Guerras e imperialismo nas Américas: uma crítica feminista aos 200 anos da Doutrina Monroe

07/06/2023 |

Por Marcha Mundial das Mulheres

O documento da Marcha Mundial das Mulheres e da ALBA Movimentos discute o imperialismo e seu papel nos conflitos armados na região

No último 24 de abril de 2023, no marco do Dia de Solidariedade Feminista e Ação contra as Transnacionais, a Marcha Mundial das Mulheres da região Américas e a ALBA Movimentos publicaram um documento sobre as relações entre as grandes corporações e os conflitos armados no continente. Em Um olhar feminista sobre a guerra permanente aos povos: colonialismo, imperialismo e o conflito no cotidiano das mulheres”, MMM Américas e ALBA retomam os impactos históricos da Doutrina Monroe, enquanto marco da política imperialista estadunidense. O texto propõe “analisar como essa doutrina impactou a dependência latino-americana e caribenha em relação aos Estados Unidos, e como suas consequências seguem presentes nos tempos atuais, impactando em nossas vidas, na militarização, na exploração dos bens comuns e na desapropriação que as transnacionais trazem aos territórios de Abya Yala, de Nossa América”.

200 anos após a instalação dessa política, é notável o papel destrutivo dos Estados Unidos nos países da América Latina e Caribe, que resistem ao extrativismo, às ocupações militares e bloqueios, à exploração do trabalho e da natureza.

Para analisar as conjunturas geopolíticas não é possível partir do nada, pensando somente no agora. Nosso continente está em disputa imperialista desde o momento em que homens brancos europeus pisaram em nossa pacha. E a pressão sobre os territórios e corpos das Américas não cessaram mesmo com o triunfo dos processos independentistas do século XIX.

Marcha Mundial das Mulheres – Américas

Compartilhamos abaixo um trecho do texto, que está disponível na íntegra em português, espanhol, inglês e francês.

(…) Em tempos não bélicos, não é possível dizer que desfrutamos da paz. Isso porque a visão de paz, construída pela sociedade liberal como ausência de guerra, tenta esconder, debaixo de interesses econômicos, diversos conflitos, disputas e violências sofridas pelos povos em seus territórios. Além disso, a mera existência e manutenção de exércitos militares como defensores da soberania e da ordem imputam a iminência da guerra e do conflito no cotidiano das pessoas. É justamente esse entendimento de “paz” que é alvo de crítica das feministas. Se impõe uma não paz, ou seja, momentos em que não há enfrentamentos armados, mas vivemos sob ameaça, em Estados que não garantem direitos humanos, que hipotecam nosso futuro, que vendem e exploram nossos bens comuns para as corporações transnacionais apoiadas pelo poder bélico dos Estados Unidos.

Nossa análise é que esse modelo se organiza intensificando o conflito capital-vida, no qual segue utilizando os mesmos mecanismos de acumulação desde seu início: controle do trabalho, dos corpos e dos territórios utilizando sempre de muita violência. Por isso falamos de uma guerra permanente aos povos seja por meio dos conflitos armados, a militarização dos territórios, o complexo policial, o controle das fronteiras, a criminalização da pobreza, com forte traço patriarcal, racista e de perseguição aos corpos dissidentes.

Posicionamos nossa visão crítica à construção do militarismo como uma engrenagem da estrutura social capitalista, racista e patriarcal. O militarismo tem como pilares a disciplina, a hierarquia e o estabelecimento de uma superioridade masculina baseada na força para a manutenção da propriedade, dos interesses elitários e de uma pretensa “segurança”. Para o militarismo, os conflitos sociais são solucionados a partir do enfrentamento, onde o diferente é tomado como um inimigo a ser combatido e eliminado, uma ameaça à segurança, ao desenvolvimento e à coesão social. Nesse modelo, seriam os homens das forças armadas os provedores da segurança no caso de ameaças ao Estado capitalista ou à propriedade privada, sejam elas internas ou externas. Com o domínio das empresas transnacionais sobre a militarização, a política de segurança torna-se cada vez mais privada, controlando territórios por meio de exércitos, da polícia e da milícia, que não caminham em sentidos opostos, e sim são faces da mesma moeda.

A disputa pelo poder e a situação de guerra permanente estão cravadas nos corpos de mulheres, crianças e identidades dissidentes, que viram como o estupro e o feminicídio são práticas frequentes que servem não apenas para disciplinar mulheres e identidades dissidentes, mas também como mensagens preocupantes para o resto da população.

(…) As guerras são organizadas tendo como central o lucro das empresas, e utilizando os recursos públicos para seu financiamento. Estados Unidos é um retrato exemplar disso: o país que busca manter o domínio imperial sobre o mundo é o que mais gasta com orçamento militar, em quantidade crescente nos últimos anos. Enquanto isso, sua população não tem acesso a direitos básicos, como a saúde.

