Uma análise feminista da atual conjuntura e das mobilizações na Turquia

30/04/2025 |

Irem Bağcı

Leia sobre a oportunidade de fortalecer o movimento feminista em meio a marchas, protestos e boicotes econômicos contra o autoritarismo

Nas últimas eleições municipais da Turquia, em 2024, o Partido Popular Republicano (CHP) venceu em grandes municípios como Istambul, Ancara, Izmir e outras 32 cidades. A sigla faz oposição ao Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Recep Tayyip Erdoğan, que está no comando do governo federal desde 2002. Na região do Curdistão, o AKP também sofreu uma grande derrota, onde o Partido da Esquerda Verde (DEM) venceu em 10 municípios.

Ainda que tenham alcançado grandes vitórias, os partidos da oposição enfrentam a nomeação de administradores pelo governo federal. Esse tipo de nomeação ocorre quando um prefeito é destituído do cargo e substituído temporariamente por um funcionário indicado pelo Estado (geralmente um governador de uma província ou de um distrito). Na Turquia, essa é uma prática particularmente comum adotada depois que prefeitos eleitos são destituídos sob alegações de terem “vínculos com o terrorismo”. Trata-se de uma estratégia usada para que um nomeado pelo governo assuma a gestão de um município em vez de um prefeito eleito pelo voto popular. O governo federal abriu caminho para a nomeação de administradores para os municípios após a tentativa de golpe de 15 de julho de 2016. Entre 2016 e 2019, foram nomeados administradores em mais de 95 municípios, sobretudo naqueles em que o Partido Popular Democrático, partido político do movimento curdo, havia conquistado vitórias eleitorais. Após as eleições de 2024, a partir de 9 de abril de 2025, foram nomeados administradores para um total de 6 municípios provinciais e 7 distritais, e dois prefeitos do CHP foram presos e destituídos do cargo.

A próxima eleição presidencial acontecerá em 2028, e há um boato de que Recep Tayyip Erdoğan (AKP), no poder há mais de 10 anos, quer se candidatar novamente, o que não é permitido pela Constituição. Diante dos ataques aos direitos fundamentais, da crescente crise econômica e do regime totalitário do AKP, o partido de oposição CHP começou a realizar uma campanha para eleições antecipadas.

Ataques recentes

O prefeito de Istambul, Ekrem İmamoğlu, obteve um excelente resultado em duas eleições locais consecutivas e se tornou uma figura importante na política turca. Após essas vitórias, a opinião pública passou a considerar que İmamoğlu deveria ser o candidato da oposição à presidência do país. Acompanhando sua popularidade, diversas investigações começaram a ser abertas contra İmamoğlu pelo que foi dito em alguns de seus discursos por transações realizadas no município. Uma das investigações tem o intuito de anular o diploma do prefeito porque ele havia mudado de universidade na graduação. Na Turquia, é necessário ter diploma universitário para concorrer à presidência. Em resposta à intimidação contra İmamoğlu por meio de investigações, o CHP anunciou que realizará uma eleição primária para determinar quem será o candidato do partido à presidência.

Em 18 de março de 2025, o diploma universitário de İmamoğlu foi anulado pela sua alma mater, a Universidade de Istambul. No início da manhã de 19 de março de 2025, İmamoğlu foi levado de sua casa sob custódia por acusações de terrorismo e corrupção. Dois prefeitos distritais e diversos funcionários municipais também foram detidos como parte da mesma investigação.

