Eleanor Marx: “O que nós, socialistas, desejamos?”

16/01/2023 |

Por Eleanor Marx

Leia um dos textos precursores do feminismo socialista “A questão da mulher: do ponto de vista socialista”

Eleanor Marx, “Tussy”, nasceu em 16 de janeiro de 1855. Filha caçula de Karl e Jenny Marx, seus 43 anos de vida foram marcados pelo envolvimento ativo na organização da classe trabalhadora na Inglaterra. Entre escritas e discursos, traduções literárias e atuação no teatro, encontramos no legado de Eleanor Marx debates intensos e uma luta incansável pela igualdade. Publicou inúmeros textos em veículos de comunicação da classe trabalhadora, incluindo relatos políticos e descrições detalhadas de delegados e delegadas aos congressos da segunda internacional. Em textos como esses, descobrimos como Eleanor Marx situa a necessidade de posicionar a opressão das mulheres no bojo do movimento socialista, em diálogo com lideranças como Clara Zetkin.

Com o objetivo de ampliar o conhecimento sobre a história do feminismo socialista, Capire comemora o natalício de Eleanor Marx com a publicação de extratos de “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista”. O texto, publicado em 1886 e escrito conjuntamente por Eleanor Marx e Edward Aveling, parte de um comentário sobre o livro “A mulher e o socialismo” (1879), de August Bebel. Encontramos, no texto, uma reflexão teórica e política sobre as bases econômicas da opressão das mulheres, e a necessária desnaturalização de comportamentos e práticas sociais de homens e mulheres no capitalismo. O documento aborda as diferenças entre a “questão da mulher” – formulada em reivindicações de “direitos das mulheres” do nascente feminismo burguês – e as questões das mulheres trabalhadoras, que deveriam ser formuladas como parte das apostas políticas revolucionárias do socialismo.

Raquel Homes, autora de uma das biografias de Eleanor (publicada no Brasil pela Expressão Popular), destaca as muitas formas pelas quais a família, o público e o privado se relacionam no pensamento e nas práticas desta que foi uma precursora do feminismo socialista. Esses três tópicos são pontos de destaque em “A questão da mulher: de um ponto de vista socialista”, que questiona os silêncios e tabus em torno dos corpos das mulheres e da sexualidade, as hipocrisias e a dupla moral como questões que devem ser superadas pelo socialismo. Embora expressem os termos heteronormativos desse debate em seu tempo, a autora e o autor refletem sobre as possibilidades que podem e devem ser abertas pelo socialismo para diferentes configurações de relações sexuais e humanas em bases igualitárias. “O que nós, socialistas, desejamos?” é uma das questões do texto, que não reduz as respostas a dogmatismos, mas situa no centro do debate político e da imaginação revolucionária temas até então considerados privados. E, assim, convoca à reflexão sobre transformações possíveis e necessárias rumo a um socialismo feminista.

A questão da mulher – de um ponto de vista socialista

Eleanor Marx e Edward Aveling, 1886

[…]

A sociedade está, do ponto de vista de Bebel e, pode-se dizer aqui, das e dos socialistas em geral, em uma condição de agitação, de fermentação. A agitação é de uma massa de podridão; a fermentação, de putrefação. A dissolução, nos dois sentidos da palavra, está próxima. A morte do método capitalista de produção e, portanto, da sociedade baseada nele está a uma distância mensurável em termos de anos e não de séculos, segundo nosso entendimento. E essa morte significa a re-solução da sociedade em formas mais simples, mesmo em elementos que, recombinados, produzirão uma nova e melhor ordem das coisas. A sociedade está moralmente falida e em nada essa horrenda falência moral se apresenta com uma distinção mais hedionda do que na relação entre homens e mulheres. Os esforços para adiar esse colapso sacando leis da imaginação são inúteis. Os fatos têm de ser enfrentados.

Um desses fatos de maior importância não é, e nunca foi, confrontado de forma justa pelo homem ou mulher comum ao considerar essas relações. Não foi compreendido nem mesmo pelos homens e mulheres acima da média que fizeram da luta pela maior liberdade das mulheres a própria ocupação de suas vidas. Esse fato fundamental é que se trata de uma questão de economia. A posição das mulheres se apoia, como tudo em nossa complexa sociedade moderna, em uma base econômica. Se Bebel não tivesse feito nada além de insistir nisso, seu trabalho já teria sido valioso. A questão da mulher implica a organização da sociedade como um todo. […] Os que atacam o tratamento que se dá nos dias de hoje às mulheres sem buscar a causa disso na economia da nossa sociedade atual são como médicos que tratam de uma enfermidade localizada sem investigar a saúde corporal geral.

