Em 8 de julho de 2020, em meio à pandemia de COVID-19, o Senado uruguaio aprovou a Lei de nº 19.889, a Lei de Urgente Consideração (LUC), como é conhecido o projeto apresentado pelo governo de coalizão de direita, presidido por Luis Lacalle Pou. O caráter de “urgente consideração” significava que o conteúdo da lei deveria ser abordado em um prazo máximo de 90 dias entre as duas Câmaras do Parlamento. Nesse período, foram aprovadas fortes mudanças nas áreas de segurança e inteligência, habitação, educação, acesso a terras produtivas, trabalho, economia, empresas públicas, criminalização do direito à greve e manifestação.
A versão original da LUC continha 502 artigos, modificados apenas superficialmente no Senado e na Câmara dos Deputados. A lei aprovada e atualmente em vigor tem 476 artigos. Os movimentos sociais, sindicatos, cooperativas, ambientalistas e feministas, organizados e organizadas na Intersocial, analisaram junto com a Frente Ampla quais artigos deveriam ser revogados prioritariamente, por representarem uma reforma substancial do papel do Estado e ameaçarem o exercício de direitos.
Esses setores decidiram que 135 artigos deveriam ser revogados e organizaram uma forte campanha de coleta de assinaturas para um plebiscito. A façanha de recolher quase 800 mil assinaturas durante a pandemia foi alcançada e, por isso, finalmente acontecerá o plebiscito no qual a população uruguaia decidirá se quer ou não revogar esses 135 artigos no domingo 27 de março.
Este texto aponta os principais argumentos que levaram à escolha desses 135 artigos para serem revogados. Além disso, reconstrói o processo de articulação das organizações sociais que possibilitou a coleta das assinaturas e, sobretudo, a abertura do debate com a população e a demanda de mais tempo para entender melhor o conteúdo desta lei que foi aprovada contra o relógio e que afeta os direitos fundamentais da população.
Marcar posição
Doze dias depois de tomar posse, no dia 13 de março de 2020, Lacalle Pou anunciava que a covid-19 tinha chegado no Uruguai. Com a emergência sanitária declarada e sem quarentena obrigatória, as decisões políticas a respeito da pandemia seriam marcadas por apelos neoliberais à “liberdade responsável” e aos cuidados individuais. Os índices de desemprego e pobreza subiram rapidamente, as cozinhas e refeitórios populares se multiplicaram nas praças e bairros e, na ausência de uma resposta do Estado, o tecido de organização social foi retomado com articulações como a Intersocial e reivindicações para o governo.
A central sindical PIT-CNT, junto com a Federação de Estudantes Universitários do Uruguai (FEUU), a Federação Uruguaia de Cooperativas Habitacionais de Ajuda Mútua (FUCVAM), a REDES-Amigos da Terra, a Intersocial Feminista e pelo menos 20 outras organizações compõem a Intersocial. Após várias reuniões semanais, eles conseguiram chegar a um acordo sobre um documento com 12 demandas e propostas para apresentar ao governo de Lacalle Pou, entre as quais se destacam uma renda de emergência provisória para garantir uma renda mínima para todos, controles de preços dos alimentos da cesta básica e apoio às pequenas e médias empresas afetadas pela crise sanitária e econômica. A Intersocial foi retomada como um espaço de articulação, que logo começaria a “marcar posição” diante do debate que o Parlamento estava iniciando sobre a LUC.
As organizações puderam ler e analisar os 502 artigos da LUC um mês e meio antes do projeto passar ao Senado. Apesar das dificuldades, eles solicitaram audiências junto à Comissão Especial Parlamentar, que deu a cada organização apenas 15 minutos para apresentar os argumentos contrários aos diferentes aspectos abarcados pela lei. Ao participar desse mecanismo “demonstramos a baixa qualidade da discussão que a LUC teve, ao nos concederem apenas alguns minutos apesar da densidade que essas discussões deveriam ter em tais decisões estruturais sobre educação, regras fiscais, lavagem de dinheiro, política energética, segurança”, diz Valeria Caggiano, porta-voz da Intersocial Feminista.
