Maryam Abu Daqqa: A viagem de retorno à Palestina

06/12/2023 |

Por Marcha Mundial das Mulheres de MENA

Militante feminista Maryam Abu Daqqa foi presa na França em novembro de 2023 por sua defesa pela Palestina Livre

Maryam Abu Daqqa, uma das pioneiras do movimento feminista na Palestina, foi uma das mulheres palestinas submetidas ao cativeiro aos quinze anos de idade. Desde jovem, ela leva a causa de seu povo e o direito de recuperar terras roubadas, apesar de ser perseguida pela ocupação sionista e de ser expulsa da Palestina. No entanto, ela segue com sua luta.

Para transmitir a voz do povo palestino torturado pela autoridade ocupadora, ela concluiu o doutorado em filosofia e produziu muitos artigos científicos, incluindo “Os efeitos da tortura psicológica e física de longo prazo em mulheres encarceradas e libertadas e o impacto psicológico e social de mulheres encarceradas a partir da realidade da autobiografia”. Ela também escreveu livros como “Palestinas libertadas: mulheres encarceradas entre a realidade e as esperanças” e “Participação política das mulheres na Palestina”. Também participou de muitos seminários em universidades palestinas e representou mulheres e homens encarcerados em diversas conferências internacionais.

Ela foi convidada a ir para a França por organizações feministas francesas para realizar palestras sobre os direitos das mulheres palestinas, e sofreu os efeitos da ocupação sionista. Foi presa após chegar à França, por defender a Palestina e condenar a agressão israelense contra Gaza. Depois disso, ela foi libertada e deportada para o Egito.

No dia 13 de novembro, o Conselho de Estado Francês emitiu uma decisão. Foi injusto com ela, pois o judiciário do governo francês dá sinal verde para expulsá-la da França, anulando a decisão da Corte Administrativa de Paris, que havia suspendido a ordem de expulsão emitida pelo Ministério do Interior. O Conselho de Estado afirmou em sua interpretação da decisão que “o Ministro do Interior tem o direito de considerar um equívoco da Corte Administrativa a suspensão da expulsão” da militante feminista Maryam Abu Daqqa, com as acusações mais hediondas de assassinar civis em Israel e afirmar que ela ameaça a segurança do Estado com sua presença na França. Depois disso, ela foi solta e deportada para o Egito.

A Marcha Mundial das Mulheres na região do Oriente Médio e Norte da África (MMM-MENA) defende os direitos das mulheres em todo o planeta e exige uma posição séria contra práticas que violam as leis de proteção aos direitos humanos pelo mundo, assim como o direito de expressar opiniões e o direito de se defender.

Para denunciar a situação de perseguição, publicamos no Capire um trecho de um escrito de Maryam, intitulado “Viagem de retorno”, enviado pela autora para a MMM MENA. “Viagem de retorno” é o único texto que ela tem em sua posse neste momento, pois toda a sua pesquisa e todos os seus livros estão em sua casa, em Gaza. Sua casa foi bombardeada e todos os seus livros foram queimados. Os ataques do exército israelense na Palestina estão destruindo vidas, comunidades, memória e saberes populares. É necessário pará-los imediatamente, dando lugar a uma Palestina livre e soberana.

Viagem de retorno

Dizem nos romances que os sonhos não se realizam, mas aliviam a dor da amarga realidade. Eles suprimem o sentimento de impotência e de impossibilidade e aliviam o sonhador da realidade amarga que ele deseja escapar. Mas meu sonho estava além do impossível desde que fui arrancada de minha amada terra natal, a Palestina, pelas mãos dos sionistas, 24 horas depois de ter deixado a abominável prisão. Meu pensamento nunca deixou a minha terra e por 30 anos permaneceu circulando por nossas ruas, pela minha escola, pela minha casa e pelo meu bairro, entre meus amigos, meus companheiros e por tudo aquilo a que eles foram expostos, nos bairros em que o ocupante nos perseguia na nossa juventude, nos braços da minha mãe e do meu pai, entre minhas irmãs e irmãos, entre minhas lindas e duras lembranças… Frequentemente apertava as pálpebras na tentativa de acordar do pesadelo da alienação na realidade do asilo forçado que me carregava, o que montanhas não podiam suportar. Como eu, uma criança, pude aguentar esse tormento e essa jornada tão cruel longe da família, da terra natal e dos entes queridos, vagando em uma terra que eu não conhecia, com novos laços familiares e amigos que precisavam ser feitos?

