Vozes das mulheres palestinas

30/03/2024 |

Capire

No Dia da Terra Palestina, publicamos as denúncias das mulheres palestinas e ecoamos suas lutas por soberania e autodeterminação

Escutar as vozes das mulheres palestinas é condição fundamental para compreender as formas históricas e atuais do genocídio do povo palestino. Além de denunciar os mais de 30 mil  palestinos assassinados por Israel – sendo cerca de 25 mil mulheres e crianças – desde outubro de 2023, as falas das mulheres palestinas mostram como o genocídio não se resume aos números, mas é uma política articulada. O genocídio é um ataque às bases que sustentam a vida: a terra, os corpos, o trabalho cotidiano de produção e reprodução da vida do povo palestino.

As mulheres palestinas estão em luta, resistem todos os dias e enfrentam a brutalidade do imperialismo em seus corpos e territórios. Elas nos convocam a massificar a luta pela Palestina livre, do rio ao mar. Como parte das 24 Horas de Solidariedade Feminista, ação convocada pela Marcha Mundial das Mulheres neste 30 de março, Dia da Terra Palestina, ecoamos algumas vozes palestinas compartilhadas nos dias 21 e 22 de março, em seminários organizados pelas mulheres da Via Campesina e da Marcha Mundial das Mulheres.

A terra palestina

“Neste Dia da Terra, todas as pessoas do norte, sul, leste e oeste estão conectados em defesa desta terra, que sempre foi e sempre será a Palestina. Somos as últimas mulheres que vivem e sofrem com a ocupação que vem ocorrendo há mais de 75 anos de genocídio.” Assim Maryam Abu Daqqa posiciona a mobilização palestina nesse dia da terra. 

A conexão entre a terra e as mulheres é muito forte. Nós mulheres estamos sendo expulsas de nossas terras, que alimentam nossas famílias, nossos filhos e filhas.

Maryam Abu Daqqa

A reflexão da agricultora Samah Abu Nimah nos aproxima ainda mais da realidade das mulheres palestinas em sua relação com a terra. “A ocupação impôs restrições de acesso aos recursos, exigindo produtos importados que se tornaram muito caros. Vale a pena observar que as mulheres palestinas constituem 78% dos responsáveis pelo trabalho agrícola. Elas participam dos processos de produção, como plantio, colheita e comercialização. Elas também participam da criação de animais e cuidam deles, alimentando-os até que possam extrair leite, por exemplo. Elas produzem laticínios e outros produtos derivados de animais.”  

Acaparamento de terras, um método violento de ocupação

Nariman Bajawwi, que vive em Jenin, recupera que, “desde 1948, quando começaram a confiscar nossas terras e a trazer os colonos para se estabelecerem no território, os sionistas dizem que é uma terra sem povo para um povo sem terra”. A falácia desse argumento é comprovada pelos registros de títulos de terra em nome das mulheres palestinas, datados de 1858, publicadas por Capire no Dia da Terra Palestina em 2022.

Em texto também publicado em 2022, a companheira Khitam Saafin, que à época estava presa, foi categórica sobre a relação entre o sionismo e a usurpação de terras. “Em 1948, o movimento sionista, com todo o apoio das potências coloniais,  destruiu mais de 500 aldeias palestinas e desalojou seus moradores. Foi  responsável pelo processo de deslocamento da maioria dos palestinos das suas cidades e sua substituição por colonos sionistas. Desse modo, foi  anunciado o estabelecimento do Estado de Israel nessas terras”. 

Ela relatou também a continuidade desse processo de expulsão: “Em 1967, através de uma nova guerra colonial, Israel conseguiu  ocupar outras terras árabes: a península do Sinai, as colinas de Golan e  partes das terras libanesas. E continua até hoje realizando operações para controlar as terras na Cisjordânia, estabelecendo assentamentos  através de leis militares. Isso é parte de planos sucessivos, sendo o último deles o plano de anexação, anunciado pelo ex-primeiro ministro de  Israel Benjamin Netanyahu em 2020, que pretende anexar 33% da Cisjordânia a Israel”. 