Para Tamara García, militante sindical e feminista, o tempo e a forma dessa lei “violam o processo democrático”. “O problema é a forma como ela é legislada e nós, como cidadãs, temos o direito de intervir e manifestar nossas divergências em todos os espaços, todos os dias”, disse.
Uma vez aprovada a LUC, prevendo as consequências que teria, a Intersocial decidiu convocar o plebiscito em conjunto, assumindo que “nenhuma força sozinha poderia empreender a tarefa de coletar assinaturas para viabilizar esse procedimento. Desde o início, a premissa era promover esse mecanismo com um processo de forte articulação social“, enfatizou Caggiano.
Organizações como REDES-AT e Somos Bairro, junto com o coletivo Mais Igualdade, trabalharam com a Intersocial Feminista para identificar os artigos a serem propostos para revogação, “com base na compilação do que as organizações estavam levantando como problemático no Parlamento e na opinião pública”, explicou Natalia Carrau, integrante da Amigos da Terra.
Assim que o movimento social concordou em revogar 135 artigos da LUC, começou a odisseia pela coleta de assinaturas que permitissem a convocação de um plebiscito para revogar a lei. De casa em casa, de bairro em bairro, nas feiras dos bairros, nas portas dos comitês de base, na sede das organizações, estavam os abaixo-assinados da convocatória para dar início ao plebiscito. As bases se mobilizaram em todo o Uruguai em busca de assinaturas.
“Em janeiro de 2021 chegamos às primeiras 100 mil assinaturas e em março formamos a articulação de Jovens pelo Plebiscito“, recordou García, destacando a importância da juventude na coleta de assinaturas. “O tempo ia passando e as assinaturas iam aumentando: “as pessoas se apaixonaram por essa causa, embora a direita que ganhou o governo pensasse que as esquerdas do país estavam mortas”, diz Tamara.
A articulação da luta contra a LUC deixou claro que “aqui ninguém está morto, não tem ninguém dormindo”, disse García. “Estamos determinadas a criar resistência enquanto tivermos governos que promovam as coisas para as grandes minorias e não para as grandes maiorias”. Com a LUC, “há realmente poucas famílias e pessoas que são favorecidas, mas são minorias poderosas”, acrescenta.
O plesbicito
Entre uma assinatura e outra, as atividades nos bairros seguiam acontecendo: banquinhas de informação, trocas, oficinas e apresentações. Milhares de pessoas saíram à luta por seus direitos. “O voto é mais uma forma de democracia, mas a liberdade de expressão, a mobilização nas ruas, ter acesso aos meios de comunicação de massa, também são formas de exercer a democracia e ser cidadã e cidadão”, disse García.
Em 8 de julho de 2021, quase 800 mil assinaturas foram entregues ao Supremo Tribunal Eleitoral, ultrapassando 25% do número total de pessoas aptas a convocar um plebiscito no país. Esse voto é obrigatório e são necessários 50,01% dos votos válidos para conseguir a revogação de uma lei. Nesse caso, aqueles que optarem por apoiar a revogação dos 135 artigos devem votar SIM e aqueles que quiserem que a LUC permaneça como foi aprovada, devem votar NÃO.
Os 135 artigos
A LUC “não é popular nem dá mais garantias de direitos à população; é exatamente o contrário e está baseada naquilo que as pessoas desconhecem, na desinformação”, disse a sindicalista. Ela também afirmou que “o papel que muitos meios de comunicação e o governo têm desempenhado é o de não informar claramente ou fazer com que passe despercebido e que as pessoas não saibam no que votar”.
Assim que o plebiscito foi aprovado, foi formada a Comissão Nacional pelo SIM, composta por mais de cem organizações sociais e políticas.
Nesta última parte da campanha, a Intersocial Feminista continua apostando em transversalizar a perspectiva feminista nas críticas aos 135 artigos a serem revogados, especialmente aqueles que se referem à segurança pública e ao direito à moradia.
Porque “quando as políticas públicas não têm uma perspectiva de gênero, quando não levam em conta os impactos específicos, uma visão ‘neutra’, longe de ser inócua, aprofunda e não combate as desigualdades”, disse Caggiano.
