Somos artistas militantes, militantes artistas em defesa da terra

20/09/2021 |

Por Ana Chã

Ana Chã debate o potencial revolucionário das mulheres artistas no campo e na cidade e convida para o chamado de artistas da Via Campesina

MST, 2019

A Via Campesina está com um chamado aberto para contribuições de artistas de todo o mundo com materiais que expressam a luta por soberania alimentar. As inscrições vão até o dia 30 de setembro. As criações podem ser individuais ou coletivas, desde que se relacionem com um ou mais dos quatro eixos propostos: experiências concretas de soberania alimentar, como cooperativas, feiras, sementes, escolas e rádios; retrocessos na política agrícola no mundo, ameaças à reforma agrária, acaparamento de terras, mudanças climáticas, criminalização; disputa entre o modelo de agricultura camponesa e o agronegócio; urgência de uma nova sociedade, com solidariedade, internacionalismo e justiça social. Podem ser canções, videoclipes, poemas, pinturas, fotografias, ilustrações, filmes documentais ou ficcionais e podcasts.

O lugar da arte na transformação social

A palavra “cultura” vem do ato de ocupar a terra, do trabalho com a terra, da ideia de cultivar e habitar. Depois, ela passou a ganhar outros significados e dimensões, mas é importante retomar essa origem, especialmente quando nossa produção cultural é camponesa. É importante pensarmos em arte como uma das expressões de uma cultura ampla e diversa. A arte é, então, algo que ao mesmo tempo expressa a cultura e pode ir além dela.

A arte tem um potencial de transformação. Por ser um elemento da cultura, ela está em relação com a natureza e é essencialmente humana. A arte parte da nossa capacidade de imaginar e projetar situações diferentes daquelas que vivemos imediatamente.

Quando pensamos na arte e na cultura de forma entrelaçada, conseguimos entender a arte como um trabalho. Ela é parte da construção social em que estamos, todos e cada um de nós, inseridos. Criar outras possibilidades é um potencial da utopia: poder olhar para mais longe, ver a promessa da liberdade. Buscando os ensinamentos de Paulo Freire (que em 2021 completaria cem anos) e Augusto Boal, dizemos que a arte não transforma o mundo, mas transforma as pessoas que vão transformar o mundo. Boal nos dizia: “Temos a obrigação de inventar outro mundo. Mas cabe construí-lo com nossas mãos, entrando em cena, no palco e na vida”.

Por ser muito vinculada ao trabalho e à vida real pela expressão dos sentidos humanos, a arte também está ligada aos territórios onde vivemos, sejam eles a terra, o território-corpo, o território-língua. Aí está seu potencial de resistência. Na experiência da arte, você pode ler um livro que foi escrito na Rússia há dois séculos e aquilo ainda poderá te dizer muito sobre sua experiência hoje. Atualmente, diante de tantas ameaças aos povos do campo, das florestas, às mulheres, às diversidades e ao povo negro, a arte nos abre dois caminhos possíveis: o da denúncia e da recusa, e também o de dizer que queremos algo diferente, retomando nossas raízes e apontando uma ética e uma perspectiva de futuro.

MST, 2018

A arte cômoda e individual do capitalismo

Olhar para a raiz das palavras nos ajuda a entender e fazer frente à ideia que nos empurram de que a arte seria para poucos. “Arte” vem do ofício do artesão, do trabalho manual. Depois, as duas ideias se separam, e a arte passa a ser vista como uma atividade mais intelectual e subjetiva que resulta em uma expressão.

Muitas vezes, a arte é encarada como um dom, algo excepcional, separado da nossa vida cotidiana. Mas o que ela tem de excepcional, tem também de muito concreto, pois une ao processo subjetivo toda a realidade objetiva da qual partimos. As cantigas de trabalho, por exemplo, são parte de uma arte do cotidiano marcada pela vida na roça.

Toda arte está inserida em um contexto político e toma lados, seja por afirmação, seja por omissão. O capitalismo transformou a arte em uma mercadoria, pois mesmo nossa subjetividade e nossas formas de expressão estão a serviço do lucro. A lógica do mercado é a do consumo e da contemplação, que nos coloca em uma posição amortecida, acomodada, e nos dificulta estar na condição de produtoras e produtores de cultura. Então, devemos falar de arte e cultura como parte da luta de classes. No campo brasileiro, temos visto como o agronegócio incorporou a dimensão cultural e artística em sua estratégia para construir uma imagem positiva do setor e mascarar os impactos ambientais e sociais negativos da sua atuação.

A glamourização capitalista da arte retira dela a ideia de técnica. Mas todas e todos podemos fazer arte. O que precisamos para isso? Os caminhos para produzi-la. Técnicas podem ser aprendidas. Nossa possibilidade de fazer arte aumentaria se todas e todos tivéssemos acesso às condições materiais necessárias para ampliar e desenvolver nossa técnica, nosso repertório, e concretizar nossa produção. Todas podemos ser artistas militantes e militantes artistas.

