A trajetória das mulheres que enfrentam o fundamentalismo religioso no Paquistão

04/06/2021 |

Por Capire

Capire conversou com Bushra Khaliq, da Marcha Mundial das Mulheres, sobre as lutas das mulheres do Sul da Ásia por direitos e liberdade.

Sara Hylton/National Geographic

No Paquistão, a cultura e a vida cotidiana são dominadas pela religião. A partir de 1977, ocorreu a islamização que levou à formação da República Islâmica do Paquistão. A Constituição e as leis foram alinhadas ao Corão e à sharia[1]. Assim, a religião vai muito além de uma questão pessoal ou política: é a ideologia do Estado e de suas instituições, são as leis que impõem uma série de obstáculos à vida e à autonomia das mulheres e de minorias religiosas. A criminalização e a penalização institucionalizada sob a acusação de “blasfêmia”[2] faz parte do controle do Estado sobre a vida das mulheres e representa um desafio para a organização feminista e popular.


Para entender mais sobre o impacto do fundamentalismo religioso sobre a vida das mulheres no Paquistão, Capire conversou com Bushra Khaliq, diretora-executiva da organização Mulheres na Luta por Empoderamento (Women in Struggle for Empowerment – WISE) e representante da Ásia no Comitê Internacional da Marcha Mundial das Mulheres. Leia a entrevista abaixo:

Muitos são os desafios enfrentados pelas mulheres paquistanesas. A violência tem raízes profundas na sociedade, e os movimentos feministas ainda têm um longo caminho pela frente. Nos últimos anos, os movimentos fundamentalistas religiosos vêm ganhando espaço. Poderia contextualizar a situação política e religiosa no Paquistão e como a chamada terceira onda de fundamentalismo religioso tem afetado a vida das mulheres?

A religião passou a ter mais influência no nosso dia a dia. É uma questão cotidiana. O direito das mulheres, incluindo a mobilidade, a decisão sobre o casamento, a própria aparência, a sexualidade, tudo isso é controlado pelo sistema patriarcal, articulado com a religiosidade. No Paquistão, a idade mínima para casamento é de 16 anos para meninas e de 18 para meninos. Nós não podemos reivindicar nossa carteira nacional de identidade nem assinar contratos antes dos 18 anos, mas podemos nos casar aos 16. Essa noção vem muito da religião, que diz que, ao atingir a puberdade, a menina está apta a casar, e isso provoca muitos casamentos forçados.

Em todo o Paquistão, as mulheres estão exigindo o aumento da idade mínima para o casamento de meninas para 18 anos, mas a lei é muito rígida e foi elaborada com base na sharia e nessa mentalidade religiosa. Os parlamentares e outros intelectuais religiosos sempre se unem em resistência a essa demanda. Muitas meninas são obrigadas a se casar aos 16 anos de idade e enfrentam as consequências desse tipo de união e da violência. Em segundo lugar, existe uma instituição chamada Conselho de Ideologia Islâmica, uma estrutura e um comitê chefiado principalmente por homens. Eles tomam decisões sobre as leis e, sempre que apresentamos denúncias sobre o que mulheres e meninas sofrem, esse conselho aparece com grande resistência e recusa nossas demandas. Essas pessoas dizem que nossas demandas são “não islâmicas” e que somos influenciadas pelas pautas ocidentais.

Cerca de 3% da população do Paquistão é de minorias religiosas (97% da população é muçulmana). A Constituição estabelece que todas as pessoas são iguais e têm direitos iguais garantidos, mas, por outro lado, a prática vai na direção oposta. Assistimos a incidentes de mulheres dessas minorias, inclusive cristãs e hindus, que são muitas vezes obrigadas a se converter ao islamismo. As pessoas dessas minorias ficam desamparadas, porque, se procurarem ajuda na polícia, não receberão justiça.

Na verdade, no Paquistão, qualquer pensamento progressista ou discussão sobre a emancipação das mulheres pode se transformar em ameaça à segurança de quem pauta o debate.

Como essa situação política e religiosa se relaciona com as políticas econômicas?

