Informe de Miyakojima, Okinawa: uma denúncia ao avanço militar no sul do Japão

10/04/2025 |

Hayako Shimizu

No artigo, ativista japonesa traça um panorama histórico da militarização nas ilhas de Okinawa

Em primeiro lugar, como cidadã japonesa, gostaria de pedir desculpa pelos danos que a geração dos meus pais infligiu ao povo da China continental e da Península Coreana durante a Guerra do Pacífico. Gostaria também de agradecer pelo convite para este fórum sobre o Sul Global e a modernização do mundo.

Venho de Miyakojima, uma pequena ilha com uma população de 55 mil habitantes, localizada a 2 mil quilômetros de Tóquio e 300 quilômetros ao sul de Naha, na ilha de Okinawa. Dessa pequena ilha, podemos ver nitidamente o futuro do Japão. A militarização de Miyakojima simboliza a militarização do Japão.

Batalha de Okinawa

Em 1944 e 1945, durante a Guerra do Pacífico e a Batalha de Okinawa, 30 mil ex-soldados japoneses estavam estacionados em Miyakojima, que tinha uma população de 50 mil habitantes. Isso teria ocorrido porque o Quartel-General Imperial do Exército Japonês assumiu uma batalha terrestre no local. Miyakojima foi reduzida a cinzas por ataques aéreos estadunidenses e britânicos e bombardeiros navais. Muitos civis morreram nesses ataques e ainda mais pessoas foram vitimadas pela fome à medida que os alimentos e os medicamentos acabavam. As pessoas se tornaram pele e ossos; todos os dias, moradores e soldados morriam um após o outro. Um ex-soldado japonês escreveu um tanka [tipo de poema japonês] que diz: “Uma ilha que devora todos os cães, gatos e pássaros e é mantida viva por peixes tropicais”.

Durante a Guerra do Pacífico, a Ilha de Okinawa tornou-se um campo de batalha como um quebra-mar para o continente japonês. 200 mil pessoas morreram e a ilha foi reduzida a terra arrasada. Na guerra seguinte, o mesmo aconteceu com as ilhas ao sul de Okinawa, como Miyako, Yaeyama e Yonaguni. Uma ofensiva militar está sendo preparada para transformar a área em um campo de batalha. As ilhas Ishigaki e Yonaguni, ao sul de Miyakojima, são chamadas de Yaeyama. Desde 1637, durante 3 gerações, os habitantes destas ilhas foram discriminados, oprimidos e despossuídos devido ao severo sistema tributário chamado Nintōzei imposto pela dinastia Ryukyu.

O avanço da expansão militar

Após a derrota na guerra, as forças dos Estados Unidos foram estacionadas em Miyakojima. Em 1972, quando Okinawa foi devolvida ao continente, a colina onde estava localizado o antigo quartel-general militar japonês foi tomada como base de comunicações para as Forças de Autodefesa. Fortalecida, agora é usada como uma das principais bases de radar para a autodefesa aérea do Japão. 

Até a abertura de uma nova base das Forças de Autodefesa Terrestre, em 2019, e a implantação de uma unidade de mísseis no ano seguinte, Miyakojima tinha uma base de comunicações, mas nenhum equipamento militar. Atualmente, cerca de dois mil membros das Forças de Autodefesa estão com suas famílias estacionados lá.

Em 2012, foi anunciado que unidades adicionais de guerra eletrônica serão implantadas e as instalações de armazenamento de munições também foram ampliadas. Há uma expansão das ilhas do arquipélago Ryukyu, de Kyushu à ilha Yonaguni, na fronteira com Taiwan, para se tornarem fortalezas militares de mísseis.

Os preparativos para a guerra tomam forma

Os exercícios conjuntos entre o Japão e os Estados Unidos tornaram-se a norma na região. Foram mais de cem exercícios militares realizados no ano de 2022. As Forças de Autodefesa dizem que estão modificando os tanques para torná-los adequados para as regiões do sul e estão realizando experimentos para coletar dados e simular o que aconteceria caso as ilhas de recifes de coral fossem bombardeadas. Os centros comunitários de Miyakojima receberam “sacos para cadáveres” para abrigar os habitantes.

Além disso, o Ministério da Defesa afirma que irá coletar sangue de 250 mil membros das Forças de Autodefesa e fabricar os seus próprios “estoques sanguíneos para transfusão” para congelar e compartilhar com os militares dos EUA no campo de batalha. Além disso, o plano de transporte de feridos inclui recolhê-los no Hospital de Naha e, depois, distribuí-los para hospitais de todo o país. Isso pressupõe nitidamente que o próximo campo de batalha será ao sul da Ilha de Okinawa.

As Forças de Autodefesa estão expandindo seu controle intangível, penetrando nas vidas, nas tradições culturais e até mesmo na vida íntima da população local.

Visita ao santuário Yasukuni

No dia 9 de janeiro de 2024, um grupo de dezenas de pessoas, incluindo o Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças de Autodefesa Terrestre, visitou o Santuário Yasukuni, dedicado aos criminosos de guerra. No dia seguinte, soube-se que cerca de 20 pessoas, incluindo o comandante da guarda da Guarnição de Miyakojima, visitaram o Santuário de Miyako em veículos oficiais. Isso viola a Constituição Japonesa, que consagra o princípio da separação entre Igreja e Estado, e também viola uma normativa do Ministério da Defesa. É, portanto, um ato que viola a política nacional de controle civil do Japão.

