Nadezhda Krupskaya: A religião e a mulher

17/10/2022 |

Por Nadezhda Krupskaya

Conheça a reflexão da revolucionária russa sobre o papel da arte na conscientização e construção permanente de uma nova sociedade.

Em outubro lembramos a revolução russa de 1917. Durante a década que antecedeu a revolução, e nos anos que a consolidaram, a organização e mobilização das mulheres russas foi intensa e, até hoje são inspiradoras para o feminismo socialista. As mulheres revolucionárias inauguraram possibilidades de emancipação, enfrentando questões como maternidade, trabalho doméstico, prostituição, igualdade como parte das transformações incontornáveis de uma revolução da classe trabalhadora.

Nadezhda Krupskaya (1869-1939) foi uma revolucionária dedicada a muitas frentes de atuação. Envolveu-se na organização de trabalhadoras e trabalhadores de uma fábrica de construção; escreveu textos feministas denunciando a opressão das mulheres trabalhadoras e contribuiu para sua mobilização – por exemplo, em 1910, no dia internacional de luta das mulheres; atuou durante anos na alfabetização de pessoas operárias e contribuiu para as formulações de uma pedagogia socialista e emancipatória. Krupskaya integrou o Comitê Central do Partido Comunista e assumiu diferentes tarefas ao longo de sua trajetória. Diante dos retrocessos impostos às mulheres na década de 1930, como a dissolução da seção feminina do Partido e a restrição do aborto, a revolucionária manifestou críticas contundentes, sempre comprometida com uma sociedade baseada na igualdade real.

Para lembrar a revolução de outubro, Capire publica o texto “A religião e a mulher”, escrito em 1927. Nele, encontramos a atenção dedicada por Krupskaya aos desafios da organização e conscientização da classe trabalhadora, à necessidade de escuta e diálogo sobre os anseios e necessidades do povo, à dimensão subjetiva extremamente conectada com as condições materiais de vida das mulheres e ao papel da arte na transformação social. Mais do que uma crítica à religião, o texto de Krupskaya coloca o foco nas estratégias e práticas revolucionárias para a construção permanente de uma nova sociedade.

A religião e a mulher (1927)

Não se pode fechar os olhos para o fato de que o sentimento religioso ainda é forte e o movimento das seitas está crescendo. Infelizmente, nós nem sempre prestamos a devida atenção a esse fenômeno.

Os popes (sacerdotes da igreja ortodoxa russa) aprenderam a agir de forma mais sutil. Não dizem uma palavra contra o poder soviético, seguem sua abordagem de maneira cautelosa.

Dizem que no distrito de Velikolutski, na província de Pskov, as freiras estabeleceram um círculo agrícola, e não falta trabalho: ganharam o primeiro lugar na exposição rural. Abriram um espaço vermelho e realizam o trabalho lá. Tudo com orações. Os poloneses (que vivem em regiões fronteiriças) se surpreenderam com o padre: ele organizou um círculo agronômico com quarenta camponeses chefiados por um pequeno produtor. No distrito de Sergatchski, na província de Níjni Nóvgorod, onde há muitos tártaros, o mulá anunciou: “Somos pelo poder soviético. Este proclamou a igualdade entre homens e mulheres, é preciso fazer uma correção ao Corão e abrir a porta das mesquitas não apenas para os muçulmanos, mas também para as muçulmanas”. Assim foi feito, as mulheres tártaras encheram as mesquitas. Nosso clero, desacostumado com métodos sutis de influência sobre seu rebanho, está conseguindo se adaptar a algo tão simples. No vilarejo Bogoródsk, na região de Pávlovski, na província de Níjni Nóvgorod, onde vivem peleiros que amam os cânticos religiosos, o clero quebrou a cabeça: “O que fazer? Os cidadãos estão pouco assíduos na igreja”. Enfim, tiveram uma ideia: convidaram um cantor de ópera de Moscou para se apresentar na igreja e atraíram quase toda a população local.