(…) Muitas vezes, acordei com lágrimas escorrendo dos olhos… E tinha medo de voltar a dormir e ter outro pesadelo. Saio para visitar alguns amigos que permaneceram comigo no exílio; desfruto com eles. Nos consolamos e, numa noite maravilhosa que nunca esquecerei o que me trouxe… No fim de uma visita à família de um amigo (o Saleh Abu Anza) que mora em frente da minha casa, à meia noite, retornava para minha casa e, na frente da porta do meu apartamento, ouvi minha vizinha Umm Ali (a mãe do Ali) –que é de uma família síria de imigrantes do Golã que estão vivendo, como os palestinos, a crise da alienação, do refúgio e outras coisas, assim como minha família – me chamando com uma voz preocupada: “Maryam, você recebeu um telefonema do seu primo da Jordânia? Ele quer que você ligue pra ele agora”.

(…) A voz mais linda que ouvi em 30 anos… Nela, uma música maravilhosa, a música do retorno ao abraço da amada terra natal… Ao abraço da minha família, ao abraço da minha mãe oprimida pelos tormentos do tempo, uma voz que me trouxe de volta às memórias de infância cheias de sons e significado. Inocência, maturidade e luta. (…) como será isso? Vou recuperar o passado com sua beleza e inocência? Meu coração suportará este momento terrível? Minha língua conseguirá pronunciar a palavra “mãe”? Qual é a nova realidade? Como continuarei minha luta nessa nova realidade? Nosso povo e família me reconhecerão? Como eles me reconhecerão? Perguntas sucessivas… Quando nascerá o sol? Quero gritar e encher o mundo com a minha voz… Não suporto esse silêncio, todos devem saber que voltarei à Palestina. As horas se passaram como se fossem eternidades imóveis e o rosto da minha mãe estava na minha frente e não me abandonava. Eu me revirava como quem revira em brasas…

(…) Cheguei no meu escritório, o escritório das mulheres… Encontrei duas companheiras que esperavam por mim e por outras companheiras… Gritei para elas: conversem, riam, sejam felizes… Eu voltarei para a Palestina… Não sei o que falei, pois as palavras se misturavam e não deixavam espaço para resposta… E me movia com minha voz para cantar como se estivesse sozinha… Meus companheiros e companheiras ficaram surpresos e senti uma estranha tristeza nos seus rostos… O que você está dizendo? Sim, finalmente voltarei à Palestina… Recebi uma autorização de visita… Senti que não estava equilibrada ao transmitir a mensagem e esqueci que eles são meus camaradas, que formaram minha família e que seria difícil para eles, apesar da alegria, me perderem repentinamente e sem prévias explicações… Eu parei um pouco e depois disso a conversa começou a acontecer de fato… Expliquei-lhes minhas ideias e iniciei minhas comunicações com as lideranças para informar-lhes sobre isso…

(…) Saí de manhã para a Ponte da Jordânia e estavam comigo dois companheiros de dentro [da Palestina], um de Gaza (Magda Al-Saqqa) e outro da Cisjordânia (Iman Assaf), e lhes pedi que esperassem antes de ir e que me mostrassem minha casa… Eu não sabia mais onde ficava minha casa. Pegamos o ônibus de passageiros até a ponte da Jordânia… Apesar da multidão, eu estava perdida em pensamentos, perguntas intermináveis passavam pela minha cabeça e chegou até mim a informação de que, naquele dia, a polícia palestina estaria no controle da ponte. Eu me preparei para todas as possibilidades. Não tenho paciência para aguentar nem mais um único minuto de espera… O ar do meu país penetra em meu corpo e eu não consigo resistir; entre mim e meu sonho há uma linha tênue entre duas palavras, e uma dessas palavras vai transformar minha vida em um inferno e a outra em um céu: “não, você não vai entrar por motivos de segurança” e a outra “sim, entre no país!”