Outra investigação, baseada em depoimentos sigilosos de testemunhas, alega que İmamoğlu, juntamente com seus aliados políticos, se envolveu em casos de corrupção no município. Em outra ainda, há alegações de que ele colaborou com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e deu dinheiro à organização para ganhar as eleições municipais. A detenção de Ekrem Imamoğlu, que parece ter ocorrido sem base em nenhuma prova concreta, é considerada pelo público como a maneira do governo de tentar dominar o rival mais forte de Erdoğan. Após as detenções, grandes protestos foram organizados, especialmente com chamados vindos de estudantes de universidades. Foi significativo que o primeiro grande protesto para romper o bloqueio policial tenha começado na Universidade de Istambul, onde Ekrem İmamoğlu se formou. Os protestos começaram em 19 de março em Istambul e em muitas outras cidades. No dia 23 de março, 48 pessoas, incluindo İmamoğlu, foram presas e acusadas de corrupção, e outras três pessoas foram presas sob acusação de terrorismo. İmamoğlu foi destituído do cargo.

Os protestos que estão acontecendo no país são os maiores registrados desde a Resistência de Gezi, em 2013.

Destaque (letras pequenas): São manifestações contra não apenas a prisão de İmamoğlu, mas também contra o uso do poder judicial pelo AKP como instrumento de repressão política, autoritarismo e ataques aos direitos democráticos promovidos desde o dia em que o partido chegou ao poder.

É importante destacar que há diferenças importantes entre os protestos atuais e as manifestações do passado. A Resistência de Gezi, que ocorreu há cerca de 12 anos, foi um protesto pacífico e de larga escala. Também era uma mobilização de esquerda e profundamente contrária à guerra e à militarização. Na época, eu estava no ensino médio e aquele foi meu primeiro protesto. O clima era de unificação em oposição às políticas do governo.

Por causa das políticas implantadas pelo governo nos últimos 12 anos, das mudanças no sistema educacional e do fortalecimento da direita, desta vez vemos um grupo diferente de jovens participando dos protestos. Eles são mais militaristas e mais nacionalistas. Influenciados por mudanças no sistema educacional ocorridas sob o governo do AKP, muitos dos estudantes adotam uma retórica mais agressiva e, às vezes, violenta. Eles têm feito insultos machistas, usado linguagem racista e palavras de ordem hostis, criando uma atmosfera mais divisionista. Embora esses grupos não consigam grande repercussão em protestos onde os movimentos sociais e os partidos de esquerda estão bem representados, eles tentam dominar os protestos onde há um número maior de pessoas não organizadas.

Essa mudança é preocupante sobretudo para grupos marginalizados, incluindo feministas, pessoas queer e a população curda. Muitas das minhas amizades entre pessoas desses grupos expressaram sentir insegurança em protestos dominados por esses grupos porque a cultura jovem dominante nesses movimentos parece excludente e, por vezes, hostil. Ainda que sejam importantes, os protestos podem se tornar espaços difíceis para esses grupos participarem. Por isso, as feministas denunciam o uso de palavrões machistas, lemas racistas e palavras de ordem em espaços de resistência, afirmando: “Não somos objetos em palavrões, somos sujeitos em resistência”.

O governo respondeu com violência policial e prisões. Milhares de pessoas foram detidas e quase 300 estudantes universitários foram presos. Quase 300 dos jovens e universitários presos eram progressistas, feministas e de esquerda, alguns deles organizados em movimentos sociais e partidos de esquerda. Os advogados das pessoas detidas relataram que as mulheres foram submetidas a violência sexual, revistas vexatórias, insultos e tratamentos degradantes. Para impedir os protestos, o governo estabeleceu nove dias para um feriado religioso que normalmente duraria três dias. Esperava-se que isso acabasse com os protestos nas ruas e nas universidades, mas, assim que o feriado acabou, os estudantes universitários voltaram a se mobilizar.