Manter os assentamentos já existentes e construir novos é uma prática colonizadora de Israel, explica Nariman. Além disso, “o muro do Apartheid, que se estende pela Cisjordânia, levou ao confisco e à apropriação de muitos territórios palestinos. Muitos vilarejos foram separados pelo muro. Os israelenses estão administrando e controlando esses vilarejos. Os palestinos não podem entrar ou sair sem permissão israelense. Os agricultores e as agricultoras não podem cultivar suas terras, especialmente não podem cultivar suas oliveiras, porque não têm acesso a elas”. “A estação das oliveiras é um dos principais pilares da vida do povo palestino. Algumas famílias trabalham durante todo o ano cuidando da terra e das oliveiras, para colher e prensar as frutas, produzir óleo e vendê-lo para obter uma renda para si mesmas e para sua vida cotidiana”, explica Samah.

Nariman avalia o impacto dos ataques militares na produção palestina: “A ocupação destruiu toda a infraestrutura e os serviços em Gaza. Não sobrou nada de pé. Essa crise afetará o comércio, os agricultores, o acesso a água doce e salgada”. Samah Abu Niman também relata o aumento dos obstáculos após a intensificação dos ataques israelenses: “Eles se tornaram mais do que simples obstáculos, e sim uma proibição total de qualquer prática relacionada à água, à terra ou até mesmo à criação de animais. Foram registrados muitos casos de ataques de colonos aos agricultores ou camponeses em suas terras. A maior parte das pessoas afetadas pelos ataques são mulheres, que receberam a maior parte dos ferimentos. Foram registrados mais ataques a mulheres em muitos vilarejos, cidades e povoados palestinos”.  

Criminalização, prisões e violações de direitos humanos

A jovem palestina Ruba Assi foi presa duas vezes: uma quando era estudante universitária, e outra em outubro de 2023. Conquistou a liberdade novamente apenas em fevereiro de 2024. “Na primeira vez, fizeram uma campanha contra os estudantes em todo o país. Fui presa sem nenhuma acusação, foi algo puramente administrativo. Depois de 7 de outubro, tudo foi muito diferente da primeira vez.”, conta ela.

Hoje, a prisão é um túmulo ainda maior. É um cemitério. Não há humanidade, não há clemência. Neste momento, há muitas pessoas na prisão, as que sabemos, mas há muitas que não conseguimos identificar.

Ruba Assi

As mulheres presas em Gaza ficam incomunicáveis, sem direito a falar com suas famílias ou ter notícias sobre o genocídio. “Elas não sabiam se seus filhos e filhas estavam mortos. Tinham menos horas de visita, menos tempo no pátio. Elas só tinham um dia para sair da cela, tomar um banho, ficar no pátio. Havia uma tremenda escassez de alimentos, de péssima qualidade. Não há água dentro da prisão. Tínhamos de beber água enferrujada da torneira. Tudo isso acelera a morte das pessoas presas”, narra Ruba.

Desde o início da agressão e do genocídio, a ocupação tem como alvo as mulheres.

Raya Raduan

A ativista Raya Raduan, relata como as mulheres são tratadas nos campos militares: “Se elas se recusarem a ser revistadas ou verificadas, podem ser espancadas e os militares as privam de qualquer direito, ameaçam-nas de estupro, assédio, insultos e, se essas mulheres usarem hijab, a polícia tira o hijab. É claro que não há privacidade.”

Sustentar a vida a cada dia de genocídio

O projeto genocida israelense é total: assassinatos massivos articulados à destruição de infraestruturas, da cultura, e das condições de saúde, à escassez de alimentos e à contaminação da água. Um povo inteiro é submetido à luta por sobrevivência e a um luto violento e coletivo, entre ruínas. Sammer Abu Safiya, que vive em Gaza, compartilha sua reflexão: “A guerra tem um efeito negativo sobre todos o povo palestino, especialmente sobre as mulheres. Cerca de 63 mulheres são mortas todos os dias e 37 mulheres são feridas todos os dias. Muitas crianças perdem suas mães e a vida a que estavam acostumadas. De acordo com as últimas estatísticas, há cerca de 4.700 crianças órfãs. Mais de 50% das mulheres que foram deslocadas não podem engravidar. Muitas mulheres deram à luz durante a guerra”. 

“As mulheres também têm dificuldade em ter acesso a produtos de higiene e a alimentos para matar a fome. A situação é bastante difícil, pois ninguém pode ter acesso a suas próprias terras e não há linha de produção. Tudo o que obtemos é por meio de assistência humanitária”, segue relatando Sammer.

