Citação extraída das intervenções do MSCPI durante a terceira rodada de negociações das Diretrizes voluntárias do CSA sobre a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e das meninas.
Todos os anos desde 1974 é realizada a sessão plenária do Comitê Mundial de Segurança Alimentar (CSA) das Nações Unidas. Apesar do nome complicado e de ser pouco conhecido, o CSA realiza um trabalho essencial: a formulação de políticas para permitir e promover a aplicação do direito humano a uma alimentação sadia e adequada no mundo. É um espaço sem igual. Além de ser a instituição intergovernamental mais inclusiva para tratar de políticas alimentares globais, é o único organismo deste tipo que fundamenta sua visão e trabalho nos direitos humanos. As pessoas beneficiadas, ou seja, as comunidades que mais sofrem com insegurança alimentar e desnutrição, participam ativamente do CSA através do Mecanismo da Sociedade Civil e dos Povos Indígenas (MSCPI). O MSCPI é um espaço autônomo formado por grupos de trabalho temáticos que permite a diferentes setores, movimentos sociais, povos indígenas, sindicatos e organizações de todo o mundo trabalhar em conjunto para influenciar as políticas do CSA nas áreas de soberania alimentar e direito à alimentação. Durante a 50ª sessão plenária do CSA, realizada em meados de outubro de 2022 em Roma, o Grupo de Trabalho do MSCPI de Mulheres e Diversidade de Gênero realizou um importante trabalho de ativismo em nome de milhões de mulheres, meninas e pessoas não heteronormativas. Neste relato, explicamos como e por que, e o caminho que ainda falta percorrer.
Há décadas, mulheres, meninas e pessoas não heteronormativas vêm lutando por avanços no sentido da igualdade de gênero e da soberania alimentar, já que historicamente sofrem com discriminação e marginalização e são submetidas a múltiplas formas de opressão que se sobrepõem. Cada direito humano reconhecido pelas Nações Unidas interfere com os poderes estabelecidos de uma sociedade patriarcal, injusta e desigual que se sustenta graças à força vital de quem alimenta o mundo.
No contexto do CSA, tem sido realizado desde 2019 um processo de convergência política para a adoção das Diretrizes Voluntárias sobre a Igualdade de Gênero e o Empoderamento de Mulheres e Meninas (GEWGE, na sigla em inglês). Este processo conta com a participação do Grupo de Trabalho de Mulheres e Diversidade de Gênero (GTMD) do MSCPI, o qual, dentro da arquitetura da governança alimentar global, é um dos poucos espaços de participação das organizações feministas e de mulheres de várias origens para a defesa do direito a uma alimentação adequada, inerente a todos os seres humanos.
Após ampla participação e consultas regionais a mulheres em toda a sua diversidade, foi coletado em um espírito coletivo as principais problemáticas e soluções em matéria alimentar vividas por mulheres, meninas e pessoas não heteronormativas. Durante as negociações a respeito do conteúdo das Diretrizes, realizadas este ano de 2022, o grupo de trabalho do MSCPI levantou estas problemáticas e soluções, enfatizando os vínculos políticos com o direito à alimentação, a soberania alimentar, a violência e a discriminação, os direitos das mulheres e pessoas LGBTQI+, a perspectiva da interseccionalidade, os sistemas alimentares justos, sustentáveis e territoriais, a agroecologia, o direito à terra, o acesso à água e a recursos naturais, o direito à paz e a proteção daqueles que vivem em situações de conflito ou sob ocupação, a proteção social universal e a igualdade salarial, o acesso a serviços públicos e a redução, redistribuição e reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidadores sem remuneração, entre outros.
No entanto, muitos Estados, entre eles o Vaticano, que possui status de observador no CSA, consideraram que a linguagem usada nas Diretrizes é controversa. A ausência de qualquer elemento técnico que sustentasse o argumento deixou claro o viés ideológico e patriarcal dessa postura. Isso demonstra a existência de uma contrarreforma e um retrocesso diante do que havia sido estabelecido pelo próprio sistema das Nações Unidas. Os opositores das Diretrizes tentam minar a possibilidade de que se abordem temas como identidades de gênero e orientação sexual fora do marco binário; interseccionalidade; e direitos sexuais e reprodutivos, para que sejam substituídos por serviços ou se limitem ao campo da saúde e reprodução, entre outros.