Quando nos dizem que só alguns podem cantar ou desenhar, vemos quem são esses “alguns”. Há um lastro de condições que permite que algumas pessoas toquem música e outras não. O chamado da Via Campesina é, inclusive, pedagógico para afirmar que todo mundo pode fazer, respeitando toda a diversidade de formas e linguagens possíveis dos povos do mundo.

La Vía Campesina, 2013

Acúmulos e experiências camponeses para fortalecer a cultura e a arte

Pela arte e pela cultura, os povos em luta têm o potencial da disputa de significados e mesmo de enfrentamento. Hoje vivemos uma conjuntura que muitos identificam como guerra cultural, com a extrema direita recuperando valores tradicionalistas em todo o mundo, criando um discurso de ódio e de eliminação de inimigos.

A arte afirma os direitos dos povos indígenas e camponeses ao cumprir o papel de dizer que “estamos aqui e não arredamos pé” e de nos mexer, ampliar as fronteiras. Tudo o que é humano é possível de ser mudado, inclusive a arte, a cultura, o trabalho, a sociedade.

A Via Campesina nos lembra quem somos e nos chama a luta para onde queremos. Por ser uma articulação de movimentos, ela reflete em suas práticas internacionais o que suas organizações de base ensinam. O movimento camponês se preocupa em trazer suas heranças culturais que celebram os ciclos da natureza, como são as festas da colheita e do plantio. Essa herança se soma à dos movimentos de esquerda revolucionários, com seus cancioneiros, expressões gráficas e outras formas de produção. Assim, dialogamos com o mundo sem deixar de trazer o que é singular e particular de cada região.

Em nossos encontros e conferências internacionais, fazemos a mística, que é um momento de partilha de expressão artística que alimenta nossas propostas e orienta nossos próximos passos. Nesses espaços internacionais, a mística também nos permite conhecer as expressões artísticas e culturais de lugares que não conhecemos e, assim, ampliar nossa visão de mundo. A produção artística e cultural é um elemento organizativo e formativo.

Nesse contexto de pandemia, as produções artísticas não pararam, apesar de todos os obstáculos. Vimos músicas feitas por pessoas de diferentes partes do mundo, vimos chamadas de materiais culturais em solidariedade à luta camponesa na Índia, por exemplo. Por suas múltiplas linguagens, essas chamadas conseguem ultrapassar barreiras do idioma e ampliar o alcance das lutas.

Ao longo de seus 25 anos de existência, a Via Campesina se fortalece ao trabalhar esses elementos. O chamado para artistas pela soberania alimentar que lançamos agora é uma tentativa de organizar isso que já acontece de forma espontânea, espalhada pelos quatro cantos do mundo.

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Apresentamos abaixo algumas artistas comprometidas com a luta pela soberania alimentar:

As Cantadeiras

As Cantadeiras é um grupo musical de quatro mulheres que existe há doze anos. Somos todas militantes do MST que gostamos de nos encontrar para trazer alegria e música para nossas vidas e de nossas companheiras e companheiros. Víamos que havia poucas mulheres tocando instrumentos, uma situação que vem mudando, em boa parte,graças ao movimento feminista. Estamos agora no exercício da composição para enviar no chamado da Via Campesina. Temos um repertório das lutas populares e sempre damos centralidade à força das mulheres. Muitas vezes nos dizem que somos a forcinha que faltava para as mulheresse arriscarem a fazer música, e isso é muito inspirador.

Marcia Miranda

Sou de uma família camponesa e mineira da comuna de Alhué, no Chile. Sempre vi injustiças no trabalho dos camponeses e a exploração no trabalho de mineração. Quando cheguei na Associação Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas (ANAMURI), elas estavam começando e precisavam desenhar sua imagem, criar cartazes, folhetos e publicações. Foi muito enriquecedor conhecer, através da organização, a realidade de outras mulheres. Cada uma delas, com suas experiências e conhecimentos, tem sido uma inspiração.

Sophie Holin

Durante minha pesquisa em Cuba, tive contato com o poder da arte revolucionária e sua capacidade de mudar a história. Sinto que tenho sorte por poder combinar minhas habilidades artísticas com meu compromisso com o movimento camponês. Através de meu trabalho, pretendo criar uma arte que facilite a conexão das pessoas com políticas e conhecimentos técnicos que possam ser usados para nos mover em direção à soberania alimentar. As ilustrações de História Natural e o próprio mundo natural são fonte de inspiração e prática para os aspectos técnicos de minhas ilustrações.

Luara Dal Chiavon | Brigada Audiovisual Eduardo Coutinho

O cinema é o lugar onde me encontrei para materializar minhas contribuições para a luta. Para fazer um cinema de luta, é necessário entender que ele é apenas uma ferramenta a serviço da organização popular. Organizamos as brigadas audiovisuais do movimento para construir nossa própria mídia, caminhando junto com a organicidade do movimento. Nosso trabalho é construir uma linguagem que seja popular e revolucionária.

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Ana Chã é musicista n’As Cantadeiras, faz parte da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra do Brasil (MST) e atua no setor de cultura da organização. É autora do livro Agronegócio e Indústria Cultural.

Edição por Helena Zelic com contribuições de Viviana Rojas

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