Ninguém teve misericórdia. Nada que a ocupação fez mostrou misericórdia. Tem muitas mulheres grávidas e elas tiveram que amamentar seus filhos e segurar seus bebês, porque a criança não podia nem se mover durante seis horas. Qualquer movimento aleatório poderia resultar no assassinato de uma família inteira.

Sammer Abu Safiya

A integrante da União de Comitês de Mulheres Palestinas (UPWC, sigla em inglês) Raya Raduan também traz relatos sobre a situação das mulheres grávidas: “A situação no hospital é horrível. As mulheres estão dando à luz em abrigos. Não há condições de saúde adequadas. Muitas dessas mulheres perderam seus bebês. Na falta de um bom sistema de saúde, algumas mulheres decidiram remover seus ovários, para que não pudessem engravidar”.

Ela relata a dor de seguir lutando apesar das violências e perdas de tantas pessoas queridas. “Uma de nossas companheiras, o seu filho morreu de fome. Quando eu falo sobre mulheres Palestinas, eu nem sei o que dizer. Mas elas estiveram na linha de frente por 75 anos. Desde o início das agressões, elas enfrentam violência nas ruas e em suas casas”.

Responsáveis pelos cuidados de suas famílias e comunidades, as mulheres encaram as dificuldades do deslocamento forçado, sempre buscando sustentar a vida: “Mulheres precisam se adaptar, cozinhar para seus filhos, viver a vida, mas elas não encontram água limpa. Elas não encontram banheiros. Elas não encontram o gás que precisam para cozinhar. Não conseguem tomar um banho”, diz Sammer.

Defender o povo palestino é uma emergência global

“As mulheres não podem dormir, nem descansar. Estamos sendo massacrados como povo”, reafirma Maryam, e exalta a capacidade de luta e resiliência das mulheres, que deve ser notada mundialmente: “Nossa luta é contínua até que recuperemos nossa dignidade. Usaremos as formas e métodos que nos pareçam convenientes para exigir nossos direitos como seres humanos. Em várias partes do mundo, somos considerados terroristas, mas estamos lutando contra o imperialismo que se impôs desde o Tratado de Balfour. Os pedidos de cessar-fogo são muito silenciosos. É uma vergonha que, no século XXI, tenhamos essas novas formas de racismo e colonialismo”. Há poucos meses, Maryam foi perseguida na França e teve seu visto negado. “Me perseguiram, me bateram, me arrastaram, me expulsaram, me deportaram. Essa é a tão democrática França, como se diz por aí”, relatou. À época, publicamos uma denúncia sobre a criminalização sofrida por Maryam, junto com excertos de um texto de sua autoria, “A viagem de retorno”.  

Para Raya, é preciso alterar a lógica de silenciamento e desinformação que impera na mídia hegemônica. “A única coisa que podemos falar sobre mulheres aqui são os dois pesos, duas medidas da comunidade internacional, é assim que o mundo governa, e entra em pânico porque houve alegações de estupro no dia 7 de outubro, mas agora o mundo não faz nada. As mulheres palestinas enfrentam a morte”. Uma vez mais, o discurso feminista tem sido instrumentalizado no Norte Global para justificar o imperialismo, hierarquizando as vidas das mulheres com base no racismo. Para Maryam, “precisamos que o feminismo forme uma frente ampla e mundial, que se posicione diante dessa situação e a denuncie para o mundo”. O feminismo popular, mais do que nunca, está posicionado com firmeza nas fileiras do anti-imperialismo, construindo solidariedade total com a luta do povo palestino por soberania e autodeterminação, e pelo cessar fogo imediato.

Ruba Odeh, da Marcha Mundial das Mulheres na Palestina, afirma a reivindicação que deve ser abraçada no mundo inteiro: “exigimos o fim do genocídio em Gaza e na Cisjordânia para avançar rumo à liberdade e conquistar um Estado livre, com nossa própria capital”. Segundo ela, “parte das lutas palestinas pelo direito à soberania de nossas terras é alçada pelas mulheres. Os sionistas sempre buscam minimizar o poder dos palestinos e palestinas, tentando controlar nossos recursos aquíferos. Mas nós visibilizamos a luta das mulheres palestinas, sua firmeza e resiliência”. 

Redação por Helena Zelic e Tica Moreno

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