Captura corporativa dos sistemas alimentares e recursos naturais da África

21/07/2023 |

Por Leonida Odongo

Leonida Odongo denuncia o poder corporativo nos países africanos e compartilha alternativas populares baseadas na agroecologia

Transnacionais são, em geral, empresas registradas no Norte Global com subsidiárias no Sul Global. Essas corporações costumam tirar vantagem da existência de matéria-prima e mão de obra barata no Sul Global e das frágeis leis trabalhistas que caracterizam as nações em desenvolvimento.

O poder exercido pelas transnacionais contribui para muitas violações de direitos humanos.

A África sofreu e continua sofrendo impactos negativos da ação das transnacionais sobre a mão de obra, os alimentos, o meio ambiente, entre muitos outros aspectos. A África é considerada a nova fronteira quando o assunto é negócio, o que fica evidente pela existência de inúmeras transnacionais com operações no continente. Quantas transnacionais estabeleceram filiais, por exemplo, na República Democrática do Congo para extrair minérios, sendo que esses mesmos minérios não resultam em nenhum benefício para o povo congolês? Quantos refugiados e refugiadas congolesas estão espalhadas pelo mundo, impedidas de voltar para casa por conta de conflitos?

Os recursos naturais deveriam trazer prosperidade e bem-estar às pessoas, mas o que vemos na África é que eles trazem sofrimento por meio da ação das transnacionais, do surgimento de grupos rebeldes, de uma administração inábil dos recursos e da exclusão dos cidadãos e cidadãs dos processos de tomada de decisão com relação a seus benefícios. A descoberta de novos recursos naturais torna ainda mais complicada a vida das pessoas em diferentes partes da África, como acontece em Cabo Delgado, Moçambique.

Conforme reportado pelo Human Rights Watch, Cabo Delgado vive uma crise humanitária por conta da extração de petróleo e gás, o que vem gerando deslocamentos em massa e violência sexual e de gênero contra mulheres e meninas. Com a contribuição da agricultura industrial e da monocultura para as mudanças climáticas, recursos naturais como a água tornam-se inacessíveis. As transnacionais obstruem o acesso a recursos como os rios, antes livremente utilizados pelas comunidades. 

Quando elas chegam com suas operações, logo conseguem a privatização, seguida pela militarização, geralmente na forma de segurança privada. Áreas que antes nunca tiveram qualquer forma de segurança institucional se transformam em locais de grande atividade quando recursos naturais são descobertos, e as comunidades são vítimas de abusos. As estradas locais são privatizadas e as pessoas precisam fazer desvios. Empresas estão despejando substâncias tóxicas na água, afetando as únicas fontes de água das comunidades. E mais que isso, quando as transnacionais fazem mineração, as comunidades locais adoecem por causa dos resíduos redirecionados às suas fontes hídricas. O acesso à água limpa e segura se transforma em nada mais que uma miragem.

Aumento da violência

As transnacionais são responsáveis por violações de direitos humanos, dificultando o trabalho das pessoas que se dedicam a defender o meio ambiente. Em casos extremos, defender os bens comuns pode levar à morte. O mundo está repleto de exemplos de defensores dos direitos humanos que pagaram com a própria vida por terem defendido os direitos da Mãe Natureza. Em Honduras, Berta Cáceres foi assassinada por causa de seu ativismo contra uma barragem no território indígena de seu povo. Outros exemplos de ativistas que perderam suas vidas incluem ativistas do México, das Filipinas e do Brasil. Mais perto de casa, temos o caso da ativista sul-africana contra a mineração Mama Fikile Ntshangase , que foi baleada e morreu em sua casa. Outro exemplo é Joanna Stuchburry, assassinada por causa de seu trabalho de proteção ambiental no Quênia. O ativista ambiental Nasako Besingi tem sido alvo de ameaças por se opor às operações de transnacionais em seu país, Camarões. Em outros países, como Uganda, conforme reportado pela organização GRAIN, comunidades locais estão sendo expulsas sob a mira de armas.

A violência sexual é desenfreada nas transnacionais, particularmente no setor agrícola, em que mulheres denunciaram ter sido forçadas a trocar sexo por trabalhos informais ou promoções. As mulheres que trabalham no cultivo de flores também reclamam da exploração econômica, da violência sexual, do excesso de trabalho e da baixa remuneração, conforme reportado na publicação da Comissão pelos Direitos Humanos do Quênia [Kenya Human Rights Commission] “Wilting Bloom”. As transnacionais aumentaram a desigualdade em toda a África. Elas são responsáveis pela exploração e pelo tratamento desumano de trabalhadores e trabalhadoras, apesar de muitas dessas empresas serem signatárias dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU.

Poder corporativo, sementes e produção de alimentos

A produção de alimentos na África também não está livre da depredação das transnacionais. Vemos uma série de duplos critérios aplicados quando os mesmos pesticidas que foram banidos na Europa conseguem entrar na África e são vendidos e consumidos pelas pessoas por meio da comida, conforme mostrado pelo relatório do Centro Africano pela Biodiversidade [African Centre for Biodiversity]. Nas plantações, a pulverização aérea de agrotóxicos causa doenças respiratórias e infecções de pele. Com o controle crescente das corporações sobre os sistemas alimentares e sobre o meio ambiente, outros recursos estão sendo transformados em mercadorias, como acontece nos mercados de carbono. 

As sementes são a base dos alimentos. Sem sementes, não há comida. Conforme sabiamente dito por Thomas Sankara, quem controla sua comida controla você. Tendo se dado conta de que, quando se controla a comida, nações são controladas, corporações gigantescas estenderam seus tentáculos sobre as sementes. A captura corporativa de sementes obriga agricultores e agricultoras, por força da lei, a comprar sementes vendidas pelas transnacionais em lojas especializadas. Uma leitura rápida de várias legislações na África sobre sementes e safras confirma a existência de cláusulas punitivas que inibem a prática de guardar, compartilhar e trocar sementes entre agricultores/as.