Compreender essa conexão o aumento do poder das transnacionais e a ampliação das guerras contra os povos é central para organizar nosso posicionamento. A guerra contra os povos se expressam não só nos conflitos e ocupações. Mas no cotidiano de um modelo marcado pelo conflito capital-vida. São as empresas transnacionais são quem acumula mais poder e riqueza com o conflito do capital contra a vida. A ofensiva do poder corporativo avança sobre o trabalho, os territórios e os corpos das mulheres usando a militarização como instrumento. Nesse sentido, é fundamental centrar nossa ação contra o poder das empresas transnacionais na agenda antiguerra. (…)

A doutrina Monroe, origem do imperialismo estadunidense

Em um contexto de rearranjo da hidra capitalista surgida após os processos de independência das Américas, nasceu em 1823 a Doutrina Monroe. Inicialmente, ela colocou no papel a necessidade dos nascente Estados Unidos de manter fora do continente potências colonialistas que pudessem colocar sua própria soberania e direito à autodeterminação em risco. Mas rapidamente se tornou a base sobre a qual os governos dos Estados Unidos construíram sua ânsia de dominar e explorar o resto do continente.

Resumida na frase “América para os americanos”, a doutrina estabelece como um perigo para a própria integridade dos Estados Unidos da América do Norte qualquer intenção de um país europeu de estender seus interesses no continente, assim como um suposto compromisso de intervir para salvaguardar as Américas do colonialismo. Logo seriam definidos os “americanos” a que se refere a Doutrina Monroe. Para isso, os pais da nação norte-americana lançam mão de um velho slogan que incentivava colonos ingleses e escoceses calvinistas a cruzarem o oceano e se estabelecerem na América do Norte: o destino manifesto.

“Destino manifesto” é a ideia que expressa que, por desígnios da providência, existem alguns povos escolhidos que têm direito à apropriação de territórios. Essa ideologia estabelece o direito e praticamente a obrigação dos homens brancos heterossexuais, que se dizem escolhidos pela graça divina para possuir territórios e corpos e explorá-los em seu benefício. Pela graça divina são possuidores de bens, para reproduzir, povoar e dominar os territórios que a providência indicou para seu benefício. O fortalecimento da imagem do homem, branco, heterossexual, provedor oriundo das elites em formação como sujeito universal se torna o paradigma que orienta a construção da sociedade estadunidense.

(…) Os processos de colonização vividos no continente foram, de maneira geral, baseados no estabelecimento de estruturas militares e de produção capitalista como forma de dominar o território e as populações originárias. É com guerra e resistência indígena que a América Latina passa a fazer parte do mapa mundi. E é também a partir desses conflitos e dessa estrutura militar colonial que diferentes resistências por emancipação se organizaram, como os movimentos das elites independentistas. (…) Foram estabelecidas diversas políticas, que articulavam racismo e patriarcado, como mecanismo para subjugar os povos originários e controlar os corpos, especialmente de mulheres, a partir da esterilização forçada, do embranquecimento populacional, de criminalização da pobreza e da organização social estimulados pelos Estados e garantidos pelo aparato policial e militar.

Durante o século XIX, a Doutrina Monroe serviu de justificativa para mais de 28 intervenções armadas, além de muitas outras intervenções econômicas desiguais. Resultou em processos como a neocolonização de Porto Rico, a anexação de metade do território mexicano aos Estados Unidos, a intervenção em Nova Granada e a usurpação do canal interoceânico, e os 36 anos de guerras da banana que estabeleceram ditaduras em toda a América Central e no Caribe e consolidaram a produção e exportação transnacional de frutas tropicais.

(…) Essa história de destruição, de guerra permanente, também se impõe com a mesma força sobre a diversidade de povos não brancos que vivem dentro das fronteiras dos Estados Unidos. Como exemplo, trazemos a dolorosa memória do Caminho das Lágrimas (1830), processo violento de despejo forçado de aproximadamente 60 mil nativos americanos, um processo de limpeza étnica que vemos repetidamente glorificado nos faroestes como a conquista e a civilização do oeste. (…) O racismo está fundamentado nos mecanismos coloniais apropriados para a formação da sociedade capitalista latino-americana, que sempre se utilizou da polícia e das forças militares para garantir seu domínio político e econômico e da ideologia militarista para produzir uma sociedade controlada e disciplinada.

(…) A “paz”, a “segurança” e a “coesão social” impostas pelo militarismo não reconhecem as possibilidades de relacionamento e convivência entre a diversidade que podemos ter como humanos, muito menos respeitam as vidas não humanas.

(…) As mulheres não têm sido sujeitos passivos nesta guerra permanente contra a vida. Nós, mulheres, atuamos na resistência, sustentamos o cotidiano com redes de solidariedade que garantem a vida, assim como nossa diversidade cultural. Colocamos nossos corpos para proteger territórios e bens comuns, denunciamos as consequências desta guerra sobre nossos povos e também propomos formas de nos organizarmos para a produção e reprodução da vida em nossas comunidades. Construirmos coletivamente propostas para uma paz verdadeira, pautada pela justiça e pela igualdade. (…)

Edição por Helena Zelic

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