A narrativa histórica em torno do abolicionismo está profundamente conectada à luta contra a economia de plantation. Como sabemos a partir de feministas negras, marxistas, materialistas e radicais, o papel das mulheres negras era crucial para essa economia de plantation, de uma forma que conversas mais convencionais sobre o trabalho reprodutivo não conseguem captar. A violência sexualizada era um princípio crucial daquele sistema, e as mulheres negras atuavam como força de trabalho nos campos, além de serem forçadas a reproduzir novos escravizados.
A história do movimento é muito mais longa do que apenas a questão da prisão, da polícia ou da fronteira. Este foi um dos primeiros movimentos internacionais modernos, já que o comércio de pessoas escravizadas foi um fenômeno global. Por isso, vemos projetos abolicionistas no Haiti, nos quilombos do Brasil, na Jamaica — ou nas revoltas de pessoas escravizadas nos Estados Unidos e no Canadá. Há muitos exemplos de como as pessoas lidaram com conflitos sociais sem reproduzir a violência da economia de plantation. Como a violência carcerária atinge cada vez mais setores das populações pobres e racializadas, ela sempre foi, historicamente, parte do feminismo negro e radical do chamado Terceiro Mundo.
Isso significa que, para lutar contra esse sistema como um todo, o abolicionismo é um projeto com duas frentes. Ela não diz respeito apenas à destruição do sistema, mas também à reconstrução ou à construção da vida que queremos. Trata-se de reinventar novas formas de relação.
Desde meados do século XX, o Estado carcerário tem crescido de maneira desenfreada. Essa passou a ser a forma como o Estado lida com os chamados problemas sociais. Assim, em um período de empobrecimento em massa, vimos a exclusão do Estado de bem-estar social e uma enorme expansão do Estado carcerário. Vemos isso nos orçamentos, e vemos isso nos números. Nos Estados Unidos, por exemplo, de 1990 a 2019, a população carcerária feminina cresceu mais de 650%. É a população que mais cresce.No Reino Unido, a população carcerária feminina cresceu mais de 50%. Na Nigéria, a população carcerária feminina aumentou 70% nos últimos 20 anos. Então, embora saibamos que mulheres e pessoas não binárias não são o alvo principal da violência policial, elas são um alvo cada vez maior.
Diversos criminologistas liberais de esquerda já reconhecem, com base em pesquisas, que o sistema prisional não funciona. Isso significa que ele não reduz os danos. Nas últimas décadas, vimos um aumento das punições, e os problemas sobre que estamos discutindo não diminuíram. Portanto, isso por si só, acredito eu, já é um argumento empírico de por que precisamos de alternativas. Atrelado a isso, há o componente político, que demonstra, com base na função da polícia e das prisões em uma sociedade capitalista, que o objetivo principal é a criminalização da população pobre e a securitização da ordem da propriedade — sempre articuladas à violência racial e de gênero.
Considerando que esse tem sido o papel dessas instituições há séculos, sabemos que não é realmente possível alcançar justiça por meio delas. Ao mesmo tempo, a pergunta difícil é: quais são as soluções alternativas?
Abordagens feministas
Diante dessa nova expansão do sistema carcerário, existe uma contribuição específica que o feminismo abolicionista traz. Primeiramente, a intervenção da resistência crítica, que há mais de 20 anos chamou um encontro com organizações de justiça social para desenvolver, nas palavras do movimento, “estratégias e análises que enfrentem tanto a violência estatal quanto a violência interpessoal”. Mulheres racializadas e pessoas não binárias vivenciam ambas. Por exemplo, às vezes, ao se defenderem de violências domésticas e raciais, acabam também presas. A maioria dessas mulheres negras, pobres e racializadas nos Estados Unidos está na prisão por questões ligadas à pobreza ou porque reagiram contra agressores sexuais. Para essas mulheres, o Estado não representa proteção — na verdade, ele ataca suas comunidades. O plano era lutar contra a violência estatal e, ao mesmo tempo, enfrentar a violência dentro de nossas comunidades.

Elas propuseram o desenvolvimento de algo diferente das soluções feministas liberais e burguesas, que partem de uma noção individualizada da violência. Uma dessas alternativas é o método de responsabilização comunitária, que trata o conflito ou a violência interpessoal não apenas como um fenômeno individual. Quando algo acontece, a comunidade é ativada. Isso inclui responsabilidade coletiva baseada na educação, para envolver a comunidade em questões ligadas à violência doméstica e sexualizada. Também envolve a justiça restaurativa, uma forma de justiça que não se concentra na punição, mas nas necessidades reais da pessoa que sofreu o dano — desde a cura até infraestrutura ou acesso a recursos.
Outro método é o da prevenção e apoio. Trata-se de fazer um trabalho preventivo, mas também reconstruir estruturas de apoio, como infraestrutura, cuidados com as crianças, apoio psicossocial e financeiro. Existem também alternativas não carcerárias. Pessoas que cometeram violências — os agressores — também precisam fazer parte do processo para que possam mudar seu comportamento. E esse é um trabalho difícil.
Mas muitas mulheres e pessoas não binárias que foram severamente criminalizadas sabem que isso é possível — porque sabemos que a violência é, muitas vezes, um ciclo. É por isso que, na política abolicionista, não falamos apenas de vítimas e agressores. Porque sabemos que muitos agressores também foram vítimas — de violência doméstica, estatal ou estrutural. Se queremos chegar à raiz da violência, precisamos desenvolver métodos para romper esse ciclo.
Outro método relacionado à responsabilização comunitária é a justiça transformadora, que tem como alvo as estruturas que permitem que a violência aconteça. Por exemplo, falta de cuidados de saúde e habitação, pobreza e criminalização. A justiça transformadora afirma: “precisamos fazer o trabalho de cura e de construção de alternativas não carcerárias dentro de nossas comunidades. Mas, ao mesmo tempo, precisamos lutar por mais moradia, educação progressista, cuidados de saúde e menos violência estatal em nossas comunidades”.
Caminhos para a transformação
Em 2020, falou-se muito sobre abolir a polícia, abolir as prisões — o que, eu acredito, é necessário. Mas nossos problemas não serão resolvidos apenas com a abolição dos instrumentos desse sistema. Porque ele encontrará novos métodos de violência. É por isso que precisamos pensar em como até mesmo a abolição da polícia ou das prisões precisa fazer parte de um processo mais amplo, que transforme essa questão em uma luta interseccional e de classe.
Esse trabalho tem sido feito por muitos coletivos e redes abolicionistas. A política abolicionista cresce por meio da ação coletiva. Isso também é uma forma de esperança. Em relação à luta contra a economia de plantation, existiam pessoas que acreditavam no abolicionismo das plantation — e outras que não acreditavam. Talvez algumas até tenham perdido a esperança de que isso acabaria. Mas a força está em continuar em movimento. E acho que é isso que as abolicionistas — e, especificamente, as feministas abolicionistas — precisam fazer.

Esta é uma edição do discurso de Vanessa Thompson durante o debate “A Luta feminista para enfrentar as violências racistas e patriarcais do Estado”, realizado no dia 31 de março, em São Paulo, na Sempreviva Organização Feminista (SOF), uma organização brasileira que integra a Marcha Mundial das Mulheres.