A desigualdade de gênero se expressa de forma muito evidente nas discriminações e na opressão econômica que as mulheres vivenciam ao redor do mundo. A feminização da pobreza é evidente em todas as sociedades, mas é ainda mais cruel nas regiões e nos países empobrecidos do nosso planeta. Apesar de seu projeto de autodeterminação, a Venezuela ainda não conseguiu escapar dessa realidade.
Em um levantamento realizado ao longo de 2020 por um grupo de pesquisadoras acadêmicas, 75% das mulheres responderam que suas atividades produtivas foram afetadas durante a pandemia, principalmente em termos econômicos (26%), com destaque para a insuficiência de renda em função da inflação e do aumento diário dos preços. Também foi citado o impacto das restrições de mobilidade e de realização de atividades presenciais, aspectos próprios do confinamento (19%).
A pesquisa “Mulheres vivendo a pandemia na Venezuela” aconteceu com comprometimento e vínculo direto à prática dos movimentos de mulheres. O grupo de pesquisadoras foi composto por feministas militantes que também são professoras universitárias. Fizeram parte da pesquisa a Universidade Central, Universidade Bolivariana, Universidade de Carabobo e o Instituto de Pesquisas Científicas – centros de estudos vinculados ao Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) – e os coletivos A Aranha Feminista e Mulher e Saúde do estado de Aragua. A coleta de dados foi realizada virtualmente durante 2020 e encerrada ao final de janeiro de 2021. A divulgação dos questionários on-line foi feita graças às redes de mulheres presentes em todo o país. Assim, foram obtidos 530 questionários completos, com respostas de todas as regiões.
Trabalho, renda e o poder do dólar
Oito em cada dez mulheres que participaram da pesquisa afirmaram que suas atividades produtivas não são suficientes para cobrir os gastos familiares. Por isso, muitas acumulam mais de um trabalho para obter outras fontes de renda. Entre as mulheres que trabalham por conta própria (que realizam atividades produtivas de forma independente ou em iniciativas comunitárias populares), 66% afirmaram ter renda insuficiente. Entre essas, 21% atribuem a falta de renda à inflação e à dolarização da economia e 15% às dificuldades de mobilidade ou de tempo relacionadas ao confinamento. A desvalorização dos salários e da renda perante a inflação constante constitui a principal dificuldade sentida pelas mulheres e tem se intensificado com as restrições causadas pela pandemia.
Desde 2015, o país tem vivido uma desvalorização e pulverização dos salários e da renda da maioria dos trabalhadores, em um nível que impede a sustentabilidade da vida. E essa situação tem se agravado do último ano para cá em função da pandemia. O salário mínimo, estabelecido por decreto pelo governo como valor de referência para a remuneração de todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores, atualmente está fixado em 10 milhões de bolívares mensais, o que equivale a 3,20 dólares. Essa é a quantia que a maioria da população recebe e que é utilizada como base em todas as faixas de remuneração.
A desvalorização constante da moeda venezuelana e a “dolarização” informal de insumos e alimentos têm gerado uma política salarial restritiva, apoiada em uma suposta necessidade de aumentar a produção para, então, aumentar a remuneração do trabalho. A dolarização consiste em fixar, aos poucos, os preços dos produtos básicos e de outros itens, seja em dólares ou em bolívares, tendo como referência a cotação do dólar. Até nos mercados populares vegetais, carnes, ovos e outros alimentos são vendidos em dólares.
Embora esse tema ainda esteja em discussão, a orientação política que tem predominado coloca a necessidade de se apoiar nos investimentos de capitais estrangeiros, principalmente de Rússia, China e Irã, o que permitiria à Venezuela se situar em zonas econômicas especiais. A partir disso, há a expectativa de uma reativação e possíveis ajustes salariais, o que, evidentemente, exige mais tempo para se colocar como horizonte.
