Feminismo popular e antirracista em marcha por reparação e bem viver

16/12/2025 |

Por Bernadete Esperança Monteiro e Maria Rosineide Pereira

A 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver tomou as ruas de Brasília para pautar reivindicações do feminismo antirracista

Marcello Casal jr/Agência Brasil

No dia 25 de novembro, aconteceu em Brasília, capital brasileira, a 2ª Marcha Nacional das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. Dez anos após a primeira marcha, mulheres negras de vários territórios do país e também internacionais ocuparam as ruas levando toda a sua potência de luta. Levaram denúncias e reivindicações, mas também deram visibilidade às resistências e alternativas construídas a partir de seus territórios nas cidades, nas periferias, no campo, nos roçados e florestas.

Essa mobilização de massas explicitou que as mulheres negras são aquelas que estão na base da sustentação do modelo capitalista, racista e patriarcal. Escancarou a divisão sexual e racial do trabalho, que organiza o trabalho na sociedade brasileira e destina às mulheres negras os trabalhos mais precários e com pior remuneração. Não foi apenas uma manifestação: foi a expressão de uma força telúrica, a prova de que mulheres são como águas que, ao se encontrarem, irrompem rios. Milhares de corpos negros pintaram a Esplanada com as cores de uma cultura ancestral que segue viva e pulsante.

Ocupar o coração do poder político é mais do que um ato simbólico. É afirmar que nenhum projeto de país será construído sem elas, muito menos contra elas. As mulheres negras, cujos corpos são historicamente violados, explorados e objetificados, se colocaram em marcha para demarcar a rua como seu território de poder e ancestralidade. Cada passo no asfalto de Brasília foi um desafio à herança da casa-grande, um resgate da memória de Dandara, Aqualtune, Maria Felipa e Negra Zeferina, uma afirmação da potência da vida contra a necropolítica.

O processo de mobilização da Marcha das Mulheres Negras também nos permitiu explicitar que temos projetos em disputa quando falamos de reparação e bem viver. Nós, mulheres negras organizadas em movimentos populares, materializamos a reparação e o bem viver como um projeto popular para o país. As pautas levantadas – contra o racismo e a violência, pelo fim do genocídio negro, por emprego, renda e pela demarcação de terras – são a espinha dorsal de projeto alternativo ao neoliberalismo, um projeto que coloca a vida, a dignidade e a justiça social no centro. É a afirmação de que a solução para a crise não virá dos mesmos que a criaram, mas da organização popular e da sabedoria ancestral dos povos que sempre resistiram.

A presença massiva das mulheres negras na rua é um lembrete contundente de que o Brasil tem uma dívida impagável com a população negra. A quitação dessa dívida não é uma questão de favor, mas de justiça.

A luta pelo bem viver traduz o projeto político que as mulheres negras engendram. Esse projeto é fundado na construção de outras formas de existência, condição de vida e dignidade.

A luta feminista e antirracista contemporânea exige que a bandeira da reparação histórica seja erguida como pilar central. Não se trata de um mero pedido de desculpas ou de ações simbólicas, mas da exigência de uma transformação radical nas estruturas econômicas, políticas e sociais do país. A reparação se manifesta em três frentes indissociáveis, que dialogam diretamente com as pautas trazidas pelas mulheres negras que ocuparam as ruas de Brasília em marcha, e que trazemos abaixo.

Reparação econômica e institucional

A escravidão foi o alicerce da acumulação de capital no Brasil. Instituições como o Banco do Brasil, conforme revelado por inquérito do Ministério Público Federal, lucraram diretamente com o tráfico e a exploração de pessoas escravizadas. A abolição da escravidão, em 1888, foi uma transição de modelo de exploração que deixou a população negra liberta sem terra, sem moradia, sem educação e sem qualquer tipo de compensação. A dívida é, portanto, material e quantificável.

Propostas como a Proposta de Emenda Constitucional 27/24, a “PEC da Reparação”, são marcos fundamentais por moverem a discussão do campo ético para o da responsabilidade legal e financeira. Como afirma a cientista social Tássia Mendonça, não bastam ações no campo da representação: “a gente quer acesso a crédito. É saber o quanto o Banco do Brasil lucrou com a população negra e o quanto que ele deixou de investir nessa população”. A reparação econômica exige o ressarcimento e o investimento massivo para reverter o ciclo de empobrecimento e vulnerabilização imposto historicamente à população negra.

Reparação fundiária: a terra como raiz da dignidade

A questão fundiária no Brasil é inseparável da questão racial. A Lei de Terras de 1850, promulgada estrategicamente antes da abolição, garantiu a concentração da propriedade nas mãos da elite branca e transformou o latifúndio em um projeto racista de exclusão. A população negra, majoritária no campo, é a que menos detém terras. A Reforma Agrária Popular emerge como um ato fundamental de reparação. Lutar pela terra é lutar pela autonomia econômica, pela soberania alimentar e pela dignidade do povo negro.

A reparação fundiária exige a desapropriação de latifúndios improdutivos, a titulação imediata de todas as terras quilombolas e o acesso a crédito e tecnologia para que as comunidades possam prosperar. É quebrar a espinha dorsal do projeto de exclusão que nos foi imposto desde a invasão colonial.

Reparação interseccional: as mulheres negras no centro da decisão

A luta pela reparação deve, obrigatoriamente, ser conduzida sob a lente da interseccionalidade, reconhecendo que as mulheres negras carregam o peso combinado do racismo e do patriarcado, elos fundamentais na estruturação do capitalismo. A pesquisa “DNA do Brasil”, da Universidade de São Paulo, revela a ancestralidade paterna majoritariamente europeia e a materna africana e indígena. Assim, escancara o histórico de violência sexual que marca a formação do nosso país.

A reparação, portanto, deve ter um foco especial em políticas de educação, saúde, moradia, terra, socialização do trabalho doméstico e de cuidados e geração de renda para as mulheres negras. Mais do que isso, é imperativo que as mulheres negras estejam na mesa de decisões. São elas que podem garantir que políticas como as cotas e o Bolsa Família sejam defendidas dos ataques conservadores e que novas políticas sejam criadas a partir de suas vivências e necessidades. A reparação é também a valorização da memória e da liderança de lutadoras históricas, resgatando seus saberes e sua centralidade na construção da resistência.

O futuro é ancestral e a resistência é negra, indígena e popular

O desafio que enfrentamos é a resistência ideológica que tenta deslegitimar a reparação, tratando-a como “privilégio” ou “racismo reverso”. Nossa resposta deve ser firme: a reparação é a possibilidade de correção de uma injustiça histórica que impede o Brasil de ser uma verdadeira democracia.

As mulheres negras em marcha, com sua potência simbólica e material, mostram o caminho de construção do bem viver como parte desse projeto político de transformação. E ensinam que, diante da crise do capitalismo e do avanço do neoliberalismo misógino e racista, a única saída é aprofundar a organização popular, fortalecer a resistência nas ruas e lutar incansavelmente por um projeto de país baseado na reparação histórica e no bem viver. A transformação do Brasil será liderada pelas mulheres negras, ou não será. O futuro que almejamos depende da nossa capacidade de transformar a dívida histórica em ação reparatória radical, construindo um país onde o bem viver seja, finalmente, um direito de todas e todos, e não um privilégio de poucos. Por isso, organizamos o feminismo antirracista e popular e estamos em marcha até que todas sejamos livres!

Bernadete Esperança Monteiro integra a coordenação nacional da Marcha Mundial das Mulheres do Brasil. Maria Rosineide Pereira integra a coordenação do Coletivo Terra, Raça e Classe do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil.

Edição e revisão por Helena Zelic

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