sobre o que aconteceu após as mobilizações e os protestos de agricultoras e agricultores no país

La Via Campesina, 2021

Desde novembro de 2020, camponesas e camponeses da Índia lutam por seus direitos, que estão sob ameaça constante do governo autoritário de extrema direita comandado pelo primeiro-ministro Narendra Modi. O país está lutando contra a agenda de Modi em parceria com multinacionais, que coloca em risco a vida de muitos agricultores no país, especialmente mulheres. 80% dos alimentos da Índia são produzidos por mulheres. Elas são maioria nos campos e plantações, mesmo não sendo oficialmente consideradas agricultoras, e são as que mais sofrem com a falta de políticas.

Chukki Nanjundaswamy faz parte do movimento de agricultoraes e agricultores desde a juventude. Ela é uma das coordenadoras de uma escola de agroecologia sediada no sul da Índia, em Carnataca, e integrou o Comitê de Coordenação Internacional da Via Campesina. Nesta entrevista, Chukki fala sobre esse último ano de muita luta no país, a mobilização pelo preço mínimo e contra a privatização dos mercados, a violência sofrida por mulheres agricultoras e os eventos desse último ano de protestos. Para entender mais sobre a luta das mulheres na Índia, leia outros conteúdos do aqui.

As mobilizações camponesas contra as novas políticas do governo de Narendra Modi, que favorecem grandes corporações em detrimento de produtores indianos, ocorrem desde novembro de 2020 e tiveramum resultado: as três leis propostas por Modi foram revogadas. Agora, pouco mais de um ano depois do início dessa luta, e com essa conquista, como está a situação das agricultoras e dos agricultores indianos?

A situação não mudou. O setor da agricultura, os agricultores das zonas rurais já estavam em uma crise grave muito antes de essas três leis existirem. Em vez de lidar com a crise transitória que existe no setor agrário, o governo aproveitou a pandemia para sancionar essas leis sem discuti-las com o Parlamento. Mas nossa resistência e nossa mobilização forçaram o primeiro-ministro a se curvar à democracia, e ele teve que revogar essas leis. Ao mesmo tempo, tínhamos outra demanda, que era a de regulamentar o preço mínimo.

Queríamos discutir um mecanismo proposto muitos anos atrás por M.S. Swaminathan, que foi diretor-geral do Instituto Internacional de Pesquisa do Arroz (IRRI). Ele é considerado o pai da Revolução Verde na Índia. Recentemente, ele havia feito algumas recomendações em apoio a pequenos agricultores. O movimento de agricultoras e agricultores da Índia pede que o governo implemente essas recomendações. Não estamos pedindo nada de novo. Foi uma promessa que eles fizeram no manifesto antes das eleições gerais. O governo basicamente fez uma declaração juramentada à Suprema Corte da Índia de que não era possível implementar uma recomendação particular referente ao mecanismo de preços da produção agrícola.

Nesse sentido, o governo não cumpriu todas as demandas dos movimentos de agricultoras e agricultores do último ano. A situação ainda é a mesma; nada mudou. A Índia é uma federação, e existem muitos estados onde a privatização do mercado está acontecendo de fato. Essa era uma das leis que eles tentaram implementar nacionalmente. Eles a revogaram, mas muitos estados já a implementaram; eles não a revogaram a nível estadual. Um desses mercados, inclusive, chegou ao nosso estado, Carnataca. Então, já está ocorrendo uma luta contra a privatização do mercado.

Você pode nos falar um pouco sobre o Preço Mínimo (MSP)?

Existe um conselho nacional chamado Comissão de Custos e Preços Agrícolas. Ele é constituído por cientistas e economistas agrícolas que calculam o custo de produzir um acre ou hectare de uma colheita específica. Nós lutamos há 40 anos contra a metodologia que eles usam para calcular o custo, porque tem muitas falhas. O valor sequer paga as despesas e o sustento dos agricultores. Todo ano eles aparecem e declaram um preço mínimo de aproximadamente 23 a 26 colheitas.

Nem todas as 23 colheitas são adquiridas pelo governo. Cerca de três a quatro colheitas principais, como trigo e arroz, são adquiridas pelo MSP e enviadas à Corporação de Alimentos da Índia [a agência nacional de compra de grãos], depois são distribuídas pelo sistema público de distribuição. É assim que funciona o MSP. O que nós pedimos é que ele seja regulamentado. Não existe obrigatoriedade legal; é apenas uma recomendação. Se os comerciantes comprarem abaixo do preço mínimo declarado pelo governo, você não tem nenhuma proteção legal. É por isso que pedimos que haja obrigatoriedade legal.

Como você disse, os camponeses do país continuam lutando contra os processos de privatização e terceirização de aparato político vinculado ao campo. O que essas privatizações significam para as agricultoras indianas? Como isso afeta a vida delas?

O governo está correndo loucamente atrás da privatização. Eles estão privatizando água potável nas zonas rurais e querem privatizar a eletricidade usada na agricultura. No momento, por causa da luta das agricultoras e agricultores, temos energia gratuita para a agricultura; mas eles querem privatizá-la e exigir que paguemos por ela. Querem privatizar as sementes. Existem muitas leis assim no Parlamento; basicamente, eles querem privatizar tudo. O que isso significa para as mulheres? A agricultura já ficou muito cara. Não é mais uma opção viável.