Essa crítica não se aplica apenas à pessoa comum que faz piada de qualquer discussão em que se aborde a questão do sexo. Aplica-se às naturezas superiores, em muitos casos sinceras e reflexivas, que veem que as mulheres estão em situação perigosa e estão ansiosas para que algo seja feito para melhorar sua condição. São pessoas admiráveis, trabalhadoras esforçadas que lutam pelo objetivo perfeitamente justo que é o sufrágio feminino; pela revogação da Lei de Doenças Contagiosas1, uma monstruosidade gerada pela covardia e brutalidade masculinas; pelo ensino superior para as mulheres; pela abertura das universidades, das profissões eruditas e todas as vocações, de professora a mascate. Em toda essa tarefa – importante, porém com certos limites – três coisas são especialmente notáveis. Em primeiro lugar, as interessadas são pessoas das classes mais abastadas, via de regra. Com a única e apenas parcial exceção do movimento das Doenças Contagiosas, quase nenhuma das mulheres com participação de destaque nesses diversos movimentos pertence à classe trabalhadora. Estamos preparados para o comentário de que algo muito parecido com isso pode ser dito, no que diz respeito à Inglaterra, do movimento maior que reivindica nossos esforços especiais. Certamente, o socialismo é, no momento, neste país, pouco mais do que um movimento literário. Há apenas alguns poucos trabalhadores margeando seus contornos. Mas podemos responder a esta crítica dizendo que na Alemanha este não é o caso, e que, mesmo aqui, o socialismo está agora começando a ganhar força entre os trabalhadores.

O segundo ponto é que todas essas ideias de nossas mulheres avançadas são baseadas na propriedade privada ou em questões sentimentais ou profissionais. Nenhuma delas chega ao âmago da questão, a base econômica não apenas de cada um desses três pontos, mas da própria sociedade. Este fato não é surpreendente para aquelas e aqueles que notam a ignorância sobre economia característica da maioria de quem trabalha para a emancipação das mulheres. A julgar pelos escritos e discursos da maioria das defensoras e dos defensores das mulheres, nenhuma atenção foi dada por elas e eles ao estudo da evolução da sociedade. Mesmo a economia política ortodoxa, que é, como pensamos, enganosa em suas declarações e imprecisa em suas conclusões, não parece ter sido compreendida em sua profundidade de forma geral.

O terceiro ponto deriva do segundo. A escola de que falamos não faz nenhuma sugestão que esteja fora dos limites da sociedade de hoje. Portanto, seu trabalho é, do nosso ponto de vista, de pouco valor. Apoiaremos todas as mulheres, não apenas as que têm propriedade e que são habilitadas a votar, bem como a revogação da Lei de Doenças Contagiosas e o desimpedimento de qualquer vocação para ambos os sexos. A verdadeira posição das mulheres em relação aos homens não seria abordada adequadamente (não nos voltamos, no momento, para os resultados do aumento da concorrência e a mais amarga luta pela existência), pois nenhuma dessas coisas, exceto indiretamente a Lei de Doenças Contagiosas, as afeta em suas relações de sexo. Também não devemos negar que, com o ganho de cada um desses pontos, a tremenda mudança que está por vir seria mais fácil de alcançar. Mas é essencial não perder de vista a mudança máxima, que só virá quando a mudança social ainda mais tremenda da qual ela é corolária tiver ocorrido. Sem essa mudança social maior, as mulheres nunca serão livres.

A verdade, não totalmente reconhecida mesmo por aquelas e aqueles ansiosos por fazer o bem à mulher, é que esta, como as classes trabalhadoras, está em uma condição de opressão; que sua posição, como a dessas classes, é de degradação impiedosa.

As mulheres são as criaturas de uma tirania organizada dos homens, assim como os trabalhadores são as criaturas de uma tirania organizada dos ociosos. Mesmo onde tanto é compreendido, nunca devemos nos cansar de insistir na compreensão de que, para as mulheres, assim como para as classes trabalhadoras, nenhuma solução das dificuldades e problemas que se apresentam é realmente possível na atual condição da sociedade. Tudo o que é feito, não importa com que floreio de trombetas seja anunciado, é paliativo, e não corretivo.