Quanto à relação dessa mentalidade com a construção da autonomia econômica das mulheres no nosso país, vemos que estamos na posição mais baixa. Nossa participação na força de trabalho é de apenas 23%. Isso porque este é o conceito assumido pelos homens: de que as mulheres devem cuidar da casa e dos filhos. Sair não é considerado bom para elas. O corpo, as escolhas, o conceito de desenvolvimento das mulheres é direcionado e controlado pelos homens da família. O patriarcado regula as nossas vidas. Nosso movimento e nossa mobilidade são restringidos e, na maioria das vezes, não estamos seguras quando saímos de casa. Quando a mulher sai, ela pode ser assediada, humilhada, estuprada, desrespeitada.

Além disso, a situação econômica e social das mulheres é afetada por essa mentalidade. Aqui temos as leis de herança. Entre irmãos, o filho receberá uma herança duas vezes maior que as filhas. A fatia que recebemos da economia de nossos pais está sendo dividida com base em discriminação. Esse tipo de recurso pode ajudar as mulheres a melhorarem sua condição econômica. Mas, aqui, a maioria dos irmãos e pais estabelece formas de privar as filhas da herança.

Vemos que apenas um pequeno número de mulheres trabalha e participa da vida pública. Existem bons exemplos de mais mulheres que se tornam empreendedoras, buscam novas profissões, mas ainda vemos que a maioria é forçada a ficar em casa realizando trabalho de cuidados não remunerado. Esse é o ciclo de entendimento e práticas que nos torna mais vulneráveis e menos ativas economicamente.

As mulheres atuam no setor agrícola, na pesca e na indústria como operárias, mas o capitalismo, a mentalidade patriarcal e sobretudo essa mentalidade religiosa são os três obstáculos estruturais e sistêmicos para a autonomia econômica das mulheres.

Como é isso em outros países do Sul da Ásia? Esses elementos são comuns?

Índia, Paquistão, Bangladesh e Afeganistão estão no Sul da Ásia. A maioria dos problemas são comuns a todos os países dessa região. Na Índia, há raízes patriarcais e isso afeta o cotidiano das mulheres, mas, por outro lado, o Estado se separa da religião. Vemos que há uma imensa mobilização social. As mulheres estão na rua nessas mobilizações sociais fantásticas, derrubando barreiras e rompendo o silêncio. As agricultoras e os agricultores estão enfrentando as leis favoráveis ao agronegócio. Inicialmente, os agricultores saíram às ruas aos milhões para protestar, mas, mais tarde, milhares e milhares de agricultoras também foram às ruas, protestando e criando uma nova história de resistência. Mesmo com todas as dificuldades, há mulheres maravilhosas e aguerridas lutando contra a mentalidade religiosa e patriarcal também.

No Afeganistão, as mulheres sofrem há 40 anos por causa da interferência hegemônica dos Estados Unidos em nome do desenvolvimento, da jihad[3] e da guerra contra o terrorismo. Os direitos das mulheres não são prioridade. Muitos crimes e violências são cometidas contra as mulheres afegãs, não só dentro de casa, mas no parlamento, na rua. Uma coisa é o terrorismo e o extremismo, mas a forma como a vida das mulheres está sendo destruída também é um grande problema e um desafio.

Da mesma forma, em Bangladesh, a religião tem um impacto maior na vida das pessoas. Na última década, vemos um progresso no país. Estão propondo leis progressistas e as mulheres estão sendo integradas às atividades econômicas. Muitas mulheres hoje começam a participar da vida pública, mesmo que sejam oprimidas na vida privada. Mesmo assim, a pobreza e outros problemas sociais ainda existem.

Se você tiver uma opinião divergente sobre essas questões, estará mais vulnerável nesses lugares. Claro, enfrentamos aqui uma multiplicidade de camadas da agenda patriarcal, religiosa e capitalista, mas, ao lado disso, vemos que os movimentos feministas e populares estão sendo conduzidos de forma magnífica em todos esses países. Isso nos dá força e esperança de uma vida digna, direitos básicos, poder de decisão sobre nossa própria sexualidade, nossos corpos e nossas escolhas.