(…) Há automóveis de passageiros para Gaza e para a Cisjordânia e todo mundo chama os passageiros e espera que eles partam. Eu disse a eles, em primeiro lugar, que precisava ligar para minha irmã gêmea e companheira Leila Khaled, para tranquilizá-la de que havia entrado no país. Porque ela tinha certeza que eu voltaria para ela. (…) Depois, o motorista me perguntou por qual caminho eu queria ir e eu disse a ele que o importante é que ele me levasse na velocidade da luz até minha querida aldeia. Mas queria passar pelo mar e ao lado da Prisão de Saraya, para recordar os dias sujos da minha prisão, e em frente à minha escola (Escola Al-Awda), de onde saíram os primeiros grupos guerrilheiros… E depois para casa, definitivamente. O motorista é irmão de um camarada da Frente Popular e havia irmãos do Fatah conosco, e houve uma longa e ampla discussão: sobre Oslo, sobre o retorno e sobre a situação geral. Meu olhar percorreu cada grão de areia pisoteado pelas rodas do carro. Costumava guardar a areia de Gaza numa garrafa que levava comigo para todo o lado na minha vida, como se carregasse a pátria comigo.

(…) Em poucos segundos encontrei toda a aldeia à minha frente, como se as pessoas tivessem saído dos túmulos no Dia do Juízo Final. Eu não conhecia ninguém. Não reconheci ninguém, como se minha cabeça estivesse mareada. A escuridão total se transformou em luz. Todas as casas estavam iluminadas… Uma grande multidão. Quero ver o rosto da minha mãe acima de tudo, tive que dizer a eles. Quero ver a minha mãe. Venha comigo. Para casa. (…) Meus camaradas organizaram o festejo do retorno para celebrar na cidade de Khan Yunis, e estenderam convites a todos os irmãos, amigos, camaradas e na frente estava a família… Homens, mulheres e jovens vestiam as peças mais bonitas que tinham. Camaradas vieram de todos os locais e se reuniram no local da celebração. (…) Falei no final do festival para agradecer aos meus companheiros e ao meu povo por essa maravilhosa hospitalidade. Transmiti-lhes saudações de seus companheiros e do seu povo na diáspora e expressei sua ânsia de retornar mais uma vez ao colo da pátria, de reafirmar nossa luta para completar o nosso sonho de retorno e do país independente, com Al-Quds Al-Sharif (Jerusalém) como sua capital, enquanto transformamos o nosso país num país democrático em que mulheres e homens sejam parceiros iguais na luta e na sua construção.

(…) Estou acompanhada de uma preocupação fundamental que é servir os filhos e filhas do meu povo para enfrentar a ocupação. Essa questão exige uma aproximação e uma cultura unitária, construída na base da partilha mútua e na rejeição de tudo o que é negativo e divisor. Senti que havia um grande fosso cultural por causa das condições sufocantes a que o nosso corajoso setor estava exposto e por causa das práticas criminosas da ocupação. Gaza é uma grande prisão. Sair dessa situação é muito complicado e evitar tudo é a linha mestre da situação. Então, comecei minha jornada rumo à televisão, aos seminários públicos e populares e aos encontros contínuos com as pessoas para achar uma linguagem comum e chegar à verdade –porque quero que coloquemos os pés no caminho certo juntos, e não individualmente. Descobri que o nosso povo é maravilhoso e generoso sem fronteiras. A minha certeza constante de que o nosso povo é o povo dos milagres foi confirmada, e foi apenas um curto período de diligência e trabalho até encontrar um eco da minha voz nos corações e mentes do nosso querido povo. A voz da sua consciência é e continuará sendo o foco do meu orgulho e apreço por esse povo heroico, o povo firme que faz milagres. Eles merecem a vida e a liberdade e merecem uma liderança respeitável para poder viver em segurança.

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Texto original no árabe

Tradução do árabe por Indra Seixas

Edição por Helena Zelic

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