Tanto as classes oprimidas quanto as mulheres e os produtores imediatos devem entender que sua emancipação virá deles mesmos. As mulheres terão como aliados os melhores homens, assim como os trabalhadores têm encontrado aliados entre filósofos, artistas e poetas. Entretanto, as mulheres não têm nada a esperar dos homens em geral, e os trabalhadores não têm nada a esperar da classe média como um todo.

A verdade disso vem à tona no fato de que, antes de passarmos para a consideração da condição das mulheres, temos de fazer uma advertência. Para muitas pessoas, o que temos a dizer do Agora parecerá exagerado; do muito que temos a dizer sobre o Depois, visionário, e, talvez, tudo o que for dito, perigoso. Para as pessoas cultas, a opinião pública ainda é apenas a do homem, e o costume perfaz a moral. A maioria ainda acentua a ocasional inaptidão da mulher como uma barreira para sua consideração igualitária com o homem. Ainda discorre sobre a vocação natural do sexo feminino. Quanto ao primeiro ponto, as pessoas esquecem que a inaptidão, em certos momentos, é, em grande medida, exagerada pelas condições insalubres de nossa vida moderna, se, de fato, não for totalmente devida a elas. Dadas condições racionais, desapareceria em grande medida, senão completamente. Esquecem também que tudo o que é conversado de forma tão desinibida quando a liberdade das mulheres está em discussão é convenientemente ignorado quando o assunto é sua escravidão. Esquecem que, pelos empregadores capitalistas, essa mesma inaptidão da mulher só é levada em conta com o objetivo de reduzir o valor geral dos salários.

Mais uma vez, não há uma vocação natural das mulheres, assim como não há uma lei natural de produção capitalista ou um limite natural para a quantidade do produto do trabalhador que vai para ele como meio de subsistência.

O fato de que, no primeiro caso, a vocação da mulher deve ser apenas o cuidado das crianças, a manutenção das condições da casa e uma obediência geral ao seu senhor; que, na segunda, a produção de mais valor seja uma preliminar necessária para a produção de capital; que, no terceiro, a quantia que o trabalhador recebe para seus meios de subsistência é apenas o suficiente para mantê-lo acima da linha da fome: não são leis naturais no mesmo sentido que das leis do movimento. São apenas convenções temporárias da sociedade, como a convenção de que o francês é a língua da diplomacia.

[…] O homem, por mais exausto que esteja pelo trabalho, tem a noite para nada fazer. Mas a mulher está ocupada até a hora de dormir. Frequentemente, com as crianças pequenas, sua labuta dura até tarde, ou mesmo por toda a noite.

Quando o casamento ocorre, tudo é favorável a um e adverso à outra.

[…] O que nós, socialistas, desejamos? O que esperamos? O que é isso de que temos tanta certeza quanto do raiar do sol de cada dia? Quais são as mudanças evolutivas na sociedade que acreditamos já estarem próximas? E quais são as mudanças na condição da mulher que antecipamos como consequência disso? Permitam-nos negar qualquer intenção profética. Aquela ou aquele que, refletindo sobre uma série de fenômenos observados, vê o inevitável evento ao qual eles levam não é profeta. Uma pessoa não pode profetizar nada além daquilo que tem o direito de apostar quanto a uma certeza. Para nós, parece claro que, como na Inglaterra, a sociedade germânica, cuja base era o proprietário de terra livre, deu lugar ao sistema feudal, e este ao capitalista, e que este último, não mais eterno que seus antecessores, dará lugar ao sistema socialista; que, como a escravidão passou para a servidão e a servidão para a escravidão salarial de hoje, esta última passará para a condição em que todos os meios de produção não pertencerão nem ao dono de escravos, nem ao senhor do servo, nem ao patrão do escravo-assalariado, o capitalista, mas à comunidade como um todo. Com o risco de provocar o riso habitual e a zombaria, confessamos que não estamos mais preparados para entrar nos pormenores desse trabalho socialista da sociedade do que os primeiros capitalistas estiveram para entrar nos detalhes do sistema que fundaram. Nada é mais comum, nada é mais injusto, nada é mais indicativo de escassa compreensão do que o clamor vulgar por detalhes exatos de como as coisas serão sob a condição social para a qual acreditamos que o mundo está se movendo. Nenhuma exposição de qualquer nova grande verdade, ninguém dentre seus seguidores pode esperar descobrir toda a verdade em suas últimas ramificações. Isso teria sido pensado daqueles que rejeitaram a descoberta da gravitação de Newton por ele não ter, com sua aplicação, descoberto Netuno? Ou daqueles que rejeitaram a teoria darwiniana da Seleção Natural porque o instinto apresentava certas dificuldades? No entanto, é precisamente isso que os medíocres opositores do socialismo fazem; sempre com uma calma vazia, ignorando o fato de que, para cada dificuldade ou miséria que eles supõem surgir da socialização dos meios de produção uma muito pior é realmente existente na sociedade putrescente de hoje.