Quais são as estratégias das mulheres para se defender desse fundamentalismo religioso?

Preciso contar sobre a recente onda de feminismo no Paquistão, que é mais inclusiva em termos das próprias mulheres. As questões que estamos destacando nunca tinham sido debatidas na esfera pública. A primeira onda do feminismo surgiu há cerca de 60 ou 70 anos, quando as mulheres começaram a lutar por participação na vida pública e passaram a se envolver com o trabalho filantrópico. Começou com as mulheres de grandes famílias ricas que vinham de uma trajetória política.

Desde a islamização [iniciada sob o regime militar entre 1977 e 1986], as mulheres do Paquistão impuseram uma imensa resistência. As pessoas progressistas mostraram resistência e podemos dizer que essa foi a segunda onda do feminismo por aqui. Elas questionaram as leis islâmicas, que tinham um viés negativo contra os direitos das mulheres e impactavam sua vida econômica, política e social. Por um lado, estávamos enfrentando a ditadura militar e, por outro, havia a mentalidade religiosa dos partidos políticos. O grande movimento de resistência liderado pelas mulheres contestou essas leis, práticas e conceitos negativos e institucionalizados.

A terceira onda é um protesto contra a opressão social, o estupro, o patriarcado, o capitalismo e a violência contra as mulheres. Estudantes, profissionais, pessoas trans e pessoas que atuam em organizações não governamentais se uniram ao movimento e trouxeram suas próprias questões relacionadas às privações econômicas que enfrentavam. O sistema capitalista estava sendo questionado e os debates sobre igualdade foram ganhando cada vez mais força. Foi na época em que organizações sociais e ONGs  começaram a surgir, e por isso muitas vozes vinham de cantos diferentes.

Hoje, já há quatro ou cinco anos, pessoas trans e não binárias, mulheres com deficiência, mulheres com baixa escolaridade, trabalhadoras rurais, operárias, mulheres comuns, intelectuais, estão todas juntas na liderança sob a bandeira “Aurat march”, expressão urdu que significa “as mulheres estão marchando”. As mulheres estão protestando, e nós denunciamos a cultura do estupro, a dominação masculina nos lares, nas ruas, nos locais de trabalho. Denunciamos o assédio sexual e exigimos respeito e dignidade para todas as pessoas.

Não podemos dizer essas palavras em público, mas, no coletivo, as mulheres estão juntas. Essa unidade é a melhor estratégia para denunciar essas violências e combater essas forças.

Avançamos, apesar do fato de que, todo ano, no Dia Internacional de Luta das Mulheres, os fanáticos e extremistas religiosos fazem um barulho enorme e atacam mulheres e meninas. Neste ano, a lei contra a blasfêmia estava em votação e isso deu propósito às mulheres do país. Elas estão nas ruas, pautando temas difíceis que nunca tinham sido debatidos na esfera pública, como estupro, violência sexual, questões reprodutivas e religião forçada, e elas são acusadas com base nas leis contra a blasfêmia. Assim é possível ver como o mau uso da religião pode ser empregado para silenciar as vozes das mulheres.


[1] A sharia é a lei islâmica, apoiada no Corão e nos hádices, textos complementares dessa fé. É adotada em diversos países de maioria muçulmana.

[2] Herdadas dos britânicos e instauradas na década de 1980, as leis contra a blasfêmia do Paquistão punem quem insultar o islã. Sabe-se que há um uso abusivo dessa legislação para punir as pessoas que lutam por direitos e liberdade de expressão, incluindo homens, mulheres, autores e autoras, jornalistas e minorias religiosas.

[3] Jihad é um termo árabe para referir-se a empenho, luta, esforço. Também é um dos conceitos do Islã, que comporta os deveres religiosos para a manutenção e disseminação da fé. O termo é, muitas vezes, utilizado por grupos extremistas para se referir à defesa armada e ao combate religioso contra os “infiéis” ou não-muçulmanos.

Entrevista conduzida por Bianca Pessoa e Tica Moreno
Edição de Helena Zelic
Traduzido do inglês por Aline Scátola

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