Muitos agricultores já estão cometendo suicídio. De acordo com dados oficiais, desde 1995, mais de 300 mil agricultores se suicidaram. E esses não são os números reais porque, para o governo, apenas quem tem terra em seu nome é agricultora ou agricultor; mas muitas e muitos  não possuem terras. Essas pessoas não têm documentos; são arrendatárias. A maioria dessas pessoas são mulheres, e se elas cometerem suicídio, não entram para os dados do governo. Nós achamos que o número pode ser duas ou três vezes maior. Quando um agricultor homem comete suicídio, quem precisa cuidar da família e carregar todo o fardo que ficou é a mulher.

A mulher não tem o privilégio de simplesmente deixar tudo para trás; ela é responsável pelos filhos; é ela quem cuida da casa e de todos os idosos da família. É ela que precisa cuidar da fazenda e pagar de volta o dinheiro que pegaram emprestado. Está acontecendo uma enorme feminização na agricultura, mas ainda hoje uma mulher não é considerada agricultora. Ela faz 99% do trabalho doméstico, o trabalho na fazenda e tudo mais; mas ainda hoje, é sempre a esposa, a mãe e a filha de um agricultor. 80% dos alimentos do país são produzidos por mulheres, e são elas que produzem, processam e cozinham; então tudo é feito por mulheres.

Movimentos do mundo inteiro acompanharam a intensa luta das indianas e dos indianos pelo direito à terra, mas eles também ficaram alertas à repressão: cerca de 700 pessoas morreram durante as mobilizações. O que significa essa violência por parte do Estado?

A maioria dos 700 agricultores que deram a vida durante a luta de um ano em Deli estavam sentados em protesto. Eram agricultoras e agricultores idosos, na casa dos sessenta e setenta anos. Também conheci alguns na casa dos noventa. Muitos delas e deles deram a vida ali. Enfrentaram o inverno rigoroso, monção e o verão extremo. Eles estavam basicamente sentados nas rodovias federais ao redor de Deli. O governo disse que não tinha dados quando dissemos que eles precisavam primeiro pagar indenização; eles precisavam compensar essas famílias. Nosso governo fala com muita tranquilidade  que não existem dados sobre as agricultoras e agricultores que deram a vida em protesto.

Além desses casos, houve o brutal assassinato de agricultores pelo filho de um ministro em um estado chamado Utar Pradexe. Um grupo de agricultoras e agricultores exibiu uma bandeira negra em protesto contra uma reunião realizada por um dos ministros. Após o protesto, quando voltavam para casa, o filho do ministro Ajay Mishra jogou seu quadriciclo para cima dos agricultores, matando cinco deles. Houve tiros e repressão por parte da polícia em muitos lugares, especialmente nos pedágios de rodovias nacionais. Ao longo de todo o ano, foi isso que vimos. Essa foi a resposta que o governo deu às agricultoras e aos agricultores que protestavam. Eles tentaram de tudo para deslegitimar as pessoas que se manifestavam, para não admitir que elas eram agricultoras deste país, que vêm alimentando o país há gerações. 

No dia 26 de janeiro de 2021, ocorreu o histórico desfile de agricultores. É o Dia da República na Índia, e pela primeira vez na história, agricultoras e agricultores fizeram um desfile de tratores em Deli. Mais de 500 mil tratores estavam nas ruas da cidade, e a polícia intencionalmente fez com que a manifestação fosse desviada e entrasse no Forte Vermelho, um monumento da Índia. Um grupo de infiltrados na marcha tentou dizer que as pessoas que se manifestavam não eram agricultoras, chamando-as de antinacionalistas. Houve toda sorte de boatos, mas é uma democracia, e ela deve vencer. 

Embora as mulheres sejam maioria no campo, ainda enfrentam muitos desafios para que seus direitos sejam reconhecidos. Quais são as reivindicações das mulheres indianas em 2022? Quais são os próximos passos na luta?

A primeira reivindicação das mulheres indianas no setor da agricultura é que sejamos reconhecidas como agricultoras. Em segundo lugar, queremos uma lei que possibilite o título conjunto de terras. A terra nunca é registrada no nome de uma mulher. Assim que ela se casa, o título da terra deve se tornar conjunto com o marido. A feminização da agricultura está acontecendo em toda parte, e o governo está totalmente cego; as políticas que eles estão desenvolvendo são totalmente cegas. Queremos que o governo crie uma comissão especial para tratar de mulheres agricultoras, para estudar a situação das mulheres na agricultura e criar políticas que as auxiliem. Assim, as mulheres podem ter um sistema de recursos, incluindo crédito.

Dentro das organizações, embora tenhamos tido um protesto de agricultoras e agricultores muito bem-sucedido, as mulheres não tiveram tanto êxito. Muitas mulheres participaram da base, mas pouquíssimas mulheres da liderança. Então, estamos tentando construir essa liderança a partir da base. Nosso objetivo é alcançar pelo menos 50% de participação de mulheres na liderança.

Entrevista conduzida por Bianca Pessoa
Traduzido do inglês por Luiza Sellera

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