Certa vez, a floresta de Kiérjenets, que hoje é parte da província de Níjni Nóvgorod, serviu de abrigo para velhos crentes, e suas celas eram ricas (não foi pouco o dinheiro que os comerciantes do Volga doaram para eles). A classe em que se apoiavam os velhos crentes se desintegrou, está morta, e eles desapareceram, mas seus restos ainda se espalham por Níjni Nóvgorod.

No vilarejo Tchernukha, na região de Arzamas, na mesma província, além do pope, há sete seitas. No décimo ano da revolução, elas dormem em caixões! Também em outras regiões ocorre o renascimento das seitas: evangélicos, batistas. Mas não precisamos ir longe em busca de exemplos: em Moscou, os tecelões da “Rosa Vermelha1 frequentam seitas evangélicas. É preciso que estudemos a sério todas as formas do sectarismo contemporâneo. Já se foi o tempo em que a simples proibição surtia efeito, expulsava as congregações sectárias. Agora todos têm consciência de que é preciso seguir por um caminho que talvez seja mais difícil, mas muito mais eficaz.

Antes de tudo é preciso estudar com cuidado a necessidade que faz surgir o sentimento religioso, avaliar as raízes da religiosidade contemporânea.

Especialmente aguda para muitas pessoas é a necessidade de compreender a vida circundante, de interligar entre si os diferentes fenômenos, de elaborar para si alguma visão de mundo integral, que sirva de guia para a ação.

Vladímir Ilítch escreveu sobre a importância de educar constantemente a massa sobre a visão de mundo revolucionária e, assim, prepará-la para a ação revolucionária. Uma coisa está ligada à outra de modo indissolúvel, uma alimenta a outra. E o momento que estamos vivendo é exatamente o mais significativo do ponto de vista da propaganda da visão de mundo revolucionária. De fato, apenas o comunismo pode dar uma resposta mais completa e científica para os anseios que agora surgem em muitas e muitas pessoas.

O solo para a propaganda é rico. Mas com frequência ocorre de propagandistas inexperientes reduzirem a divulgação do comunismo à agitação, à enumeração de eventos, a determinações; tentam não deixar escapar nada e se esquecem do mais importante: revelar a conexão entre os fenômenos, mostrar, como se diz, “o que é o quê”. A propaganda não basta – ela torna indiferente aquilo que é divulgado. É preciso que os propagandistas ouçam com extrema atenção as demandas da população e realizem a propaganda marxista da visão de mundo revolucionária da forma mais plena e concreta possível.

Em relação às mulheres operárias e camponesas, a questão é ainda mais pungente. É preciso apresentar-lhes a visão de mundo marxista da forma mais simples e compreensível.

Aqui a arte tem um papel especial. Disso, mais uma vez observo, a Igreja católica, por exemplo, sabe perfeitamente: belos cânticos, estátuas, flores, encenações, tudo isso encanta os católicos e, em particular, as católicas. No que se refere à influência sobre a massa com o auxílio da arte, os padres são grandes mestres. A arte religiosa é uma arte de massa, frequentemente a única a que o povo tem acesso. Não é preciso pagar para entrar na Igreja católica. A nossa igreja copiou muito do catolicismo. As igrejas são enfeitadas com ícones, os cânticos atraem de maneira especial.

A camponesa, que de manhã até a noite tem seu pensamento acorrentado à vida doméstica, aos infinitos afazeres de casa, fica feliz por poder, ao menos no domingo, ter a oportunidade de ouvir um cântico, ver imagens adornadas. A igreja oferece a ela algo que, depois dos enfadonhos dias de trabalho, a cativa fortemente. Agora sabemos bem o que leva a arte à igreja.

Eis que no distrito de Velikolutski, na província de Pskov, no Sábado de Aleluia, trouxeram um cinema itinerante ao vilarejo. O povo foi em massa assistir ao filme, a igreja ficou deserta. Quando a sessão acabou, a mesma multidão, em toda sua composição, seguiu para a igreja para acompanhar a bênção do bolo de Páscoa. O que fez com que fossem para a igreja? O sentimento religioso? Não, a necessidade do espetáculo.