Memorial “Black Hawk Brave”

Em abril de 2023, o helicóptero utilitário GSDF UH60JA (vulgarmente conhecido como Black Hawk) caiu na costa de Miyakojima, matando todas as dez pessoas a bordo, incluindo os executivos da 8ª Divisão e o comandante da guarnição de Miyakojima. Durante seis dias, um memorial (cenotáfio) com a inscrição “Black Hawk Brave” foi colocado em Utaki, um local de oração para os residentes de Okinawa que estavam presos na base da Ilha Miyako.

Descrever as vítimas de acidentes como “bravas” é o mesmo que glorificar a guerra, chamando as vítimas de guerra de “espíritos heróicos”. Além disso, colocar tal memorial perto do “Utaki”, que é usado para evitar a morte, é um ato que demonstra nenhuma compreensão da cultura espiritual de Okinawa.

Alusões àGrande Guerra do Leste Asiático” e ao repouso de espíritos heroicos

Em abril de 2024, circulou o relato de que um oficial do 32º Regimento Ordinário das Forças de Autodefesa Terrestre da cidade de Saitama se referiu a uma “Grande Guerra do Leste Asiático” e ao “repouso dos espíritos heroicos”. Após a guerra, o governo não utilizou esse nome em documentos oficiais para se referir à Guerra do Pacífico. O antigo exército japonês forçou o povo a lutar como o “Exército do Imperador” e usou as vítimas como “espíritos heróicos”, como ferramentas para glorificar a guerra. A intenção atual é reviver aquela atmosfera pré-guerra como um “fantasma”.

Bandeira do sol nascente e emblema de crisântemo para celebrações da maioridade

Em janeiro, celebrações de maioridade foram realizadas em várias regiões da cidade de Miyakojima, e fotos de grupos de cada região foram publicadas na capa do jornal das cidades. Para minha surpresa, nas fotos do grupo da área onde a base ficava localizada, atrás do grupo de jovens que completaram a maioridade, estava a antiga “Bandeira do Sol Nascente” da Marinha e até mesmo o emblema do crisântemo do sistema imperial. Esse também é um “fantasma do pré-guerra”.

Forças de Autodefesa “invadem” a cultura tradicional de Okinawa

Em junho de 2024, eventos tradicionais são realizados em várias partes de Okinawa para pedir por viagens seguras e boa pesca, sendo a corrida de barcos Harley o principal evento. Na Ilha de Ishigaki, a participação dos membros das Forças de Autodefesa na Harley foi anunciada como “dever oficial” e parte do “treinamento de remo” e “treinamento de mar”. Ao ouvir isso, emitimos uma declaração de protesto. Abaixo está a parte final: “Mesmo na Ilha Miyako, à medida que as funções da base estão sendo reforçadas e os armamentos militares estão em expansão, há uma tendência de que as Forças de Autodefesa sejam assimiladas e integradas com os antigos militares japoneses, em uma atmosfera que lembra o sistema de mobilização geral pré-guerra. Nos opomos a que eles sejam incorporados na vida da população.”

Na mesma época, o site da 15ª Brigada na cidade de Naha postou um poema de despedida do Tenente General Ushijima, ex-comandante do 32º Exército do Exército Japonês, que decidiu “retirar-se para o sul” durante a Batalha de Okinawa, a qual resultou na morte de muitos okinawanos. Além disso, o site estampou a frase “a erva verde da ilha, que murcha no outono, será revivida na primavera do império”, que reflete a visão imperial da história e a esperança na restauração do sistema imperial. Graças a muitas vozes de protesto dos residentes de Okinawa, esse conteúdo foi recentemente removido do site.

Rejeitar a colonização militar de ilhas

No Japão, enormes quantias de fundos nacionais são gastas em despesas militares. A vida da maioria das pessoas está piorando, com cada vez mais empobrecimento. Juntamente com atos para barrar a expansão de armas e arsenais de guerra, devemos tomar medidas para impedir que a atmosfera das vésperas da próxima guerra invada as nossas vidas como um fantasma. Estamos envolvidos numa luta não violenta de desobediência.

Nós, habitantes das ilhas, não permitiremos que as nossas ilhas se tornem uma “Gaza sobre o mar”, uma terra rodeada por uma muralha chamada oceano.

Nos recusamos a ser sacrificados por grandes potências ou a ser transformados em colônias militares do Japão e dos Estados Unidos.

Por fim

A questão do Sul Global é também uma questão de desigualdade e pobreza entre o Norte e o Sul. Norte e Sul do mundo, Norte e Sul do Japão. Okinawa corresponde ao sul dos dois, e a remota Miyakojima, que é literalmente o sul de Okinawa, tornou-se a “ilha danificada”  da guerra. Também nos recusamos a nos tornar uma ilha de perpetradores. Devemos construir a força da solidariedade internacional pela paz e continuar a luta em solidariedade para acabar com a guerra!


Hayako Shimizu integra o Comitê de Ligação com Residentes de Miyakojima – “Não São Necessárias Bases de Mísseis”, de Okinawa, Japão.

Edição por Tica Moreno e Helena Zelic
Revisão da tradução por Sarah Longato

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