No caso das críticas aos artigos relativos à segurança, a Intersocial Feminista advertiu desde o início que o aumento das penas por pequeno tráfico de drogas teria consequências imediatas na vida das mulheres pobres, “que não assumem o papel de participar de redes de pequeno tráfico como opção, mas por causa de suas próprias condições de precariedade geral de vida”. No primeiro ano de implementação da LUC, a privação de liberdade aumentou exponencialmente e as mulheres presas por pequeno tráfico passaram de 30% para 78% do total da população carcerária feminina.
“O aumento das penas é apresentado como uma solução, mas na verdade ele aprofunda a criminalização da pobreza e afeta mais as mulheres e crianças”, disse Caggiano. Enquanto percorre os bairros mais vulneráveis para fazer campanha pelo SIM, a militante feminista diz que as vizinhas estão preocupadas em viver em uma situação de “insegurança permanente”, vendo como seus filhos “são vistos e tratados pelas forças de segurança de forma violenta, por causa de sua suposta ‘aparência criminosa’, com base no preconceito por serem jovens, pobres e negros”. O artigo 467 permite que as pessoas sejam detidas por “atos de aparência criminosa” e sua aprovação não é um detalhe menor considerando que a Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDDHH) propôs a abertura de investigações devido ao aumento das denúncias por abuso policial. O Serviço de Paz e Justiça do Uruguai também manifestou preocupação com o tema em uma nota.
A proposta de revogação inclui três artigos que criminalizam a manifestação e limitam o exercício deste direito, além de tornar ilegal qualquer atividade que “interrompa a livre circulação”, como bloqueios de ruas e e concentrações em espaços públicos, instituições ou locais de trabalho. O artigo 329 coloca em pé de igualdade o direito fundamental ao trabalho livre com o poder do empregador para administrar sua empresa, o que, em última instância, permite ao empregador intimidar e despejar à força as ocupações realizadas por trabalhadoras e trabalhadores.
No caso da moradia, a LUC muda as formas de locação e deixa um regime sem garantias. Às críticas do movimento de cooperativas, as feministas acrescentaram como essa mudança nas condições de acesso à moradia poderia afetar ainda mais as famílias monoparentais chefiadas por mulheres, constituídas pelos setores econômicos mais precários, com as piores condições salariais. Caggiano ressaltou que o mesmo se aplica a medidas fiscais como a liberalização da forma de pagamento, algo que aprofunda as condições precárias de emprego de trabalhadoras como as empregadas domésticos.
No que diz respeito à educação, a LUC modificou a Lei Geral de Educação do Uruguai, eliminando a participação social e introduzindo lógicas privatizadoras e mercantilizadoras para que as instituições sejam “prestadoras de serviços” e formem pessoas que sejam funcionais para o mercado. Entre as modificações, o que antes era o “Sistema Nacional de Educação Pública”, agora é o “Sistema Nacional de Educação”. Os Conselhos de Educação infantil, fundamental, médio e técnico e profissional são eliminados e substituídos por diretrizes particulares; como consequência, não há participação dos professores na tomada de decisões, e outro artigo também elimina a participação estudantil.
No setor agrícola, a LUC faz alterações no Instituto Nacional de Colonização (INC), que concede terras a pequenas e pequenos agricultoras/es. Ela retira a autoridade do órgão sobre mais de 100 mil hectares e muda os requisitos para assentamento, eliminando a obrigação de residir no terreno. Isso permite que a terra permaneça nas mãos de pessoas que não vivem nem trabalham nela, beneficiando o setor agroexportador do país.
Este vídeo da REDES-Amigos da Terra Uruguai explica (em espanhol) os retrocessos da LUC nas mudanças do acesso à terra no país.
Tamara García enfatiza o objetivo principal da luta: “Queremos que os 135 artigos da LUC sejam revogados, mas, basicamente, o que queremos é poder ter espaços para organizar e articular com todo o campo popular, poder gerar uma grande frente de defesa das linhas comuns e para que a população se conscientize e se organize mais sobre o que está acontecendo. E para enviar um recado claro para a direita do nosso país: não é assim que se deve legislar e eles não vão passar por cima das grandes maiorias”.