Ao mesmo tempo, houve anúncios do governo para iniciar um novo processo de paz com o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) no primeiro semestre de 2024. Na sequência desses apelos, o líder do PKK1 Abdullah Öcalan é uma figura política curda que fundou o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) em 1978. Após muitos anos de conflito armado, ele teve participação no processo de paz da década de 2000 e está preso no Presídio de İmralı, na Turquia, desde 1999. Desde 2011, ele não conseguia ter reuniões regulares com seus advogados e, entre 25 de março de 2021 e fevereiro de 2025, foi mantido em condições de isolamento absoluto., Abdullah Öcalan, que estava em isolamento absoluto desde 25 de março de 2021, teve autorização para se reunir com parlamentares e, em fevereiro de 2025, fez uma declaração chamando o PKK para baixar as armas. Ainda que esse seja um desdobramento importante após anos de criminalização do movimento curdo e de ativistas pela paz, há críticas pela falta de transparência no processo.

Após esse processo de paz, muitos argumentaram que o povo curdo e o movimento curdo não queriam participar dos protestos a favor de Ekrem İmamoğlu. Apesar disso, o movimento curdo condenou as prisões e participou dos protestos, embora não com toda a sua mobilização. É possível dizer que o movimento curdo, que tem tido prefeitos e parlamentares eleitos substituídos por administradores desde 2016, não recebeu o apoio necessário do CHP e de alguns movimentos sociais. Por esse motivo, podemos dizer que o movimento hesita em organizar uma grande mobilização para os protestos atuais. Outra razão é que eles não querem que haja prejuízo para as negociações de paz que foram retomadas.

Mobilizações populares

Durante esses protestos, em resposta às demandas da população, o CHP propôs outra forma de mobilização: um boicote econômico. Muitos dos grandes empresários da Turquia estão no governo ou são sabidamente próximos do governo. A resposta pública a esse apelo ao boicote tem sido forte. No dia 2 de abril, houve um chamado para um boicote econômico total, com um apelo para paralisar todo o consumo. Depois disso, os movimentos sociais declararam que toda quarta-feira é dia de boicote econômico total. Esse é um movimento poderoso, e o governo agora está preocupado, pois essas empresas estão enfrentando uma situação difícil por perderem o apoio dos consumidores.

Além disso, os mercados e os produtores locais estão ganhando apoio e os mercados de escambo estão se tornando mais comuns. Esses mercados oferecem uma alternativa às grandes corporações que apoiam o governo. Esse cenário pode criar uma transformação significativa no relacionamento das pessoas com a economia nas próximas semanas.

As feministas da Turquia continuam participando dessas ações e buscam criar espaços seguros de resistência. O movimento feminista, que é a oposição mais forte ao governo, continua sendo criminalizado no cotidiano. O governo declarou 2025 como o “Ano da Família”. Há alguns meses, soubemos que eles estavam trabalhando em um projeto de lei para criminalizar mulheres e pessoas queer. Na Turquia, onde já não se aceita a igualdade no casamento, o projeto de lei inclui artigos como prisão por cerimônias simbólicas, como noivado e cerimônias de casamento organizadas por casais queer.

Durante anos, ninguém foi tão capaz de realizar protestos contra o governo quanto o movimento feminista, apesar da criminalização enfrentada pelas organizações feministas.

Agora, há uma oportunidade importante de fortalecer o movimento, sobretudo entre mulheres jovens que estão ansiosas por mudanças. Muitas jovens estão buscando os movimentos feministas como única fonte de confiança e esperança de transformação. Estão acontecendo diversos eventos, fóruns e saraus nas universidades, o que pode ser um momento crucial para a organização de jovens feministas. Continuaremos fortalecendo a luta por uma vida igualitária, livre, justa e não violenta.


[1] Abdullah Öcalan é uma figura política curda que fundou o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) em 1978. Após muitos anos de conflito armado, ele teve participação no processo de paz da década de 2000 e está preso no Presídio de İmralı, na Turquia, desde 1999. Desde 2011, ele não conseguia ter reuniões regulares com seus advogados e, entre 25 de março de 2021 e fevereiro de 2025, foi mantido em condições de isolamento absoluto.

Editado por Bianca Pessoa e Tica Moreno
Traduzido do inglês por Aline Scátola
Idioma original: inglês

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