Mulheres curdas escrevem em defesa da sua língua, cultura e território

04/02/2022 |

Por Capire

Leia um trecho da revista Tevn, escrita à mão por mulheres curdas presas na Prisão Feminina de Elazığ

A introdução e o artigo traduzidos abaixo são trechos da revista Tevn, organizada por Leyla Güven, co-presidenta do Congresso da Sociedade Democrática [Demokratik Toplum Kongresi – DTK], e outras oito mulheres curdas presas na Prisão Feminina de Elazig. São elas: Beritan Key, Remziye Yaşar, Nemciye Boz, Emine Erkan, Mihriban Şorli, Şilan Avareş, Dilan Aydın e Mizgin Özatiz. A revista foi inteiramente escrita e ilustrada à mão e é uma homenagem dessas mulheres à sua língua, cultura e território. Os temas dos artigos vão desde a importância da língua curda para a cultura deste povo à luta das mães curdas pela paz.

_________________________________

O grande mestre imortal, Cegerxwin, diz: “oh curdos, oh meus pobres, ou falem em curdo ou não digam que vocês são curdos”. É uma frase apropriada para nós. Quando falamos em curdo, escrevemos em curdo, sentimos uma forte emoção e ficamos cheias de beleza. Cada uma de nós vem de uma cidade diferente do Curdistão. Então, nosso quarto é muito colorido, tal como nosso país. Eu sou um pouco diferente de outras amigas em relação a isso, porque sou curda da Anatólia Central. Mas essa é outra riqueza do nosso país.

Por que publicamos essa revista? Há décadas existe uma política de assimilação e um genocídio cultural da nossa língua, nossa cultura e nossa geografia. Não importa o que façamos, não conseguimos nos salvar desse processo de genocídio. Ninguém deveria dizer que ele não foi atingido pela assimilação. Infelizmente, todos foram afetados por esse processo. Não nos enganemos. Por essas razões, decidimos publicar uma revista em nossa própria língua.

Queridos amigos, é preciso dizer que cada tópico que escrevemos é tão vasto como um livro. Não é fácil escrever absolutamente tudo. Então nossas amigas escreveram brevemente. Queremos chamar a atenção para a vida do povo curdo e para as suas experiências. É claro que o que vem acontecendo há um século não terminará com uma revista. Sem dúvida tínhamos algumas falhas, mas sabemos que o nosso povo nos perdoará e nos abraçará. Não há povo leal, honesto e heroico como o povo curdo. Ele sempre sacrifica tudo por sua própria liberdade e pela liberdade do seu país.

Nós, enquanto presas políticas, dizemos que o nosso povo precisa estar à vontade, porque há sempre uma luz após a escuridão. Sabemos que “a esperança é mais preciosa do que a vitória”. Nós temos esperança e lutaremos pela liberdade do nosso povo, e certamente venceremos.

Leyla Güven
Prisão de Elazığ

_________________________________

_________________________________

O que é a legítima defesa (autodefesa)?

Desde o início da história humana, sempre existiu a legítima defesa (autodefesa). Não só os seres humanos, mas também os animais, a natureza e todos os seres vivos se defendem. É necessário analisar o período Neolítico para compreender direito a legítima defesa (autodefesa). Naquela época, a natureza, os seres humanos e os seres vivos estavam juntos. Os seres humanos não prejudicavam a natureza, e vice-versa. Porque a comunidade seguia os passos da mulher e havia uma relação simbiótica entre a mulher e a natureza. O ponto de vista da mulher sobre a natureza era vívido, e ela via a natureza como um ser vivo. Mantendo sua própria vida, ela usava a natureza e começava a plantar.

Quando analisamos a legítima defesa, podemos dizer que ela é encontrada em todos os lugares, e cada ser vivo se defende de maneiras diferentes. Podemos dar muitos exemplos. A rosa, por exemplo, uma das belezas da natureza, defende-se com seus espinhos. Ela não poderia defender sua beleza se não tivesse espinhos. Outro exemplo, uma pequena centopeia deixa sua saliva por onde passa. Por causa do cheiro da saliva, as pessoas não conseguem se aproximar dela. É assim que a centopeia se protege. Ambos os exemplos nos mostram que não há nada no mundo que não se defenda.

Podemos notar que, no século 21, foram dominadas pelo sistema patriarcal, em primeiro lugar, a mulher e a natureza. A primeira consequência dessa dominação é a esterilização dos sentimentos da mulher. Então a maior opressão e repressão de todos os tempos é exercida sobre as mulheres. O líder do povo curdo expressou as suas ideias notáveis e importantes sobre esse tema. Ele enfatiza que todas as coisas vivas devem se defender. A exemplo de seu discurso e de sua filosofia, milhares de mulheres curdas praticam a legítima defesa hoje (autodefesa). É importante saber que a legítima defesa não é apenas uma ação física. A mulher deve se defender fisicamente contra a mentalidade social do sistema patriarcal, e também defender a natureza e a sociedade contra essa mentalidade. Sem dúvida, não é fácil encontrar uma solução para a hegemonia patriarcal que se mantém há séculos sobre a mulher e a natureza. A mulher tem de recuperar a legítima defesa onde a perdeu. Ela deve assegurar a sua libertação onde perdeu o sentido da legítima defesa. Há anos ela luta contra essa hegemonia e resiste a todas as opressões.

Quando as potências dominantes avançaram no campo da tecnologia, etc., elas começaram a prejudicar a natureza em função de seus interesses. A natureza se defende de sua própria maneira. Se há tantas catástrofes naturais, como inundações, incêndios florestais e terremotos hoje em dia, podemos dizer que a natureza está se vingando da humanidade.

A legítima defesa é considerada um crime, uma vez que aqueles que querem defender a sociedade e a si mesmos de todos os tipos de ataques são mantidos reféns pelas potências dominantes. Se chamarmos a atenção para as prisões, elas são estabelecidas por homens. Dessa forma, trata-se de subjugar aqueles que querem se defender. No entanto, os detidos se defendem com seus discursos, seus escritos, suas vidas comunais, suas ações e seus estilos contra todos os ataques. É importante saber que as prisões não são um lugar para as mulheres resistentes serem subjugadas, pelo contrário, é um lugar para elas se defenderem.

A realidade da vida é que as pessoas deveriam organizar o lugar onde vivem. Trata-se sempre de um ato de defesa. Como a camarada Zilan na montanha, como a camarada Sema na prisão, como a camarada Arin Mirkan na cidade, cada uma se tornou uma tocha de fogo para defender seu povo e explodiu dentro coração do inimigo. Elas se sacrificaram para defender seu povo. O povo curdo nunca esquece as suas heroínas.

É preciso que cada mulher e cada homem se defenda com sua língua, sua cultura, sua organização. Isso de que falamos revela uma realidade. Nenhum ser vivo mantém sua vida sem a legítima defesa. Se povos como o povo curdo, povos oprimidos, outros povos ou mulheres não abandonam sua própria defesa, eles podem alcançar o sucesso. Nós, como mulheres do Oriente Médio, salientamos que defenderemos o nosso povo e a nós mesmas em todas as circunstâncias.

Despedimo-nos respeitosamente.

N. B.: Esta análise é dedicada às mulheres que praticam legítima defesa.

Şilan Avareş
Prisão de Elazığ

Edição por Bianca Pessoa
Traduzido do francês por Andréia Manfrin Alves.
Idioma original: curdo.

Artigos Relacionados