O que é isso que temos certeza de que está a caminho? Seguimos por rumos tão distantes dos de Bebel ao longo de nossas próprias linhas de pensamento, depois de tomarmos o caminho geral em que seu trabalho sugestivo nos colocou, que, para responder a esta pergunta, voltamos com prazer e gratidão a ele: “Uma sociedade em que todos os meios de produção são propriedade da comunidade, uma sociedade que reconhece a total igualdade de todas e todos sem distinção de sexo, que prevê a aplicação de todo tipo de aperfeiçoamento ou descoberta técnica e científica, que inscreve como trabalhadoras e trabalhadores todas as pessoas que atualmente são improdutivas, ou cuja atividade assume uma forma prejudicial, os ociosos e os vagantes, e que, reduzindo o período de trabalho necessário para sua manutenção, eleva a condição mental e física de todos os seus membros ao mais alto patamar alcançável.”

Não escondemos de nós nem de nossos antagonistas que o primeiro passo para isso é a desapropriação de toda propriedade privada da terra e de todos os outros meios de produção. Com isso, haveria a abolição do Estado tal como ele se apresenta agora. Nenhuma confusão quanto aos nossos objetivos é mais comum do que aquela que leva pessoas de pensamento vago a imaginar que as mudanças que desejamos, assim como as condições para que elas possam existir, possam ocorrer sob um regime de Estado como o de hoje. O Estado é agora uma organização de forças para a manutenção das atuais condições de propriedade e de regramento social. Seus representantes são alguns homens de classe média e alta disputando lugares que rendem salários anormais. O Estado sob o socialismo, se de fato uma palavra de lastros históricos tão feios for mantida, será a capacidade organizada de uma comunidade de trabalhadoras e trabalhadores. Suas funcionárias e seus funcionários não serão melhores nem piores do que suas companheiras e seus companheiros. O divórcio entre arte e trabalho, o antagonismo entre o trabalho mental e o manual, que entristece a alma dos artistas, sem que eles saibam, na maioria das vezes, a causa econômica de sua dor, desaparecerá.

E agora vem a questão de como a futura posição da mulher e, portanto, da raça, será afetada por tudo isso. De algumas coisas podemos ter certeza. A evolução da sociedade conduzirá à melhor solução, embora cada um de nós possa ter sua própria ideia sobre cada ponto em particular. Claramente, haverá igualdade para todas e todos, sem distinção de sexo. Assim, a mulher será independente: terá acesso à educação e a todas as outras oportunidades que se apresentam ao homem. Como ele, ela, se tiver a mente e o corpo sãos (e como o número de mulheres assim crescerá!), receberá uma, duas ou três horas de trabalho social para suprir as necessidades da comunidade e, portanto, as suas próprias. Depois disso, ela estará livre para a arte ou a ciência, para o ensino ou a escrita, ou para todo tipo de divertimento. A prostituição terá desaparecido com as condições econômicas que a produziram e fizeram dela, neste momento, uma necessidade.

Se a monogamia ou a poligamia prevalecerá no estado socialista é um detalhe sobre o qual só se pode falar como indivíduo. A questão é extensa demais para ser resolvida em meio às névoas e miasmas do sistema capitalista. […]

O texto original foi publicado em Westminster Review, vol. 125, janeiro de 1886. A tradução ao português foi feita por Helena Barbosa, Maíra Mee Silva e Maria Teresa Mhereb e publicada na íntegra em Marxismo feminista.

  1. Promulgada na Inglaterra em 1864 e suspensa em 1886 (ano de publicação do texto de Eleanor e Aveling), a Lei foi introduzida como tentativa de regular a prostituição e controlar o contágio por doenças sexualmente transmissíveis. Na prática, a lei obrigava mulheres suspeitas de prostituição a realizarem exames médicos invasivos sob custódia de polícia, podendo ser presas por até três meses caso se recusassem a fazê-los. []

Redação da introdução por Tica Moreno

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