Cidi Otieno, da Aliança de Camponeses do Quênia [Kenyan Peasants League] disse uma vez que “reduzir os espaços de cidadania vai além da liberdade de informação ou da interferência na liberdade de expressão ou da livre movimentação; esse processo acontece quando agricultores e agricultoras não podem guardar suas sementes indígenas porque leis proíbem o uso de suas sementes preservadas; quando são introduzidas leis que proíbem o uso do esterco de gado, de cabras, de ovelhas e de aves domésticas”. Com a produção de sementes controlada por corporações gigantescas, as sementes são transformadas em mercadorias, e sua diversidade — característica essencial das sementes indígenas — é gradualmente substituída pela uniformidade. As sementes antes livremente trocadas e compartilhadas por nossos ancestrais estão sendo patenteadas, e usá-las sem pagar royalties agora virou crime.

Por trás dos lucros excepcionais, a exploração da mão de obra

A maioria das transnacionais prefere adotar um regime de trabalhos informais a contratar trabalhadores. Elas costumam tirar vantagem das legislações frágeis e da disponibilidade de mão de obra barata e da pouca possibilidade de negociação por parte dos trabalhadores e trabalhadoras.  Na África, com a alta taxa de desemprego, quando uma vaga é aberta, milhares de pessoas se candidatam

Quando as transnacionais vêm para a África, os cargos mais bem pagos são normalmente reservados para estrangeiros, mesmo havendo aqui pessoal qualificado que poderia assumir esses cargos. Casos reportados de protestos, por exemplo, do povo Turkana, na fronteira ao norte do Quênia, contra a empresa petroleira britânica Tullow Oil confirmam essa prática deplorável de marginalização dos habitantes da região.

Nosso trabalho, nossas ferramentas

Organizações como a Haki Nawiri Afrika realizam trabalhos de educação técnica e política sobre justiça alimentar para conscientizar as comunidades sobre os processos de produção de alimentos, promoção da agroecologia e realização de debates sobre alimentos. Esses diálogos comunitários, chamados de fóruns tafakari, visam a uma mudança de atitude em relação à comida, ao que comemos, a de onde nossa comida vem e como ela é produzida. Esses fóruns também incorporam a discussão sobre mudanças em políticas governamentais e a conscientização sobre seus impactos nas comunidades.

Por exemplo, como a Lei das Sementes [Seeds Act] afeta pequenos agricultores no Quênia? Qual é o impacto da Lei das Safras [Crops Act] e de outras legislações com potenciais impactos negativos, como a criminalização do uso de esterco animal, sobre os agricultores e as agricultoras e sobre as práticas agrícolas? Têm-se criado espaços nas comunidades para aprendizado e compartilhamento por meio da agroecologia e do trabalho com pequenos agricultores. Antigas tradições e a contribuição dessas práticas para dietas sustentáveis estão sendo discutidas.

Os membros mais velhos das comunidades participam desses espaços compartilhando suas experiências com alimentos e dietas ancestrais e conversando sobre os prejuízos gerados pelo consumo de alimentos processados. Veronica Kalondu, que tem 91 anos e é de Machakos, Quênia, é um exemplo de aprendizado intergeracional. Ela conta histórias do passado sobre como, na prática do pastoreio, ela podia carregar somente uma refeição que duraria até a noite. Ela fala sobre o valor nutricional do alimento indígena e sobre como a música servia como um estimulante durante o cultivo. Ela fala sobre as florestas exuberantes que existiam e que agora foram derrubadas. Ela diz que, no passado, a comunidade local nunca dependia de auxílio alimentar porque o alimento estava disponível, e hoje os dias estão mais quentes, a comida é escassa e sua comunidade recebe auxílio alimentar, conhecido localmente como molio. Do ponto de vista de Veronica, hoje a comida não é mais uma forma de arte como costumava ser, e as crianças não se sentam mais com seus avós para ouvir histórias do passado sobre comida e alimentação. Os pais e as mães estão muito ocupados tentando colocar comida na mesa e deixam as crianças se alimentarem de salgadinho, macarrão instantâneo e salsicha ao invés de refeições nutritivas que as fortaleçam.

Por outro lado, a agroecologia reconhece a importância do aprendizado internacional e da construção de movimentos e desafia estruturas de poder em torno da produção de alimentos, como as questões envolvendo o direito à terra, criando espaços para grupos marginalizados participarem dos processos de tomada de decisão.

A agroecologia gira em torno da criação coletiva de conhecimento. Ela é uma transformação da abordagem que vem de cima, em que acadêmicos extraem informações dos agricultores e criam documentos que só servem para acumular poeira em prateleiras.

Uma resistência centralizada nas pessoas é muito possível, mas somente quando as comunidades se organizam e têm uma visão clara do que elas querem. Sim, os tentáculos das transnacionais estão espalhados pelo mundo todo, mas vale a pena celebrar as formas de resistência que têm surgido em diferentes partes da África onde esses tentáculos estão sendo cortados um a um.


Leonida Odongo é militante pela justiça social e trata de assuntos ligados a alimentos e justiça climática em Nairóbi, no Quênia.  Ela integra a Marcha Mundial das Mulheres e o projeto Espaços Reduzidos de Cidadania [Shrinking Civic Spaces].

Traduzido do inglês por Rosana Felício dos Santos

Edição por Bianca Pessoa e Helena Zelic

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