Nossa arte ainda não se tornou popular, não se tornou acessível para as massas, como é a arte religiosa. E o Komsomol [abreviação de breviação de “kommnistítcheski soiuz molodiôji”, que designa a União da Juventude Comunista] está correto quando dá atenção especial a esse assunto. Está absolutamente certo quando organiza concursos de acordeonistas, quando consegue que toquem no acordeão – um instrumento próximo do campo – belas canções, canções da revolução.

A massa precisa da música, ela precisa da arte. Nossa arte ainda não chegou aqui embaixo, ela ainda voa pelos céus. E apenas isso poderá suplantar a arte religiosa.

Mas ainda é preciso prestar atenção em um aspecto. A arte encanta principalmente quando a pessoa é mais do que um simples espectador ou ouvinte, ou seja, quando ela mesma participa da ação de massa.

Na Igreja católica, os fiéis cantam em coro; na nossa, fazem o sinal da cruz, reverenciam, caem de joelhos, arrastam-se para baixo dos ícones, participam de procissões – em uma palavra, unem-se em uma ação de massa. Em essência, o ímpeto para a atividade de massa é saudável. E é preciso ir ao seu encontro. É preciso organizar coros, fazer com que todo o campo cante belas e excelentes canções. É preciso promover passeatas, fazê-las de tal forma que não sejam apenas marchas, mas ações de massa.

Os carnavais, os passeios da máslenitsa [celebração que anuncia o fim do inverno e o início da primavera] não seriam outra coisa senão ações de massa.

É preciso organizar carnavais comunistas e trazer para eles todas as mulheres operárias e camponesas. A arte tem um enorme papel organizador.

E justamente agora, quando o ímpeto em direção ao contato, ao coletivismo, está crescendo, é especialmente importante dar às massas a possibilidade de satisfazer essa ânsia de forma racional.

Antes de tudo, é preciso aprender a associar com inteligência trabalho prático e propaganda das próprias ideias.

Ao organizarem círculos agrícolas, as freiras e os padres associaram o trabalho à propaganda religiosa e à agitação. É preciso que nós também associemos nosso trabalho prático (círculos agrícolas, cooperativas, círculos técnicos etc.) à nossa visão de mundo, que impregnemos todo o trabalho de espírito comunista. Será que sabemos fazer isso? Muito mal. Precisamos estudar esse assunto com afinco.

No entanto, alguma coisa já aprendemos. Escrevi sobre um círculo agronômico chefiado por um pequeno produtor que foi organizado por um padre. Os educadores políticos desse vilarejo conseguiram que o pequeno produtor fosse escolhido no conselho local e, depois, que as sessões do conselho fossem marcadas para o domingo, no horário da missa. Uma vez que o grupo decidia sobre questões como a do imposto agrícola do vilarejo, que interessavam ao pequeno produtor, ele passou a frequentar assiduamente a reunião e deixou de ir à igreja. O padre o excluiu do círculo, e com ele saíram outros seis pequenos produtores que organizaram sua própria iniciativa no liceu-isbá2. Eles conseguiram que a direção do grupo coubesse a um agrônomo. O círculo do liceu-isbá começou a crescer, enquanto o do padre foi se desfazendo e, aos poucos, desapareceu.

A luta pela influência sobre a juventude e sobre as mulheres começou a ganhar novas formas. É preciso que nos organizemos para esse embate, que nos armemos de nossa visão de mundo revolucionária e marxista-leninista.

E isso será feito!

Texto publicado em “A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética”, coletânea organizada por Graziela Schneider (Boitempo, 2017). Fonte: Религия и женщина [A religião e a mulher], em Antireliguióznik/Антирелигиозник [Antirreligioso], Moscou, n. 2, 1927.

  1. Grupo industrial moscovita de produção de seda, nomeado em homenagem à revolucionária Rosa Luxemburgo. []
  2. Centro educacional rural da URSS. Surgiu ainda no Império, mas foi significativamente ampliado nos anos 1920 durante o projeto de erradicação do analfabetismo []

Introdução por Tica Moreno
Tradução do russo ao português por Priscila Marques.

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