As trabalhadoras dos órgãos públicos e as da área da saúde recebem uma remuneração baseada no salário mínimo nacional estabelecido pelo governo. Por isso, entre as trabalhadoras que estão no trabalho formal, são elas que afirmam não obter renda suficiente. Por outro lado, as trabalhadoras por conta própria têm dificuldades de expor e vender seus produtos pela falta de renda dos possíveis consumidores e consumidoras.
Só 25% das participantes da pesquisa trabalham de forma virtual, enfrentando também a precariedade dos serviços de luz e internet. Os serviços de internet são oferecidos pela Companhia Anônima Nacional de Telefonia da Venezuela (CANTV), empresa pública com pouca cobertura nacional e que ainda apresenta muitas falhas de serviço. Nos últimos dois anos, surgiram diversas empresas privadas que prestam serviços de internet, mas todas cobram os pacotes em dólar, com valor mínimo mensal de 20 dólares, algo incompatível com o modo de vida do povo venezuelano.
Acesso à alimentação
A alimentação é um setor historicamente fragilizado na Venezuela, porque a economia do país sempre esteve voltada para o petróleo, levando grande parte da população camponesa a abandonar suas atividades tradicionais. Apesar das frequentes políticas para fomentar a produção agrícola nos últimos anos, os resultados têm sido insuficientes.
Além da dificuldade de incentivar e manter as pessoas na agricultura, a política alimentar baseada na importação impede uma mudança na lógica de produção e consumo. A maioria dos produtos que passam pelos Conselhos Populares de Alimentação e Produção (CLAP), que distribuem uma caixa de alimentos subsidiada pelo Estado, não vem da produção nacional, e as taxas de importação de alimentos foram eliminadas. Por outro lado, a chegada de produtos agrícolas nas cidades é muito difícil, tanto pela escassez de gasolina quanto pelo nível de controle da organização e estrutura de distribuição. Tudo isso encarece as compras básicas de uma família. Em maio deste ano, o custo de uma cesta básica mensal para uma família de quatro pessoas estava estimado em 296 dólares.
Entre as mulheres que participaram da pesquisa, 48% responderam que a alimentação piorou durante a pandemia, 54% afirmaram conhecer alguma família que está passando fome e 25% apontaram que o acesso à alimentação é uma das principais dificuldades enfrentadas hoje. Esses números, que já são altos por si só, precisam ser cruzados ainda com as dificuldades de acesso a serviços básicos necessários para obter e preparar alimentos. Nesse sentido, destacam-se a falta de acesso a gás, relatada por 36% das entrevistadas, e a escassez de água e eletricidade, apontada por 30% das participantes do levantamento. Cabe também acrescentar as dificuldades relacionadas ao transporte, que, entre falta de acesso a combustível e transporte público, afetaram 43% das mulheres consultadas.
“Como você se sente durante a quarentena?”
Nas respostas a essa pergunta, a palavra que mais apareceu foi “sobrecarregada”. Com menos frequência, apareceram: “nervosa”, “resignada”, “triste”, “com medo”. Entre as entrevistadas, 80% confirmaram o significativo aumento do trabalho doméstico e de cuidados, principalmente dos cuidados das crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. Esse trabalho se dá em condições precárias no confinamento.
Diante dessa realidade, temos debatido e colocado em ação uma agenda de luta feminista e trabalhadora. Faz parte dessa agenda a recuperação dos salários, o que permitirá reativar a economia em geral. Acreditamos que é fundamental apoiar as iniciativas produtivas populares, não só por meio de crédito, mas também com compras feitas pelo governo para que a própria população da Venezuela possa consumir o que é produzido pelo povo. É urgente melhorar os serviços públicos para sustentar, realmente, as iniciativas produtivas.
Alba Carosio faz parte da rede A Aranha Feminista [La Araña Feminista], uma articulação de movimentos sociais autônomos feministas da Venezuela criada em 2010. É pesquisadora e professora e integra o Centro de Estudos da Mulher da Universidade Central da Venezuela. Coordena o Grupo de Trabalho Feminismos, Resistências e Emancipação do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO).