A luta pelo sobrenome das mulheres casadas na Turquia

05/09/2024 |

Nezahat Demiray

Entenda a história e o atual contexto da luta pelo direito a escolher o próprio sobrenome

Serra Akcan / csgorselarsiv.org

Na Turquia, a prática de se alterar o sobrenome da mulher após o casamento e a obrigação de adotar o sobrenome do marido é uma questão premente para as feministas. As mulheres do país conquistaram direitos civis, o direito ao voto e o direito a se candidatar e ser eleita ao longo de mais de cem anos de luta, afirmando: “somos iguais”. O direito da mulher casada de escolher o próprio sobrenome foi conquistado no país após 30 anos de batalha no campo da lei. No entanto, as mulheres ainda não conseguem exercer plenamente esse direito. O governo insiste em não permitir essa escolha. A luta continua. Aqui, é crucial reconhecer a resiliência, a resistência e a consciência unificada do movimento de mulheres da Turquia.

Embora possa parecer um problema menor para quem não considera o aspecto dos direitos, trata-se, na verdade, de uma questão de fortes implicações políticas em todas as dimensões. O sobrenome de uma mulher casada serve como espaço simbólico cercado de arame farpado, projetado para proteger o poder arraigado do patriarcado. Superar esse arame farpado por meios legais ao longo de trinta anos foi uma conquista relevante para as mulheres no esforço de desmantelar o “mito da sagrada família”.

O sobrenome, como componente do espaço individual e autônomo da mulher em que ela se percebe, se localiza no escopo do direito à vida privada segundo a lei de direitos humanos. Em outras palavras, a mulher é um indivíduo autônomo com identidade própria e não pode ser reduzida a uma mera extensão de um homem, nem confinada aos limites da “sagrada família” por meio do casamento. A imposição patriarcal para que a mulher casada adote o sobrenome do marido é uma ferramenta que tem o objetivo de subordinar as mulheres. Exigir que a mulher abra mão de sua identidade e autonomia ao constituir família é se sujeitar ao poder desmedido do patriarcado. Resistir a essa exigência é confrontar o patriarcado e contribuir para a diminuição de seu poder — contestação que o patriarcado não está disposto a aceitar.

As instituições patriarcais resistiram aos esforços do movimento de mulheres para avançar nas conquistas e nos direitos garantidos pelo Código Civil turco, e é por isso que se recusam a reconhecer e implementar a decisão do Tribunal Constitucional. O patriarcado percebe qualquer demanda por igualdade como um “excesso” que confronta seu poder, sobretudo em questões relacionadas à “sagrada família” e ao “princípio de unidade no sobrenome da família”.

A luta ao longo dos anos

Quando examinamos a trajetória histórica dos movimentos que lutam por direitos humanos, fica evidente que os avanços não ocorrem de maneira linear nem contínua, e que os movimentos progressistas muitas vezes enfrentam a brutalidade da repressão. O movimento pelos direitos humanos das mulheres também avançou por meio de intensas lutas, a despeito da repressão. Em consequência disso, existem momentos decisivos em que o avanço se torna irreversível. Estamos atualmente nessa conjuntura para o movimento pelos direitos das mulheres na Turquia. Apesar de anos de repressão do governo e intervenções sistêmicas e estruturais, a luta que começou há 30 anos para alterar o Código Civil com relação ao sobrenome de mulheres casadas atingiu um ponto crítico.

O Tribunal Constitucional da Turquia rejeitou dois pedidos de anulação do Artigo 187 do Código Civil turco, que obriga as mulheres a adotarem o sobrenome do marido após o casamento. O primeiro foi solicitado em 1998, com o argumento de que a lei era inconstitucional. No entanto, o Tribunal Constitucional não considerou que a obrigação violava o princípio de igualdade consagrado na Constituição e, assim, negou o pedido de anulação. Sem desanimar, as mulheres continuaram na luta. Depois de um período de dez anos de espera exigido pela Constituição, elas entraram com um novo pedido junto ao Tribunal Constitucional. Em 2011, a corte decidiu, pela segunda vez, que a manutenção de um sobrenome comum era obrigatória para proteger a integridade da família e a paternidade dos filhos, afirmando que é necessário adotar o sobrenome do homem, e que essa exigência não contrariaria o princípio da igualdade da Constituição. Assim, o Tribunal Constitucional manteve a posição consistente sobre essa “batata quente” que recebe do patriarcado em intervalos periódicos.