A expectativa principal é de que as Diretrizes se tornem um documento político inclusivo, ambicioso e transformador, dotado de um genuíno espírito de garantia da igualdade de gênero e da soberania alimentar, elementos cruciais para ter impacto substancial nas comunidades e territórios que mais sofrem com a fome. No mínimo, elas devem reforçar a proteção dos mais necessitados. Para isso, é preciso que os Estados e a ONU afirmem a linguagem e o espírito dos direitos humanos.
Isto significa avançar em uma linguagem progressiva e transformadora,que interprete a realidade atual das várias opressões que têm como ponto de interseção as mulheres, meninas e pessoas não heteronormativas. Boa parte dessa linguagem já está reconhecida de maneira formal e interpretada pela ONU na Recomendação Geral 34 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, segundo a sigla em inglês) e na Declaração dos direitos dos camponeses e outras pessoas que vivem em zonas rurais, entre outros. Devemos lembrar que o status quo patriarcal, que dá forma às normas de gênero opressivas, existe e nunca será transformado a não ser que nós avancemos.
Por outro lado, avançar no espírito dos direitos humanos significa que a envelhecida ONU deve assumir sua história e legado, respondendo de forma substantiva e concreta e mudando a vida de muitas mulheres. A ONU deve reconhecer que o patriarcado opera de diversas formas e que existem situações de discriminação e injustiça que impedem a realização do direito humano à alimentação e nutrição adequadas.
Por exemplo, a discriminação e a injustiça se manifestam quando as mulheres camponesas são deslocadas pela guerra e precisam abandonar seus cultivos, quando as mulheres nas cidades não têm acesso a alimentos saudáveis mas apenas a produtos ultraprocessados, quando jovens são estupradas ao obter água, quando mulheres não heteronormativas são discriminadas no mercado de trabalho e sofrem com a insegurança alimentar, quando não se reconhece o saber das mulheres na tomada de decisões sobre políticas alimentares, ou quando no contexto de conflitos armados os corpos de meninas são controlados e disciplinados.
Depois de dois anos do início do processo, ainda não foi possível produzir Diretrizes que promovam a realização do direito humano à alimentação de mulheres, meninas e todas as pessoas que vivem nestes contextos. Recentemente, na Sessão Plenária 50 do CSA, chegou-se a um acordo para seguir adiante com o processo para apresentar um documento a ser adotado na Sessão Plenária 51, que se reunirá em outubro de 2023.
No GTMD, consideramos que os princípios norteadores da negociação das Diretrizes com os Estados devem incluir:
> A construção de metodologias de trabalho coletivas que garantam a participação em igualdade de condições e com rotas convergentes. Deve haver clareza sobre o significado de consenso, já que há posições regressivas, desigualdade de poder e violências institucionais que devem ser evitadas.
> Não questionar as formas múltiplas e interseccionais de discriminação contra mulheres, meninas e pessoas não heteronormativas. Isto implica identificar as causas estruturais e não os sintomas, de acordo com os termos de referência (ponto 14) do mandato das Diretrizes.
> A demonstração pelo CSA de tudo o que já reconheceu em matéria de igualdade de gênero, para que a linguagem adotada fique clara e não haja retrocesso.
> A criação de um espaço com especialistas mulheres que ofereçam informações, dados e argumentos sem conflito de interesse para a orientação das ações de política pública com base em evidências. Os dados devem ir além do óbvio, já que os sistemas de informação atuais são androcêntricos e sexistas, contendo poucas variáveis de gênero. Deve haver dados qualitativos e esquemas de análise mais amplos, que ponham em evidência o processo alimentar e o trabalho de cuidadoras. As mulheres não são apenas números.
Os Estados têm nas mãos a oportunidade única de reconhecer a realidade daquelas que alimentam e cuidam do mundo. Temos a oportunidade de contribuir, redistribuir e fazer justiça alimentar. Para tanto, os Estados devem escutar de forma aberta e inclusiva. Sem isso, não há como mudar a história. Manteremos a fome e a desnutrição da maioria das pessoas do planeta – as mulheres.
Em função de tudo isto, o Grupo de Trabalho de Mulheres e Diversidade de Gênero do MSCPI publicou uma declaração sobre o processo e está recolhendo assinaturas de indivíduos e organizações.
Cada forma de discriminação e injustiça nos impede de realizar nosso direito humano à alimentação e nutrição adequadas!
Paola Romero Niño integra o Grupo de Trabalho de Mulheres e Diversidade de Gênero do MSCPI. É coordenadora de projetos e da linha de direitos humanos das mulheres e gênero da FIAN Colômbia. Este artigo foi escrito com o apoio da Secretaria da MSCPI.