Em outubro de 2019, diversos setores populares do Chile se levantaram em uma intensa mobilização contra o modelo neoliberal e as políticas do presidente Sebastián Piñera. Esse processo de mudança social levou à instalação de uma convenção constituinte, da qual os setores de esquerda saíram fortalecidos para redigir a nova Constituição do país.
Quando começou o processo de mudança e a possibilidade de pensar uma nova Constituição, imediatamente entendemos isso como um novo cenário que nunca imaginamos que aconteceria tão cedo. Um cenário impossível de não ser aproveitado pelo mundo das comunicações. Por isso, levantamos a demanda pelo direito à comunicação, uma proposta que vem de mãos dadas com as organizações de jornalistas, comunicadoras e feministas, o que nos enche de orgulho.
Esse trabalho de organização pela defesa dos direitos humanos no que tange à comunicação está exposto no artigo “Comunicação feminista para uma nova Constituição no Chile” [Comunicación feminista para una nueva Constituciónen Chile], no livro virtual Comunicação feminista e popular: experiências das mulheres em movimento [Comunicación feminista y popular: experiencias de lasmujeresenmovimento].
“A nova Constituição precisa reconhecer toda a sociedade como protagonista da comunicação, garantindo direitos coletivos que permitam o acesso à informação, a geração de opiniões e todo tipo de expressões de maneira oportuna, veraz, diversa e plural, e através de todos os meios. Ao mesmo tempo, deve permitir que os setores historicamente excluídos da incidência pública consigam colocar em circulação seus conhecimentos e experiências.”
Sabemos que o direito à comunicação é um assunto menos visível que outras demandas constitucionais como o direito à educação, à saúde e à moradia. No entanto, é uma demanda que tentamos colocar como uma necessidade básica. Estamos dizendo que precisamos garantir os direitos humanos no que se refere às comunicações, justamente para evitar o cenário que estamos vivendo atualmente. E o que acontece atualmente?
A ofensiva da extremadireita
O Chile se prepara agora para o segundo turno das eleições presidenciais, nas quais escolherá entre Gabriel Boric, candidato da Frente Ampla de esquerda, e Jose Antonio Kast, um candidato da extrema direita do Partido Republicano. Como em outras partes das Américas, há uma ofensiva muito forte das direitas para suscitar desinformação com notícias falsas que vão, de alguma forma, obstruindo qualquer processo de avanço democrático.
“Enquanto a televisão chilena realizava longas coberturas sobre incêndios, violência e saques, as pessoas nas ruas chamavam para ‘desligar a televisão’, em um claro sinal de aborrecimento com o que vinha sendo publicado na grande mídia. De fato, o estudo de opinião pública Uso e avaliação dos meios de comunicação e das redes sociais durante aconvulsão socialno Chile [Uso y evaluación de losmedios de comunicación y las redes sociales durante elestallido social en Chile], realizado em 2019 pela Pontifícia Universidade Católica do Chile, revelou que em relação ao trabalho da imprensa durante as manifestações, mais de 80% das e dos entrevistados consideraram que os jornalistas não cobrem os acontecimentos importantes, 71% considerava que a imprensa geralmente apresenta só um lado das notícias e 91% discordam da afirmação de que os jornalistas contribuem para a gestão da crise e da recuperação da população.”
Nós, jornalistas feministas, temos observado os meios de comunicação com atenção especial nessas últimas semanas devido ao período eleitoral, onde abundam a desinformação e as notícias falsas, levantadas, em alguns casos, pela imprensa nacional.
O número de votos obtidos no primeiro turno presidencial pela extrema direita, que obteve a maioria dos votos, foi uma surpresa. Esse desastre mostra a necessidade de que os territórios, as organizações e os distintos setores sociais tenham meios de comunicação. Tal resultado eleitoral vem do trabalho dos meios de comunicação hegemônicos: instalação de preconceitos, discursos de ódio e falácias sobre sindicatos, organizações e setores populares.
Isso ocorre em um Chile sem mídias públicas e onde a imprensa comunitária está extremamente criminalizada. Basicamente, o que temos é um sistema de imprensa 100% privado e dependente dos grandes setores econômicos. No Chile, os donos da imprensa são os banqueiros, os varejistas e os donos de mineradoras. Não é novidade, mas vemos os prejuízos que isso gera para uma discussão democrática, como é pensar no próximo governo e pensar em uma nova Constituição.
“No caso da imprensa escrita, existe um quase duopólio entre duas corporações: El Mercurio Sociedad Anónima Periodística (SAP) e o Consorcio Periodístico de Chile (COPESA). As empresas El Mercurio SAP e COPESA são líderes do mercado e concentram 82% dos leitores e mais de 84% da publicidade no sector. (…) Os donos dessas grandes empresas – grupo Edwards e grupo Saieh – representam os setores econômicos tradicionais do Chile, ligados à direita e que, além disso, expressam em seus editoriais uma agenda de valores conservadores e críticos em assuntos como os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os conflitos ambientais e a militarização da Araucanía, região onde vive o povo mapuche.”
A carência de mídias públicas e comunitárias tem efeitos como a precarização do trabalho das e dos trabalhadores das comunicações. Também afeta a possibilidade de que as eleitoras e eleitores se informem e tomem boas decisões para o seu futuro. Além disso, as expressões populares, locais e territoriais de tantas pessoas, comunidades e territórios são anuladas e permanecem totalmente invisibilizadas sob esse modelo.
Direito à comunicação para defender a democracia
A garantia do direito à comunicação proposta para a redação da nova Constituição implica pensar um sistema de meios de comunicação democrático. Isso significa: garantir direitos humanos; estabelecer um sistema público de mídia; garantir o desenvolvimento e assistência de mídias comunitárias; permitir a possibilidade de que o Estado garanta esse direito com políticas de apoio, fomento e criação de meios de comunicação.
Portanto, o que estamos fazendo, a partir de uma diversidade de organizações territoriais de jornalistas feministas e organizações mistas, é um esforço para instalar uma discussão que, antes da convulsãosocial, era invisibilizada, criminalizada, localizada em certos setores acadêmicos muito restritos.
Com uma abordagem feminista e interseccional, elaboramos qual é o papel das mulheres e das dissidências nas comunicações. Assim, nos distanciamos dos efeitos nefastos dos meios de comunicação hegemônicos, já conhecidos nossos, com suas ferramentas para censurar as maiorias.
Temos que pensar na comunicação como a possibilidade de que toda a sociedade possa desenvolver meios de comunicação em igualdade de condições e sem limitações econômicas. Essa é a única possibilidade de avançar para uma sociedade muito mais justa, e informada, que não se alimente de preconceitos e de discursos de ódio.
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Rocío Alorda é jornalista feminista. Faz parte da Marcha Mundial das Mulheres, da Rede de Jornalistas Feministas do Chile (Red de Periodistas Feministas de Chile) e é 1ª Vice-presidenta do Colégio de Jornalistas do Chile (Colegio de Periodistas de Chile). Esse texto é baseado na sua intervenção na oficina Comunicação feminista e soberania tecnológica, realizada pela SOF em 30 de novembro de 2021 no âmbito do lançamento da publicação Comunicação feminista epopular: experiências das mulheres em movimento.