Mais uma vez, o movimento de mulheres não desistiu. Após outro período de espera de dez anos, foi feito um novo pedido junto à corte, pela terceira vez. Em 2023, o Tribunal Constitucional finalmente revogou decisões anteriores, pois não era mais possível ignorar a natureza vinculante das convenções de direitos humanos de que a Turquia é signatária, como a Convenção Europeia de Direitos Humanos e a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Além disso, contribuiu para a decisão da corte turca a luta do movimento de mulheres, ao lado dos avanços legais na promoção da igualdade de gênero, das melhorias implementadas na Constituição, do estabelecimento do direito de petição individual como recurso, no âmbito nacional, para evitar violações de direitos, e das decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos sobre violações no que diz respeito ao sobrenome adotado por mulheres casadas. O Tribunal Constitucional eliminou o problema que persistia há 30 anos — ou seja, o problema do sobrenome das mulheres casadas. Legalmente, essa questão não existe mais na Turquia, pois a lei relevante sobre esse aspecto foi anulada.

Como resultado disso, segundo a decisão de 24 de abril de 2023, as mulheres casadas devem ter três opções: adotar somente o sobrenome do marido; adotar o sobrenome do marido junto do sobrenome de solteira; ou adotar apenas o sobrenome que já tinham antes do casamento.

O registro desta última opção na decisão do Tribunal Constitucional é uma conquista legal de grande relevância.

O atual contexto

A obrigação de mulheres casadas adotarem o sobrenome do marido foi abolida legalmente no dia 28 de janeiro de 2024, quando a decisão do Tribunal Constitucional turco entrou em vigor. No entanto, iniciou-se uma intensa disputa política na Grande Assembleia Nacional da Turquia, que deveria estar em recesso durante o período de calor extremo do verão, e deve voltar às atividades no outono no país. A atual batalha surge da recusa do governo de reconhecer a decisão da corte constitucional, apesar de sua natureza definitiva, após 30 anos de articulação das mulheres. A questão se intensificou e se transformou em uma disputa que questiona se a obrigação da adoção do sobrenome do marido pela mulher após o casamento deve ser mantida, apesar da decisão vinculante de anulação da regra pelo Tribunal Constitucional.

Hoje, os órgãos executivos e legislativos assumiram a tarefa de proteger a fortaleza do patriarcado com relação ao sobrenome das mulheres casadas. A luta das mulheres e a vitória legal reconhecida pela corte constitucional estão sendo ignoradas. O governo incluiu o sobrenome das mulheres casadas no 9.o Pacote Judicial, que é um projeto de lei amplo, como se fosse necessária uma alteração na legislação. Segundo o projeto, as mulheres casadas não poderão adotar apenas o sobrenome que já tinham antes do casamento. O texto do PL pretende restabelecer o dispositivo anulado como inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. A discussão sobre o projeto de lei, que começou no dia 11 de julho de 2024, durou 20,5 horas e terminou no dia 12 de julho. O debate ininterrupto foi realizado na Grande Assembleia Nacional da Turquia, que foi obrigada a adiar o recesso de verão e voltar às atividades. Ancara testemunhou o verão mais acalorado e cruel em termos de direitos das mulheres. Apesar da discussão intensa na comissão, a maioria não se convenceu. O projeto não foi apresentado à plenária para a tramitação final e foi adiado até o fim do recesso de verão.

Ainda que haja relatos de que o projeto de lei possa ser retirado graças aos esforços de comunicação e às lutas do movimento de mulheres, liderado pela Articulação de Mulheres Pela Igualdade (EŞİK), alguns dos principais integrantes do partido no poder e o Ministério da Família e do Serviço Social, essa informação ainda não foi confirmada oficialmente. No novo mandato legislativo, que começa em outubro após o fim das férias de verão, continua existindo a possibilidade de que o governo busque a aprovação da lei na plenária da Grande Assembleia Nacional da Turquia. É evidente que haverá uma batalha desafiadora, prolongada e persistente no parlamento. As organizações de direitos das mulheres e ordens dos advocados da Turquia estão acompanhando a situação de perto. Essa luta é um esforço unificado: proteger o Estado de direito fazendo cumprir decisões judiciais, resistir a um legislativo controlado pelos poderes dominantes que quer solapar vitórias no campo legal, e confrontar o patriarcado na defesa da existência e das identidades das mulheres.


Nezahat Doğan Demi̇ray é doutora em direito constitucional e atua com direitos humanos das mulheres, pobreza e desigualdade de gênero. É integrante da Marcha Mundial das Mulheres na Turquia.

Edição por Bianca Pessoa e Helena Zelic
Tradução do inglês por Aline Scátola
Idioma original: inglês

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