Mulheres na linha de frente pelo direito à terra no Marrocos

05/05/2021 |

Por Marcha Mundial das Mulheres do Oriente Médio e Norte da África

Diante da brutalidade do capital, as mulheres defendem a terra e as comunidades no interior do Marrocos. Texto também disponível em árabe.

Sairat Journal

São muitos os riscos e ataques enfrentados pelos defensores e defensoras pelo direito à terra, assim denominados pelo Observatório Internacional para a Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos em seu relatório anual de 2014. A intensificação de conflitos é uma realidade em muitos países do mundo, fazendo crescer dramaticamente o número de pessoas, grupos e populações que sofrem violações de direitos humanos. Isso resulta, especificamente, de atividades de grandes investimentos e megaprojetos executados por empresas extrativistas, agroindústrias e imobiliárias de fachada. Todas elas contam, muitas vezes, com o apoio de autoridades poderosas em suas ações contra a população, expulsando, de forma direta ou indireta, os legítimos moradores de suas terras.  

As mulheres são consideradas o grupo mais afetado pela violação do direito à posse da terra. As empresas com forte poder econômico tomam as terras, frequentemente sustentadas por um poder político. Para isso, apoiam-se no sistema de uma sociedade patriarcal para roubar, das mulheres, o direito da posse de terra. Além disso, apoiam-se em leis discriminatórias, baseadas em normas tradicionais e injustas, para justificar seu prevalecimento sobre o direito das mulheres.

O direito à propriedade privada não é apenas um direito civil, mas uma garantia de acesso essencial à terra para a produção de alimentos e obtenção de renda. Além disso, é “um dos pilares sociais e econômicos que garante a manutenção da identidade cultural, do poder político e da participação na tomada de decisões locais e nacionais”. De acordo com o Programa Alimentar Nacional, as mulheres se deparam com muitas dificuldades jurídicas, econômicas e socioculturais que persistem e impossibilitam o acesso à terra e a outros recursos produtivos. Também observa-se que, em muitos países onde as camponesas ocupam um lugar de destaque, a terra passa a ser a principal fonte de renda e um setor de trabalho valorizado, o que faz com que a propriedade da terra esteja diretamente ligada ao poder. 

O status socioeconômico e político passa a ser inferior quando as mulheres não desfrutam dos mesmos direitos de propriedade tal como os homens. O acesso ao direito à terra dá autonomia às mulheres e faz com que suas vozes sejam ouvidas em diversas áreas do mundo rural, permitindo sua participação nas decisões no âmbito familiar e na própria comunidade.

No Marrocos, as mulheres travam batalhas pelo direito à terra. Em meio a todas as questões envolvidas nessas batalhas, encontramos em diferentes regiões as lutas das mulheres Soulaliyat. São mulheres de comunidades tradicionais que vivem em regiões vastas, onde a posse da terra é coletiva e compartilhada. Entretanto, as autoridades passaram a titulação aos homens dessas comunidades, excluindo as mulheres do direito à propriedade, com o objetivo político de abrir caminho para a apropriação da terra por empresas que, por sua vez, explorariam o empobrecimento das famílias para adquirir a propriedade dessas terras.

Como explica o relatório do Observatório Internacional para a Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos, as mulheres Soulaliyat estão expostas a uma série de violações e ataques. Elas correm o risco de ser presas, torturadas, julgadas injustamente, ameaçadas e agredidas fisicamente por um plano de desenraizamento e enfraquecimento da luta pelo direito à terra.

Uma das ativistas conhecidas entre o grupo de mulheres de Soulaliyat em Salé (cidade do noroeste do Marrocos) diz que “nós somos pessoas simples, mas estamos enfrentando um homem mais poderoso”. Isto é, o dono de uma das empresas imobiliárias mais poderosas do país, que saqueou e apreendeu, com o apoio das autoridades, as terras de seu povoado. O poder público, por sua vez, confronta a comunidade oprimindo-a com coerções e privações arbitrárias até mesmo dos direitos civis mais básicos. Exercer esses direitos, incluindo o de constituir uma associação que represente a comunidade, é uma forma de luta contra essa empresa.

O sistema de aquisição de “terras comunais” é considerado um dos mais antigos no Marrocos, e se baseia em uma combinação de tradições comunitárias, referências islâmicas e o direito moderno. Esse estatuto jurídico particular gerou um verdadeiro terror contra as mulheres que viviam nessas terras, mulheres Soulaliyat. Elas são deixadas de lado, sem poder usufruir o direito pleno de uso de suas terras… quando há desapropriação coletiva para fins de benefício público, é negada a indenização a elas. Porém, na maioria dos casos, as mulheres Soulaliyat se deparam com empresas privadas e, por vezes, com personalidades poderosas que se utilizam de sua proximidade com os centros de poder para tomar as terras delas.

A Marcha Mundial das Mulheres é um movimento global de luta feminista  que combate diferentes formas de opressão, exploração, discriminação e escravidão às quais as mulheres são submetidas. O direito à terra é uma das áreas de ação para enfrentar a exclusão, a discriminação e a pobreza. O sistema patriarcal é um sistema que se sustenta na opressão das mulheres, e o capitalismo, um sistema de exploração a mando de uma minoria de homens e mulheres. Esses dois sistemas reforçam um ao outro, arraigados e entrelaçados pelo racismo, pela discriminação de gênero e contra diversidades sexuais, misoginia, xenofobia. São apoiados pelo colonialismo e pelo imperialismo, provocando a escravidão e o trabalho forçado, pavimentando o caminho para padrões que impedem a emancipação de mulheres e homens, gerando pobreza e exclusão, violando os direitos humanos e colocando a humanidade em risco.

Para lidar com a questão das mulheres e do direito à terra, é preciso adotar uma metodologia de vinculação entre a situação global e a local, como faz a Marcha Mundial das Mulheres. Ao redor do mundo, as mulheres enfrentam dificuldades e desafios muito parecidos na luta pelo direito à terra. Essas lutas são influenciadas por particularidades das condições políticas, econômicas, sociais e culturais do local em que estão inseridas, que as diferenciam umas da outras. No entanto, as especificidades das circunstâncias locais de luta não devem impedir a utilização dos mecanismos de solidariedade global entre as mulheres, observando o que une e consolida as suas condições. Sobretudo, entre as que enfrentam o sistema patriarcal e capitalista, que depende, para sua continuidade e fortalecimento, da opressão e exploração contra as mulheres, usando as mesmas ferramentas e mecanismos, o mesmo discurso, os mesmos valores retrógrados e reacionários em diferentes regiões do mundo.

Consideramos todas as pessoas e todos os povos iguais nos diferentes setores da sociedade, e por isso deve-se garantir os mesmos direitos e benefícios para o acesso a riqueza, terra, trabalho digno, meios de produção, moradia, formação profissional, justiça, alimentação saudável e adequada, serviços de saúde física e mental, proteção da pessoa idosa, meio ambiente, representação política, energia elétrica, água potável, ar puro, transporte, comunicação, entretenimento, cultura, conforto, avanços científicos e tecnológicos.

Tradição, costume, religião, ideologia, sistema econômico ou político, seja qual for, não devem ser utilizados como justificativa para tratar com inferioridade nem permitir danos à dignidade e integridade física e psicológica de ninguém.


O artigo é de autoria da Marcha Mundial das Mulheres da região MENA  (Oriente Médio e Norte da África) e foi publicado originalmente no Sairat Journal, o blog regional da MMM.

Tradução do árabe por Vitória Trombetta

Revisão por Helena Zelic e Aline Scátola

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